Análise | Ameaças de anexação da Groenlândia mostram que Trump trouxe o caos de volta à política internacional

Entrevista coletiva do presidente eleito Donald Trump em Mar-a-Lago foi um lembrete do que nos aguarda nos próximos quatro anos

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Por David E. Sanger (The New York Times)
Atualização:

Houve falas sobre o número crescente de baleias encalhadas em Massachusetts, vítimas, disse o presidente eleito, daqueles moinhos de vento erguidos na costa. Eles “estão enlouquecendo as baleias, obviamente”.

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Uma promessa de rebatizar o Golfo do México, por decreto presidencial, como “Golfo da América”.

E então a recusa de Donald Trump em descartar o uso de força militar para tomar o Canal do Panamá, de 82 quilômetros, por motivos de segurança nacional, juntamente com os 2.165.230 quilômetros quadrados da Groenlândia, a maior ilha do mundo.

Parentes e apoiadores de Trump gostam de dizer, “Estamos de volta mesmo!”, e não há dúvida, eles voltaram. No entanto, enquanto o homem que será presidente voltava a fazer ameaças e denúncias raivosas contra o governo Biden, assim como queixas pessoais, por mais de uma hora, na terça-feira, na sala de estar de seu clube em Mar-a-Lago, outra coisa retornava: a presidência caótica regida por seu fluxo de consciência.

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Trump retornou à pauta diária, embora seja possível argumentar que ele nunca deixou realmente. A coletiva de imprensa desta terça-feira foi um lembrete de como isso se processa e do que nos aguarda nos próximos quatro anos.

Ele falou sobre uma de suas reclamações favoritas durante seu primeiro mandato: chuveiros e torneiras sem água, o símbolo de um Estado regulador enlouquecido. “Que pinga, pinga, pinga”, disse ele. “As pessoas simplesmente tomam banhos mais longos ou ligam a máquina de lavar louça novamente” e “acabam usando mais água”.

Então Trump seguiu descrevendo a perspectiva de um confronto militar com a Dinamarca. Depois de se recusar a descartar a possibilidade de coagir um aliado da Otan com uso de força se o país continuar relutante em entregar a propriedade que ele cobiça, o presidente eleito sugeriu que a reivindicação da Dinamarca sobre a Groenlândia é, de qualquer maneira, duvidosa.

“As pessoas realmente nem sabem se os dinamarqueses têm algum direito legal sobre a Groenlândia, mas, se tiverem, deveriam desistir, porque precisamos dela para a segurança nacional”, disse ele.

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Quanto ao Panamá, Trump insistiu que os Estados Unidos têm de se defender contra uma ameaça urgente da China à segurança nacional, embora a situação em torno do canal tenha mudado pouco desde a última vez que Trump ocupou o Salão Oval.

Donald Trump em entrevista coletiva concedida em Mar-a-Lago, na terça-feira, 7. Foto: AP Photo/Evan Vucci

“Pode ser que seja preciso fazer alguma coisa”, disse ele, com a ambiguidade de sempre, quando questionado sobre sua sugestão de que a única solução para esse problema poderá ser a força militar.

Houve muito déjà vu na entrevista coletiva da terça-feira, relembrando cenas de sua primeira presidência. Teorias conspiratórias, fatos inventados, queixas fervorosas — tudo apesar do fato de Trump ter conseguido operar uma das reviravoltas políticas mais notáveis da história. Menções vagas a “pessoas” que ele nunca identifica. A declaração direta de que a segurança nacional americana está sob ameaça neste momento, sem definir as maneiras que o ambiente estratégico mudou de formas que poderiam levá-lo a violar a soberania de nações independentes.

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Mas várias diferenças nessa versão de Trump também se manifestaram — facilmente ignoráveis em um homem capaz de transitar, em um instante, entre as falhas dos encanamentos nos EUA e a necessidade de reviver o espírito de tomada de território do ex-presidente William McKinley.

Desta vez, Trump parece ansioso para agir de maneiras que não estava em 2017. Repetidamente na terça-feira, ele pareceu se ressentir do fato de Joe Biden ainda ser presidente. Trump queixou-se por não poder se encontrar com Vladimir Putin para negociar o fim da guerra na Ucrânia enquanto não for realmente empossado. Criticou a torrente de ordens executivas que Biden emitiu nos dias recentes projetadas para amarrar Trump, ou pelo menos atrasá-lo. O presidente eleito pareceu particularmente irritado com uma ordem executiva que proibiu novas explorações de petróleo e gás natural ao longo de grande parte da costa dos EUA, que ele afirma que reverterá imediatamente — a não ser que tenha de levar o caso à Justiça antes.

Biden “essencialmente abriu mão de 50 a 60 trilhões de dólares em ativos” no fundo do mar, disse Trump, sem explicar por que poucas empresas estiveram perfurando na costa americana nas décadas anteriores à ordem. O presidente eleito não comentou as considerações ambientais que levaram Biden a tomar a decisão.

Quando o assunto mudou para o Oriente Médio, Trump falou como se já estivesse no comando das negociações e chamou seu enviado-especial para a região, Steve Witkoff, ao palco para declarar que “tivemos um progresso realmente grande”. Mas, conforme Witkoff observou posteriormente, as negociações estavam sendo coordenadas pela equipe de Biden, apesar de representantes de Trump terem sido convidados a participar, já que em breve herdarão a diplomacia tridimensional com Israel e o Hamas.

No entanto, em certos momentos parecia que Trump já era presidente, em grande medida porque Biden saiu de cena tão rapidamente.

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Esta foi a segunda entrevista coletiva completa de Trump em Mar-a-Lago desde que ele começou a formar seu governo e, nesse aspecto, seguiu a tradição: Biden concedeu uma série de entrevistas coletivas em Delaware há quatro anos, denunciando a Rússia pelo ataque hacker ao software do provedor “SolarWinds”, crítico para o governo americano, e, em seguida, expressando horror em relação à violência cometida no Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

Nos seis meses recentes, porém, Biden desapareceu, amplificando ainda mais a voz e a influência de Trump. A última entrevista coletiva extensa de Biden ocorreu em julho do ano passado, após a cúpula da Otan em Washington, e seus assessores ficaram tensos o tempo todo, temendo que o presidente travasse novamente, como durante o debate com o Trump, em junho.

Atualmente, Biden emite ordens executivas em memorandos físicos ou por e-mail; ele raramente fala sobre elas, nem responde perguntas detalhadas. Biden não falou publicamente sobre o ataque hacker chinês contra empresas de telecomunicações americanas, que seus assessores descrevem como, possivelmente, a ameaça mais urgente à segurança nacional nos últimos seis meses. (Curiosamente, Trump também não disse nada, apesar de poder esclarecer por que o hack nas entranhas dos sistemas americanos de comunicação é uma ameaça ao governo dos EUA e à indústria privada maior que os portos chineses instalados há tanto tempo nas proximidades do Canal do Panamá.)

Com o titular de saída fora da vista do público, Trump parece ter certeza de que quando sobe no palanque ninguém é capaz de contestar sua interpretação da história recente. Ele está reescrevendo essa história rapidamente, da mesma forma que reinterpreta os eventos de 6 de janeiro de 2021, na esperança de que sua eleição se torne evidência de que os americanos acreditam que ele é perseguido por promotores de Justiça por vingança, não em nome da aplicação da lei.

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“É um grupo de gente doente, e tudo foi para influenciar a eleição”, disse Trump sobre as investigações lideradas pelo procurador-especial Jack Smith. “Tudo não passa de uma luta contra seu oponente político. Isso nunca aconteceu neste país. Isso aconteceu em certos países, em países de terceira categoria.” E, inevitavelmente, Trump começou a falar sobre as “repúblicas de bananas”, uma expressão corriqueira em seu primeiro mandato. Certas coisas não mudam./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Análise por David E. Sanger
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