BUENOS AIRES — No atual debate econômico e político na Argentina, uma metáfora ouvida comumente é de uma bomba-relógio em contagem regressiva. À medida que os mercados financeiros locais secam apesar dos estritos controles de capital, a oposição alerta que a busca do governo por fontes custosas de financiamento podem apenas contribuir para mais fragilidade fiscal adiante.
Desdobramentos recentes que colocaram investidores em alerta incluem a emissão de obrigações “duplas”, com uma garantia cambial implícita, que dolariza a dívida em peso clandestinamente antes de uma esperada correção na taxa de câmbio, ou a opção de liquidar títulos do governo no banco central com um desconto moderado, um “cálculo” de liquidez que efetivamente diminui a zero a maturidade da obrigação. Essas medidas foram essenciais para tornar mais atraente o recente swap da dívida interna.
Mas as preocupações dos investidores não são apenas financeiras. Considere, por exemplo, o recente aumento nos benefícios de seguridade social para pessoas de contribuição insuficiente — em um país que já desfruta de benefícios de bem-estar social universais. Essa decisão, que, de acordo com uma estimativa da Comissão do Orçamento no Congresso, acrescentará um gasto líquido equivalente a 0,4% do PIB indefinidamente, contrariou o ministro das Finanças, Sergio Massa, e o comprometimento de sua equipe econômica com o Fundo Monetário Internacional — e refletiu fissuras crescentes na coalizão de governo.
Não está claro se alguma dessas medidas será suficiente para suprir o abismo financeiro diante do governo do presidente Alberto Fernández no último ano de seu mandato. As dificuldades recentes têm sido agravadas pela pior seca em 60 anos na Argentina, que ocasionou uma queda acentuada nas exportações de safras rentáveis, incluindo soja e milho. Tudo isso pode não aliviar o declínio constante em popularidade de Fernández, mas certamente complicará o delicado ato de reequilíbrio fiscal de qualquer um que possa suceder-lhe após as eleições marcadas para outubro.
Guerras frias
Esse tipo de dilema não é novo. Dois artigos de referência em economia do fim dos anos 80 buscaram estabelecer um modelo de comportamento de governos que fazem escolhas não cooperativas a respeito da dívida pública antes de eleições. Em uma versão, um presidente mal posicionado para se reeleger busca aumentar o déficit fiscal de maneiras não ideais, com objetivo de incutir suas preferências em relação a como o dinheiro é gasto — por exemplo, aumentando pensões permanentes de seguridade social ou programas de combate à pobreza. Em outra versão, um governo conservador é tentado a reduzir impostos e aumentar a dívida para forçar um sucessor mais progressista à austeridade.
Em ambas as hipóteses, esse viés pelo déficit, que pode resultar em sobre-endividamento, fragilidade financeira e até menos investimento e crescimento, é uma possível consequência da virada política natural somada à incapacidade de fazer compromissos críveis e intertemporais com a oposição em um contexto de polarização política e instituições fracas.
Já escrevi antes a respeito das consequências deletérias da “armadilha da continuidade” no contexto da Argentina. Aqui, eu quero colocar o foco sobre uma variedade da armadilha similar a uma “pílula suicida”.
Imagine, por um momento, que um presidente prestes a perder reeleição adote um padrão de gasto e endividamento impulsionado principalmente pelo objetivo de prejudicar seu oponente e provável sucessor.
Mais da Argentina
Tal decisão é perfeitamente compatível com outras motivações. Por exemplo, pode haver ganhos a curto prazo na forma de promoção da personalidade ou aumento na popularidade decorrentes de gastos não previstos em orçamento em questões que agradam a base do presidente. Mas essas motivações são incidentais: basta que as consequências deletérias dessas escolhas de políticas sejam persistentes o suficiente para comprometer o desempenho do oponente e suas chances de reeleição, aumentando a probabilidade do presidente voltar dali a alguns anos. Um pensamento essencialmente estratégico.
O que os oponentes podem fazer para se contrapor a esse comportamento oportunista? Poderiam anunciar, preventivamente, que qualquer gasto além (digamos, em qualquer item que não esteja incluído no orçamento aprovado pelo Congresso) e decisões de endividamento relacionadas seriam eventualmente “revisados”. Isso presumivelmente apavoraria investidores, limitando o escopo do governo para financiar seu jubileu de despedida.
Na teoria, esse jogo poderia resultar em um déficit mais elevado e um perfil de dívida pior, mas mantido dentro de certos limites. No mundo real, contudo, isso pode terminar em desastre financeiro e econômico.
Para começar, os alertas podem tornar os empréstimos ainda mais caros — e mais arriscados — em razão da maior probabilidade de um evento de crédito se temores a respeito de uma reestruturação fizerem secar as fontes de financiamento, levando o presidente a apelar para uma dívida externa com encargos difíceis de cumprir, difícil de dar calote e dolarizada. Isso somente aprofundaria os problemas do legado ao oponente.
Na realidade, mesmo se a estratégia preventiva do oponente for “bem-sucedida” em impedir acesso a novos fundos, ela poderá causar mais financiamento inflacionário — um perigo verdadeiro para um país como a Argentina, que, conforme a inflação chega a 100%, já caminha sobre uma corda-bamba nominal. Ou, além disso, ela poderá ocasionar uma corrida para liquidar títulos do governo e um calote prematuro, que provavelmente impediriam acesso a mercados financeiros voluntários por um longo tempo — talvez toda a duração do próximo governo. E mais, se for pressionado ao calote, o governo poderá simplesmente reprogramar a dívida para vencer no dia seguinte que seu sucessor assumir, forçando-o a começar a governar com ainda outra reestruturação.
É verdade que todos esses elementos podem prejudicar a imagem do presidente em um ano eleitoral, mas para o oponente isso renderia uma vitória pírrica, dada a breve duração das recordações políticas.
Da crise contínua à reforma contínua
De uma perspectiva a longo prazo, a Argentina tem vivido, com interrupções cada vez mais breves, em crise permanente há décadas. O país precisa de mais do que equilíbrio fiscal para sair da sua armadilha da renda média.
O déficit crônico e seus males associados — o peso fraco, falta de investimento, fragilidade macrofinanceira, polarização política e transitoriedades — são resultado do hiato entre as demandas sociais e os recursos públicos, que perfura a rede de bem-estar social e deriva de uma densa rede de privilégios, assim como a reforça. Nesse lapso jaz a defesa desses privilégios que, em última instância, favorecem o status quo e comportamentos não cooperativos entre políticos, líderes sociais e pessoas comuns em relação a reformas e mudanças verdadeiras. Um programa de estabilização só transformará a história do país se abrir a porta para uma reforma permanente.
No lado da estabilização, nós podemos listar algumas matérias pendentes: um balanço fiscal primário, uma política monetária anti-inflacionária, a recuperação do acesso ao mercado, uma política de renda para garantir uma retomada sustentável da renda real, uma integração inteligente ao mundo (não se trata de um cardápio: todos esses itens são necessários).
No lado da reforma, a lista é mais comprida. Para citar os elementos mais prementes: um acerto fiscal federal combinado a uma reforma nas taxações para eliminar ou reduzir encargos e formalizar a economia; uma reforma na previdência para sustentar o equilíbrio fiscal; um aumento nas políticas laborais com foco em treinamento e transição para empregos decentes como ferramenta-chave para inclusão social; uma lei de responsabilidade fiscal para limitar gastos conjunturais cíclicos e sobre-endividamentos. Em suma, um programa que necessitaria uma década de continuidade em políticas para render frutos.
Um tratado de não proliferação
Pouco pode se esperar em relação a este programa nos próximos nove meses. O governo perdeu credibilidade, e seu tempo se esgotou. Não é impossível pensar em coordenação de políticas para além das eleições e iniciar alguma agenda ambiciosa a ser continuada pelo próximo governo. Mas dado o grau de polarização (entre campos políticos e até dentro do governo), esperar por acordos que facilitariam essa cooperação — como a exibida no Uruguai ou na transição brasileira entre Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva — pareceria ingênuo na Argentina de hoje.
Em vez disso, o melhor que poderia se esperar para 2023 é que o governo se afaste da estratégia da pílula suicida, evitando uma guerra fria com a oposição de que, como na maioria das guerras, nenhum partido pode se beneficiar — pelo menos de uma economia já debilitada. Em outras palavras, um acordo tácito, sem estardalhaço midiático, que priorize os eleitores — todos eles! — em vez de interesses pessoais.
Cooperação nem sempre rende resultados nas urnas hoje em dia, mas compensa em resultados. Confronto e colapso nunca são inevitáveis. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Eduardo Levy Yeyati é diretor da Escola de Governo da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires, pesquisador-sênior visitante do programa de economia global e desenvolvimento da Brookings Institution e membro do conselho editorial da Americas Quarterly.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.