America’s Quarterly: No Chile e na América Latina, combate ao crime é a nova bandeira da direita

Taxa de homicídios no Chile dobrou na década passada, e teve alta vertiginosa de um terço somente em 2022

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Por Brian Winter
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SANTIAGO — Para um observador casual do Chile, o resultado das eleições pode ter sido surpreendente. Um país que há apenas um ano parecia estar passando por uma transformação progressista, com um presidente tatuado na casa dos trinta anos assumindo o cargo e uma nova e abrangente constituição aparentemente a caminho, parece agora estar pendendo no sentido oposto. Candidatos de direita dominaram a eleição de domingo que escolheu os constituintes, recebendo 62% dos votos e, provavelmente, garantindo que o modelo econômico chileno voltado para o mercado nas décadas mais recentes seja preservado mais ou menos intacto no futuro.

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Embora muitos sejam os motivos, incluindo a frustração do público com a inflação e os repetidos erros do presidente Gabriel Boric e seus aliados esquerdistas, um deles se destaca: o medo do crime e da violência. A taxa de homicídios no Chile dobrou na década passada, e teve alta vertiginosa de um terço somente em 2022, chocando um país que se orgulhava de ser um dos mais seguros da América Latina.

E, nisso, o Chile não está sozinho: outros países da região antes tidos como pacíficos, incluindo Equador, Uruguai, Argentina, Peru e Costa Rica, também viram o crime subir até o topo das pautas políticas, ou quase isso. Se a corrupção foi o grande tema que virou a política latino-americana de cabeça para baixo na década de 2010, o crime e a violência podem desempenhar o mesmo papel na década de 2020 em muitos países. A pergunta interessante é por quê - e se há algo que as lideranças podem fazer a respeito disso.

Passei vários dias no Chile no mês passado, e devo afirmar: partes de Santiago ainda parecem bastante seguras, especialmente para quem está acostumado a lugares como o Rio de Janeiro ou Bogotá. De fato, a taxa nacional de homicídios do Chile, na casa de aproximadamente 5 por 100.000 habitantes, ainda parece favorável se comparada à de lugares como o Brasil (19), a Colômbia (26) e até os Estados Unidos (6). Mas é claro que os chilenos não estão se comparando aos vizinhos, e a história vai além do simples dado dos homicídios. Em pesquisas, mais de um terço dos chilenos dizem ter sido vítimas, eles mesmos ou seus parentes, de um roubo ou tentativa de roubo nos três últimos meses.

Crimes de destaque como o assassinato de três policiais em menos de um mês, uma vítima de homicídio decapitada em abril e uma onda de roubos de carga de cobre, principal artigo de exportação do país, aumentaram a sensação de que o estado de direito está enfraquecendo. Não surpreende que agora 50% dos chilenos apontem o crime como principal problema do país, uma alta em relação aos apenas 13% que deram essa resposta após os protestos de 2019 que pareciam anunciar uma guinada à esquerda, e o atendimento de saúde, as aposentadorias e a desigualdade foram brevemente tratados como prioridades.

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Boric visita unidade policial que teve oficial morto durante onda de violência no Chile  Foto: Presidência do Chile/via EFE

Alta da criminalidade

O que está produzindo a alta na criminalidade? especialistas em segurança e funcionários do governo apontam para uma variedade de causas, incluindo a crescente presença de grupos internacionais do crime organizado como o Tren de Aragua, uma gangue com raízes no sistema prisional venezuelano, e mudanças nas rotas de transporte de drogas que tornaram portos chilenos como San Antonio embarcadouros ideais para a cocaína da Colômbia, da Bolívia e do Peru rumo à América do Norte e a Europa

. “Esses grupos estão se aproveitando do principal trunfo do Chile: nossa reputação de segurança e abertura”, disse-me um político, destacando que o fato de o Chile ter acordos comerciais com 65 países diferentes torna relativamente fácil para os contrabandistas a tarefa de ocultar drogas entre as famosas cerejas ou vinhos do país. Alguns analistas também culpam uma atmosfera de “vale tudo” que prevaleceu após os protestos de 2019, quando as impressões negativas da polícia cresceram muito, enquanto outros falam nos contínuos efeitos da pandemia para a saúde mental e a economia.

Combater o crime raramente foi prioridade para a esquerda latino-americana, e o governo de Boric merece algum crédito por se mobilizar para enfrentar um tema que “não estava no nosso radar quando chegamos”, como me disse francamente um funcionário do governo. O orçamento de 2023 prevê uma alta de 4,4% nos gastos com a segurança, e Boric também investiu pesado em novo equipamento para a polícia enquanto enviou o exército para deter mais imigrantes irregulares que cruzam a fronteira vindos do Peru.

Combater o crime raramente foi prioridade para a esquerda latino-americana, e o governo de Boric merece algum crédito por se mobilizar para enfrentar o problema

Essas medidas foram vistas como pesadas demais por parte da base de apoio de Boric, mas, nas palavras de outro funcionário do governo: “Percebemos que, se não fizermos isso à nossa maneira, valorizando a democracia e os direitos humanos, a direita será muito pior”. Independentemente disso, diplomatas estrangeiros dizem que o Chile ainda carece do equipamento, da capacidade de espionagem e do arcabouço jurídico necessários para lidar com a evolução da ameaça do crime organizado. “Eles estão 20 anos atrasados”, disse um deles. E é claro que políticos de todo o espectro ideológico continuam a martelar o assunto — o partido de José Antonio Kast, ultra-conservador derrotado por Boric no segundo turno da eleição presidencial de 2021, foi o grande vencedor da votação de domingo.

Problemas à direita

Se alguém pensa que o crime desafia somente a esquerda, pensemos no exemplo do que ocorre no Equador, onde um surto ainda mais alarmante nos homicídios e na violência entre gangues é o principal motivo que levou o presidente Guillermo Lasso, de direita, até o limiar de um impeachment.

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O presidente conservador do Uruguai tem dificuldade em domar uma taxa de homicídios que teve alta de um quarto no ano passado e, atualmente, equivale a três vezes a da vizinha Argentina. De fato, mesmo nesse país, onde a inflação está acima de 100% e uma provável recessão se aproxima, a criminalidade rivaliza com a economia entre as principais preocupações nas pesquisas de opinião conforme uma eleição presidencial se aproxima em outubro.

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Ainda que os motivos variem um pouco conforme o país, o insaciável apetite por drogas nos tradicionais mercados consumidores americano e europeu, e cada vez mais na própria região, é um fio óbvio que une todas as peças deste quadro. “A América Latina está produzindo mais cocaína do que nunca, e isso reverbera não somente nos Andes, mas em toda a América Latina”, disse Jeremy McDermott, especialista em criminalidade, em um episódio recente do podcast da America’s Quarterly.

Em meados da década de 2010, uma série de escândalos incluindo a operação Lava Jato sacudiu a política na região. Subitamente, a corrupção se tornou a grande prioridade nas pesquisas de opinião de muitos países, e a raiva diante do assunto varreu sucessivos governos surpreendidos. Hoje, o crime e a violência parecem estar ocupando essa mesma função: um problema real, sem dúvida, mas uma questão que é facilmente amplificada pelas redes sociais e corre o risco de ser explorada por líderes autoritários prometendo soluções miraculosas.

Não é por acaso que a repressão de segurança draconiana do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que resultou em 2% da população adulta do país encarcerada, em muitos casos sem direito a defesa, está ganhando tantos admiradores em toda a América Latina de hoje. Quando estive no Chile, ouvi o nome de Bukele ser evocado quase tanto quanto o de Boric, seja como modelo a ser seguido ou exemplo de um cenário de pesadelo. Uma pesquisa de opinião no mês passado mostrou que 53% dos chilenos são favoráveis à suspensão das liberdades constitucionais na Grande Santiago, e à presença das forças armadas nas ruas, com o objetivo de reduzir o crime. A não ser que Boric e todos os políticos de mentalidade democrática do país possam trabalhar juntos para abraçar o problema, o futuro do Chile pode vir a se parecer com o seu passado de maneiras muito mais destrutivas. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Brian Winter é editor-chefe da America’s Quarterly e um dos analistas políticos mais influentes da América Latina, acompanhando os altos e baixos da região há mais de 20 anos.

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