Como a China está usando inteligência artificial para superar os espiões da CIA

Sob a liderança de Xi Jinping, a China realiza ações de inteligência mais ousadas

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Por Edward Wong, Julian E. Barnes, Muyi Xiao e Chris Buckley

THE NEW YORK TIMES - Os espiões chineses queriam mais. Em reuniões com empresas de tecnologia chinesas durante a pandemia, eles se queixaram de que as câmeras de vigilância que rastreavam diplomatas, oficiais militares e agentes de inteligência estrangeiros no distrito das embaixadas de Pequim estavam aquém de suas necessidades.

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Os espiões pediram um programa de inteligência artificial que criasse dossiês instantâneos sobre qualquer pessoa na área e analisasse seus padrões de comportamento. Eles propuseram alimentar o programa de IA com informações de bancos de dados e dezenas de câmeras que incluiriam placas de carros, dados de celulares, contatos e muito mais.

Os perfis gerados pela IA permitiriam aos espiões chineses selecionar alvos e identificar suas redes e vulnerabilidades, de acordo com memorandos de reuniões internas obtidos pelo New York Times.

Trabalhadores chineses instalam uma câmera de segurança em uma rua de Pequim, na China  Foto: Ng Han Guan/AP

O interesse dos espiões pela tecnologia, publicado aqui pela primeira vez, revela algumas das vastas ambições do Ministério da Segurança de Estado, o principal órgão de inteligência chinês. Nos últimos anos, o ministério se desenvolveu com um recrutamento mais amplo, até mesmo de cidadãos americanos. E também se aperfeiçoou por meio de melhorias na formação, de um orçamento maior e da utilização de tecnologias avançadas para tentar cumprir o objetivo de Xi Jinping, o líder da China, de que a nação rivalize com os Estados Unidos como a maior potência econômica e militar do mundo.

A agência chinesa, conhecida como MSS, antes repleta de agentes cuja principal fonte de informação eram os mexericos dos jantares nas embaixadas, agora está desafiando a CIA em coleta de dados e espionagem no mundo todo.

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Hoje, os agentes chineses em Pequim têm o que pediram: um sistema de que rastreia espiões americanos e outros alvos, disseram autoridades americanas e uma pessoa com conhecimento da transação, que compartilharam as informações sob a condição de que o Times não publicasse os nomes das empresas contratantes envolvidas. Ao mesmo tempo, a CIA duplicou os gastos com a China desde o início do governo Biden e os Estados Unidos intensificaram drasticamente sua espionagem a respeito de empresas chinesas e dos avanços tecnológicos delas.

Este artigo se baseia em entrevistas com mais de duas dúzias de funcionários e ex-funcionários americanos, a maioria dos quais falou sob condição de anonimato, e em uma análise de documentos corporativos chineses, além de documentos públicos da MSS.

O presidente da China, Xi Jinping, valoriza a melhoria do serviço de inteligência do país asiático  Foto: Greg Baker/AFP

Jogo de fantasmas

A competição entre as agências de espionagem americana e chinesa remete à rivalidade entre KGB e CIA durante a Guerra Fria. Naquela época, os soviéticos construíram uma agência que conseguia fazer operações secretas e roubar os segredos mais bem guardados dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que produzia grandes líderes políticos, entre eles Vladimir V. Putin, o presidente da Rússia.

Mas há uma diferença notável. Devido ao boom econômico e às políticas industriais da China, o MSS pode usar tecnologias emergentes como a IA para desafiar os espiões americanos de uma forma que os soviéticos não conseguiam. E essas tecnologias são os principais objetivos dos esforços de espionagem da China e dos Estados Unidos.

“Para a China, explorar a tecnologia ou os segredos comerciais de terceiros se tornou um atalho comum, incentivado pelo governo”, disse Yun Sun, diretora do programa para a China do Stimson Center, um instituto de pesquisa com sede em Washington. “A urgência e a intensidade da espionagem tecnológica aumentaram significativamente”.

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O MSS intensificou a coleta de informações sobre empresas americanas que desenvolvem tecnologia com usos militares e civis. A CIA, em uma mudança bem recente, está investindo recursos na coleta de dados sobre empresas chinesas que desenvolvem IA, computação quântica e outras ferramentas semelhantes.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, visita uma instalação da IBM em Poughkeepsie  Foto: Erin Schaff/The New York Times

Embora a comunidade de inteligência dos Estados Unidos venha coletando informações econômicas há muito tempo, a coleta de informações detalhadas sobre os avanços tecnológicos comerciais fora das empresas de defesa já foi o tipo de espionagem que os Estados Unidos evitavam.

Mas as informações sobre o desenvolvimento de tecnologias emergentes na China agora são consideradas tão importantes quanto prever seu poderio militar convencional ou as maquinações de seus líderes.

David Cohen, vice-diretor da agência, disse que sob o presidente Biden a CIA vem fazendo investimentos e se reorganizando para enfrentar o desafio de coletar informações sobre os avanços chineses. A agência inaugurou um centro de missões e um centro de inteligência tecnológica na China.

“Passamos mais tempo contando tanques e tentando calcular o alcance dos mísseis do que nos concentrando na potência dos semicondutores, dos algoritmos de IA e dos equipamentos de biotecnologia”, disse Cohen em entrevista.

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Mas alguns formuladores de políticas dizem, em privado, que o esforço ainda é insuficiente e que as empresas e os militares chineses estão surpreendendo o governo americano com seus avanços.

Uma das primeiras decisões importantes de William J. Burns, o diretor da CIA, foi criar um centro de missões focado em China  Foto: Haiyun Jiang /The New York Times

Na China, o estatuto do Ministério da Segurança de Estado cresceu consideravelmente sob o governo de Xi, que dá bastante importância a ações de inteligência ousadas e a uma segurança de estado poderosa.

Em outubro de 2022, o Partido Comunista promoveu o chefe do ministério, Chen Wenqing, para ser a principal autoridade de segurança do partido e integrar o Politburo de 24 membros – o primeiro chefe de espionagem a ascender a esse órgão em décadas. Seu substituto, Chen Yixin, aliado de longa data de Xi, elevou o perfil público do MSS. Também lhe foram atribuídos amplos poderes, como o de liderar uma repressão contra empresas americanas e outras empresas estrangeiras que conduzam investigações corporativas sobre empresas chinesas, inclusive por laços militares e violações dos direitos humanos.

O ministério tem as responsabilidades estrangeiras da CIA e as funções internas do FBI, tudo isso com um toque autoritário. O MSS é encarregado pela coleta de informações e por operações no exterior, bem como por limitar a influência estrangeira na China e reprimir as chamadas atividades subversivas. Sua missão é declaradamente política: defender o Partido Comunista contra tudo aquilo que se percebe como ameaça.

O atual ministro, Chen, enfatizou repetidas vezes a lealdade a Xi. Em junho, ele disse a autoridades para “abraçarem de todo o coração” o papel “fundamental” de Xi.

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Sob o comando de Chen, o ministério está usando as redes sociais para espalhar mensagens sobre ameaças. “As multifacetadas obstruções, contenções e supressões dos Estados Unidos só tornarão a China ainda mais aguerrida e autossuficiente”, afirmou o ministério em uma nova conta do WeChat.

Em agosto, o ministério fez anúncios afirmando que havia detido dois cidadãos chineses espionando para a CIA: um recrutado por um agente americano no Japão e o outro na Itália. Em outubro, o ministério e a televisão estatal chinesa anunciaram o caso em que um pesquisador de um instituto da indústria de defesa fora recrutado por um agente americano no período em que era professor visitante em uma universidade americana. Depois de retornar à China, ele começou a repassar cópias de documentos secretos para os americanos, até ser detido em 2021.

Os anúncios sugeriram que a CIA vinha reconstruindo dentro da China uma rede que os oficiais da contraespionagem chinesa dizimaram há mais de uma década.

A CIA não diz se as pessoas detidas no exterior sob acusação de espionagem são espiãs dos Estados Unidos. Mas pelo menos alguns dos cidadãos chineses detidos trabalhavam para os Estados Unidos, segundo pessoas informadas sobre relatórios de inteligência americanos. Não há evidências, entretanto, de que o MSS desmantelou a rede, disseram essas pessoas, e o caso da Itália tem mais de um ano.

O MSS também está fazendo movimentos agressivos no exterior, como o recrutamento de um político belga de extrema-direita e o assédio a críticos de etnia chinesa do partido. Um agente contratou um detetive particular local para atacar fisicamente um candidato sino-americano ao Congresso dos Estados Unidos em Long Island, de acordo com uma acusação do Departamento de Justiça. Outro homem é acusado de ajudar a criar uma organização que atraiu dissidentes em Nova York.

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Chips e materiais de embalagem são unidos na Promex Industries, uma empresa do Vale do Silício em Santa Clara, Califórnia, em 27 de abril de 2023.  Foto: Jim Wilson / NYT

Uma agência chinesa na ofensiva

O governo central em Pequim criou o Ministério da Segurança de Estado em 1983, durante uma reorganização do aparato de segurança. Durante décadas, a agência teve dificuldade em cair nas boas graças da liderança do partido. Sua rival chinesa, os serviços de inteligência do Exército de Libertação Popular, dispunha de mais recursos e técnicas melhores, especialmente na área da espionagem cibernética.

O Ministério da Segurança de Estado aprimorou gradualmente suas táticas, obteve orçamentos maiores e até desenvolveu experiência nos negócios. Alguns de seus funcionários trabalhando infiltrados como empresários foram enviados a escritórios do setor privado para receber treinamento, disse Peter Mattis, ex-analista da CIA e coautor de um livro a respeito da espionagem chinesa.

Agentes chineses também expandiram seus alvos de recrutamento no exterior, incluindo cidadãos americanos.

Agências de espionagem dos EUA ficaram alarmadas ao descobrir que o MSE de Xangai tinha recrutado um estudante americano na China, Glenn Duffie Shriver, levando-o a se candidatar a cargos na CIA e no departamento de estado. Shriver foi condenado a quatro anos de prisão em 2011. “Foi um grande indício do quanto as técnicas do MSE foram aprimoradas, tendo como alvo americanos sem origem chinesa pela primeira vez e tentando se infiltrar na comunidade espiã americana”, disse John Culver, ex-analista da espionagem dos EUA.

O caso teve amplas consequências. As autoridades de contraespionagem dos EUA ficaram mais desconfiadas de candidatos a cargos no governo que tivessem estudado na China ou mantivessem contatos no país, e voltou a atenção delas para os escritórios regionais do MSE.

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A principal fabricante de chips da China, a Semiconductor Manufacturing International Corporation, desenvolveu um chip de sete nanômetros Foto: Qilai Shen/NYT

Os escritórios são feudos em si, localizados fora do quartel-general nacional da agência, situado no sigiloso complexo de Xiyuan, a noroeste de Pequim. Sob o comando de Xi, eles se tornaram mais agressivos em suas operações no exterior, com alguns deles se especializando no recrutamento e manutenção de informantes nos EUA.

O escritório da província de Jiangsu, vizinha a Xangai, é outra divisão dedicada à obtenção de segredos americanos, particularmente tecnologias de defesa, de acordo com autoridades dos EUA.

Seus funcionários recrutaram Ji Chaoqun pouco depois da ida dele aos EUA em 2013 para estudar engenharia no Illinois Institute of Technology em Chicago, de acordo com os documentos do tribunal e do departamento de justiça. Seu contato no MSE, Xu Yanjun, conseguiu dele os nomes de pelo menos nove pessoas nos EUA que a agência chinesa de espionagem poderia tentar recrutar para obter tecnologias aeroespaciais e de satélite.

Ji acabou entrando para os reservistas do exército americano, com o objetivo de conseguir autorização de segurança suficiente para tentar um emprego na CIA, no FBI ou na Nasa. Ele foi preso em Chicago em 2018 e condenado a oito anos de prisão. O contato dele, Xu, foi detido em Bruxelas em 2018, em uma operação relacionada comandada pelo FBI, tornando-se o primeiro agente do MSE a ser extraditado para os EUA.

Diferentemente dos agentes russos, os agentes do MSE costumam evitar o trabalho nos EUA, preferindo em vez disso recrutar agentes ou informantes de fora, e usando ofertas de emprego sem relação aparente com a China para atraí-los, de acordo com autoridades americanas.

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Mais ou menos em 2018, um agente do MSE de Cingapura “criou uma firma falsa de consultoria que usava o mesmo nome de uma importante consultoria americana, publicando ofertas de emprego online com o nome dessa empresa”, disse Michael C. Casey, diretor do Centro Nacional de Contraespionagem e Segurança.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, conversa com o presidente da China, Xi Jinping, em São Francisco, Estados Unidos  Foto: Doug Mills/ NYT

Corrida tecnológica

O MSE costuma contratar diretamente nas universidades, especialmente para seus principais cargos, de acordo com uma análise de mais de 30 ofertas de emprego online da agência. Nos anos mais recentes, foram procurados especialistas em tecnologia, incluindo hackers, de acordo com duas pessoas informadas a respeito das iniciativas de recrutamento.

A maior preocupação de Pequim é a possibilidade de os EUA e seus aliados excluírem a China do know-how tecnológico essencial para o crescimento econômico e militar. Xi sublinhou esse risco.

Chen, ministro de segurança do estado, escreveu em um artigo publicado em setembro que “tecnologias centrais” continuavam sob o controle de outros países, e que alcançar a “autonomia tecnológica” seria uma tarefa urgente.

Especialistas do governo chinês admiram abertamente as capacidades de coleta das agências americanas de espionagem e sua tecnologia. As revistas de espionagem chinesas trazem estudos das operações americanas. Um estudo recente dos serviços de segurança nacional dos EUA realizado pelos Institutos de Relações Internacionais Contemporâneas da China, principal instituto de pesquisas do MSE, disse, “Valendo-se de uma avaliação aprofundada dos métodos relevantes dos EUA, a China deveria escolher o que funciona e dispensar o que não funciona”.

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O MSE também está promovendo os especialistas em EUA. Ainda este ano, um desses analistas, Yuan Peng, presidente do principal instituto de pesquisas, apareceu com um novo nome, Yuan Yikun, no cargo de vice-ministro do próprio MSE. Anteriormente em sua carreira, Yuan costumava se reunir com estudiosos americanos, e era visto por alguns deles como um observador paciente em Washington.

Glenn Duffie Shriver foi recrutado pela M.S.S. enquanto estudava na China. Foto: FBI / NYT

Na presidência do instituto de pesquisas, Yuan se tornou um defensor do amplo conceito de “segurança nacional geral” de Xi, dentro do qual os EUA são retratados como principal ameaça à ascensão da China.

“Biden disse que ‘os EUA estão de volta’, mas o mundo mudou, e se os EUA não forem capazes de acompanhar as amplas mudanças globais, este mundo em transformação escapará ao controle americano”, escreveu Yuan em uma análise de estratégia internacional publicada no início de 2022. “Ao avaliar a atual estratégia maior dos EUA daqui a algumas décadas, talvez vejamos que o maior erro do país foi escolher a China como inimiga.”

‘Pensar como um analista de Wall Street’

Uma das primeiras decisões importantes de William J. Burns, diretor da CIA, foi criar o China Mission Center. A ideia era garantir que as filiais em todo o mundo, e não somente na Ásia, coletassem informações de espionagem a respeito da China.

Burns adotou a medida após uma análise estratégica chefiada por Michael Collins, que fez carreira na espionagem. Sob a autoridade de Burns, Collins foi nomeado diretor estratégico, com a responsabilidade de ajudar a melhorar o trabalho da agência envolvendo a China.

O desafio da China exige que os EUA “sejam astutos em áreas críticas como biotecnologia e semicondutores”, disse Collins, que comanda atualmente o Conselho Nacional de Espionagem, uma organização coordenadora das agências de espionagem. “Temos que ser melhores.’’

Para ter um entendimento mais claro das tecnologias que a China almeja, a CIA começou a pedir a executivos e estudiosos americanos que indiquem quais eles acreditam ser os objetivos de desenvolvimento das empresas chinesas. As empresas e universidades americanas, frequentemente procuradas por investidores e pesquisadores chineses, têm conhecimento específico dessas tecnologias, de acordo com autoridades americanas.

Mas as autoridades falaram na importância de atrair pessoas com conhecimento mais aprofundado das ambições comerciais e tecnológicas da China. Por agora, as agências de espionagem têm dificuldade em levar as informações aos governantes com a rapidez desejada.

No ano passado, a empresa canadense TechInsights revelou que a principal fabricante de chips da China, Semiconductor Manufacturing International Corporation, tinha desenvolvido um chip de sete nanômetros. O governo americano desconhecia o avanço e ficou surpreso ao saber que a empresa chinesa o tinha alcançado tamanho salto tão rapidamente, disse Jimmy Goodrich, especialista em tecnologia chinesa e consultor da RAND Corporation.

“Do ponto de vista institucional, a comunidade de espionagem não está configurada para compreender bem as questões tecnológicas e comerciais da China”, disse ele. “É algo difícil. E, mais importante, é necessário pensar como um analista de Wall Street, fazendo pesquisa de mercado, conversando com cada elo da cadeia de fornecimento.”

(Um funcionário do governo americano disse que agências de espionagem americanas tinham avaliado que a empresa teria ao menos a capacidade de produzir o chip de 7n antes da denúncia canadense.)

Parte do problema está no fato de as agências do governo dos EUA favorecerem as informações captadas por satélite, programas de interceptação e espiões. Um funcionário do alto escalão americano disse que os analistas ignoravam perspectivas valiosas de fontes não confidenciais a respeito da China.

“A comunidade de espionagem dos EUA faz um trabalho incrível contra alvos específicos”, disse Mattis, ex-analista da CIA. “Mas, às vezes, pode ter dificuldade com temas mais amplos, como compreender as capacidades tecnológicas da China.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL e RENATO PRELORENTZOU

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