Ameaças de anexação e tarifas de Trump impulsionam nacionalismo e deixam pleito no Canadá em aberto

A volta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a Casa Branca embolou o pleito canadense; Partido Conservador estava na liderança, mas semelhanças com Trump desagradam eleitorado

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Foto do author Daniel Gateno

As vaias de fãs canadenses durante o hino americano antes de um jogo de hockey entre Canadá e Estados Unidos em Montreal no mês de fevereiro indicavam que o clima amistoso entre os dois países tinha mudado. As fortes tarifas anunciadas por Donald Trump e a ameaça de anexação chacoalharam o panorama político canadense, alterando a perspectiva dos cidadãos sobre a economia do país e as próximas eleições. Se antes o pleito era sobre o impopular primeiro-ministro Justin Trudeau, agora é sobre quem pode enfrentar Trump.

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A mudança, aliada à renúncia de Trudeau em janeiro, acabou com a vantagem do Partido Conservador, de Pierre Poilievre, nas pesquisas eleitorais. Antes da volta do republicano à Casa Branca, a vitória de Poilievre era considerada certa por conta da inflação, alto custo de vida e uma certa fadiga com o primeiro-ministro, que está no cargo há dez anos.

“Pelos últimos dois anos Poilievre afirmou que Trudeau era o vilão e estava colocando o Canadá na direção errada. Mas agora, Trudeau renunciou e Trump passou a ameaçar o país com tarifas e anexação. O foco virou Trump”, aponta Eddie Sheppard, vice-presidente da Abacus Data, uma das maiores empresas de pesquisa do Canadá.

Karina Gould, Frank Baylis, Chrystia Freeland e Mark Carney concorrem ao cargo de líder do Partido Liberal do Canadá  Foto: Christinne Muschi/AP

O assédio do presidente americano ao Canadá injetou uma onda de nacionalismo no país e uma antipatia pelos Estados Unidos. O governo canadense alertou a população para se preparar para uma guerra comercial, com incentivos a compras de produtos canadenses no lugar de produtos americanos e a recomendação de não tirar férias no país vizinho.

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Nacionalismo econômico

A população está tentando fazer a sua parte. Em entrevista ao Estadão, a secretária canadense Shelly Zimmermann, moradora da cidade de Calgary, prioriza a compra de mercadorias do Canadá em relação a produtos americanos desde o primeiro mandato de Trump. “Eu busco sempre descobrir quais empresas são canadenses e compro o máximo que posso de produtos do Canadá. Às vezes é difícil porque os países são tão interconectados, mas eu faço o possível”.

Por conta de regulações governamentais e um mercado manufatureiro menor, os produtos canadenses são mais caros, mas isso não impede Shelly de seguir com seu patriotismo. “Se eu quero um produto feito no Canadá, eu tenho que aceitar que vou pagar um preço extra”, aponta a canadense.

Shelly afirma que recentemente comprou uma mobília produzida no Canadá e gastou 10% a mais do que se tivesse pedido as mercadorias em um site americano. A canadense também optou por comprar bebidas alcoólicas feitas no Canadá, o que também custou mais caro. “As marcas de bebidas canadenses não são grandes produtoras, o nosso mercado é muito menor. Então comprar um gin canadense de uma destilaria de Calgary custa consideravelmente mais”.

Para o brasileiro Carlos X {não quis ter seu nome revelado}, morador de Vancouver, as empresas que produzem suas mercadorias no Canadá estão identificando com mais ênfase os seus produtos para incentivar o comércio local. “Antes já buscava comprar produtos locais, mas também produtos americanos. Agora estamos querendo ajudar mais o Canadá”.

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O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, participa de uma coletiva de imprensa em Kiev, Ucrânia  Foto: Frank Gunn/AP

A busca por produtos canadenses levou o programa de comédia local 22 minutes, da emissora CBC, a brincar com a situação. Em um quadro do programa, dois homens estão no supermercado e um deles percebe que as compras do outro contém apenas produtos americanos. Após ser chamado de traidor, o homem que tem produtos americanos no carrinho substitui as mercadorias por produtos canadenses.

Após um acordo para o adiamento das taxas em fevereiro, Trump anunciou tarifas de 25% para produtos do Canadá, aumentando a incerteza da população sobre o futuro. Os canadenses sabem da dependência econômica do país em relação aos Estados Unidos. De acordo com o Observatório da Complexidade Econômica, site especializado em relações comerciais, os EUA são o maior parceiro comercial do Canadá e 71,4% das exportações canadenses vão para o país vizinho.

Por conta das consequências das tarifas e da ameaça de anexação, o nacionalismo cresceu, segundo Shelly. “Nos Estados Unidos nós vemos bandeiras do país em todo lugar e aqui não tínhamos isso, mas agora temos”, aponta a canadense. “As pessoas estão ressaltando mais o orgulho canadense e a necessidade de lutar pelo país”.

Pierre Poilievre

A alteração no cenário prejudicou o Partido Conservador de Pierre Poilievre. Nos últimos anos, o líder da oposição foi comparado a Donald Trump por sua retórica combativa e seu discurso sombrio sobre o futuro do Canadá. Poilievre também afirmou que usaria o “senso comum” para lutar contra as elites e a ideologia Woke, vocabulário clássico do trumpismo, e foi elogiado por conservadores americanos próximos de Trump e o bilionário Elon Musk.

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Antes favorável à aproximação com trumpistas, Poilievre tem o desafio de se distanciar de Trump neste momento. “A agressão de Trump aos canadenses e sua completa rejeição da identidade nacional do Canadá realmente prejudicou Poilievre e deu muita munição para seus opositores”, opina Jonathan Malloy, professor de ciências políticas da Universidade Carleton, em Ottawa.

Para Malloy, as tendências pró-EUA do Partido Conservador no Canadá deixam a tarefa ainda mais difícil para Poilievre. “Ser muito a favor dos EUA em um momento em que o país desenvolveu uma retórica anti-americana é complicado em um período eleitoral”. De acordo com uma pesquisa do instituto canadense Angus Reid, 91% dos canadenses querem que o país reduza a sua dependência econômica dos Estados Unidos.

O líder do Partido Conservador, Pierre Poilievre, participa de um comício em Ottawa, Canadá  Foto: Andrej Ivanov/AFP

Em resposta ao novo momento, Poilievre está tentando ajustar o seu discurso. Ele passou a adotar um novo slogan: “Canada em Primeiro Lugar” e culpou o governo de Trudeau pela dependência canadense de Washington. “Contra Trudeau, Poilievre podia ser um oposicionista com opiniões duras, mas agora ele precisa encontrar uma mensagem mais positiva sobre como seu governo seria”, aponta Malloy.

Mas para Lori Turnbull, professora de ciências políticas da Universidade Dalhousie, em Halifax, o líder da oposição construiu sua carreira como um político de “ataque” e é difícil mudar este perfil. “Eu não sei se ele consegue mudar, há 20 anos que ele é um político de ataque. O país quer algo diferente neste momento”.

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A volta por cima dos Liberais

A mudança eleitoral, que tirou o foco do governo Trudeau, caiu como uma luva no Partido Liberal. A legenda está passando por eleições internas para decidir o próximo líder do partido. O vencedor irá substituir Trudeau no cargo de primeiro-ministro e será o candidato que irá liderar o partido nas eleições canadenses, que precisam ser convocadas até outubro.

A votação começou no dia 26 de fevereiro e será definida no dia 9 de março. Segundo as pesquisas, o economista e ex-presidente do Banco do Canadá e do Banco da Inglaterra, Mark Carney, deve ganhar a disputa. O economista afirma que tem as credenciais para negociar com Trump e se diz especialista em resolução de crises.

Carney tem se colocado como um outsider e a estratégia está dando certo, avalia, Lori Turnbull. “Poilievre e Trudeau são políticos de carreira, Carney passou a sua vida inteira trabalhando em grandes posições. Ele tem a capacidade de angariar apoio de pessoas que não necessariamente votariam no Partido Liberal”.

Mark Carney, ex-presidente do Banco do Canadá, participa de uma coletiva de imprensa em Montreal, Canadá; ele é o favorito para vencer a disputa pela liderança do Partido Liberal  Foto: Andrej Ivanov/AFP

As pesquisas refletem a mudança de comportamento eleitoral. O Partido Conservador chegou a liderar as enquetes com 45% das intenções de voto, mas uma pesquisa do Instituto Ipsos publicada no dia 25 de fevereiro indica que o Partido Liberal tem 38% das intenções de voto contra 36% dos conservadores. Segundo o instituto, os liberais conseguiram ultrapassar os conservadores após estarem 26 pontos atrás.

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Outras enquetes ainda mostram os conservadores na frente dos liberais, mas por uma margem pequena. “Neste momento, o Partido Liberal tem o potencial de conseguir um governo minoritário, eles estão indo na direção certa”, avalia Eddie Sheppard, vice-presidente da Abacus Data.

Eleições

Caso Carney se torne líder do Partido Liberal, ele será o próximo primeiro-ministro do Canadá e terá a missão de liderar o país até as próximas eleições. O Partido Liberal conta com um governo minoritário e Trudeau sobreviveu a diversos votos de desconfiança para continuar sendo primeiro-ministro.

No sistema canadense, o chamado voto de desconfiança acontece quando um primeiro-ministro não governa com uma maioria e precisa aprovar legislação com apoio de partidos que não fazem parte de sua base. Caso um projeto não seja aprovado, entende-se que a Câmara dos Comuns não tem confiança no governo e novas eleições são convocadas.

Para Lori Turnbull, da Universidade Dalhousie, o vencedor das eleições do Partido Liberal deve convocar um pleito nacional em março. “Eles poderiam governar com um governo minoritário e um novo primeiro-ministro interino até outubro, mas os partidos da oposição já disseram que vão derrotar o governo o mais cedo possível”.

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A especialista destaca que nestas condições é possível ser primeiro-ministro interino do Canadá sem ter um assento no Parlamento do país, o que seria o caso de Carney. “O Parlamento teria que voltar a funcionar e Carney não estaria lá, então os conservadores poderiam criticá-lo sem a sua presença para responder. Por isso ele deve convocar eleições em março”.

Com os conservadores e os liberais empatados nas pesquisas, a tendência é que o governo siga com dificuldades para governar após as próximas eleições. “Se Poileivre conseguir um governo minoritário, eu não sei quem o apoiaria para aprovar projetos. Os liberais têm mais margem de manobra, mas com poucas opções”.

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