O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, deu um recado claro aos países do Brics que buscam reduzir a dependência do dólar: nem pensem nisso. Caso contrário, a resposta virá com tarifas pesadas, de 100%, e o “adeus” ao mercado americano. A ameaça direcionada, dizem analistas ouvidos pelo Estadão, surte o efeito de colocar pressão sobre o bloco, que estuda criar uma moeda própria. A iniciativa é apoiada é pelo Brasil, que assume a presidência do grupo a partir de 1º de janeiro.
“Do lado do Brics, a ameaça deve surtir efeito. O Brasil será presidente (do bloco) no próximo ciclo e precisa passar uma imagem de moderação, até mesmo por causa das diferenças ideológicas entre os presidentes Lula e Trump“, observa Vinícius Rodrigues Vieira, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Isso pode complicar ainda mais as discussões internas sobre a criação da moeda comercial.”
Procurado, o Ministério das Relações Exteriores não comentou a declaração de Donald Trump e os possíveis impactos da ameaça de tarifas nos planos do Brasil para a presidência do Brics até a publicação da reportagem.
Desafios para criação da moeda do Brics
A ideia de criar uma moeda para transações comerciais entre países do bloco foi aventada pela então presidente Dilma Rousseff há dez anos e voltou a ganhar força no contexto da guerra na Ucrânia, mas sem resoluções práticas.
Tanto Dilma, que preside o Novo Banco do Desenvolvimento, quanto Lula insistiram na necessidade de avançar nas discussões sobre alternativas ao dólar durante a última Cúpula do Brics, sediada pela Rússia. A posição foi ecoada pelo anfitrião Vladimir Putin. A declaração final do encontro, contudo, focou no incentivo ao uso das moedas locais nas transações entre os países do bloco.
A criação da moeda do Brics é vista com ceticismo por analistas, que destacam as diferenças políticas e econômicas entre os países-membros. São eles: Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, além dos 13 associados.
Além disso, o dólar mantém a hegemonia como referência na economia global, apesar dos esforços de países que buscam alternativas para proteger suas economias das flutuações da moeda americana. “Há uma tendência, não só do Brics, para diversificar ativos e meios de pagamento no contexto de grande incerteza política e econômica sobre os rumos da ordem global”, afirma Vieira.
Mas não basta ter vontade política; é preciso convencer os mercados. “A transição das moedas de reservas depende muito mais da confiança do mercado que das decisões governamentais. Ainda que o Brics venha a criar uma moeda, ou decida usar as moedas locais para trocas comerciais, tem uma questão básica que é o mercado aderir ou não. Por mais que os governos possam pressionar, é o mercado que detém a palavra no fim das contas”, pondera.
Para entender
Ameaça de tarifas
Apesar dos impasses para implementar a moeda, o presidente eleito dos Estados Unidos foi enfático: “Exigimos compromisso desses países de que não criarão uma nova moeda Brics, nem apoiarão nenhuma outra moeda para substituir o poderoso dólar americano ou enfrentarão tarifas de 100% e devem esperar dizer adeus à venda para a maravilhosa economia dos EUA. Eles podem encontrar outro otário!”
As tarifas são parte do plano econômico do republicano, que ameaça impor taxas de 25% a produtos do México e Canadá, e de 10% para os bens chineses. Estão em linha com a política protecionista do político que tem como slogans “América Primeiro” e “Faça a América Grande de Novo”.
“Trump acredita no protecionismo clássico, de imposição de tarifas. Mesmo quando parecia que não seria factível, ele bancou a aposta política, como no caso da guerra comercial com a China durante o primeiro mandato”, lembra Vieira.
As tarifas podem ainda pode ser usadas como instrumento de pressão sobre outros países. “Vai ser preciso separar o que é discurso e o que de fato será implementado”, pondera o professor de Relações Internacionais da ESPM Leonardo Trevisan. “É possível que Trump use as ameaças de tarifas como instrumento de negociação.”
No caso do México e Canadá, o presidente eleito prometeu que as tarifas serão aplicadas logo após a posse e permanecerão em vigor até que os vizinhos contenham os fluxos de drogas e imigrantes pelas fronteiras americanas. No seu primeiro mandato, Trump usou a ameaça de sobretaxar produtos mexicanos para conseguir o acordo de controle sobre a imigração.
No caso específico do Brics, a motivação por trás da ameaça pode ser geopolítica, opina Trevisan. “O subtexto dessa mensagem é ‘controlem suas ambições, especialmente a China’”, avalia.
Ele destaca que, ao contornar o dólar, esses países reduzem a força das sanções americanas. E lembra que a Rússia, por exemplo, conseguiu resistir aos esforços para sufocar a máquina de guerra na Ucrânia graças à colaboração com o Sul Global. Isso inclui o aumento do comércio em moedas locais com China e Índia, parceiros de Brics.
“Parece ser uma forma de dizer que os países não alinhados ao dólar serão punidos. É o que na literatura da política internacional chama de weaponize interdependence (algo como interdependência armada)”, afirma Vieira. O termo descreve o uso das redes globais de informação e finanças, ou seja, da interdependência entre os países, para obter vantagens estratégicas.
A manobra, contudo, é considerada arriscada, até mesmo para os Estados Unidos. Do lado americano, levar a cabo a ameaça ao bloco que inclui dois dos maiores parceiros comerciais dos Estados Unidos (China e Índia) tende a aumentar os preços para os consumidores americanos, contrariando o discurso eleitoral do republicano, que prometeu reduzir o custo de vida no país.
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