BRASÍLIA - O assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim, realizou 22 missões com sua própria equipe no exterior, durante o atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem a presença do petista. Os dados foram obtidos pelo Estadão por meio de cruzamento de dados do Portal da Transparência e do Diário Oficial da União.
Celso Amorim entrou na mira do Senado e da Câmara dos Deputados, sobretudo, por causa das viagens com objetivo de tratar de temas geopolíticos sensíveis, como a recente missão de observação eleitoral na Venezuela, concluída na terça-feira, dia 30, e a última visita à Rússia, no fim de abril.
A presença dele para responder a questionamentos dos senadores e deputados tende a ser motivo para desgaste do governo, pois coloca em debate a posição do governo brasileiro, sob Lula, e seu viés ideológico em relação a dois governantes autoritários com os quais o petista procura cultivas laços próximos, de Vladimir Putin e Nicolás Maduro. A reunião, no entanto, ainda não foi marcada.
O ex-chanceler terá de prestar esclarecimentos aos parlamentares sobre a pauta da viagem, teor das conversas e posições do País, em reunião reservada com deputados na Câmara. Procurado pela reportagem, o ex-ministro não se manifestou. O espaço segue aberto. Sua equipe confirmou ao Estadão que ele atenderá ao convite dos deputados em dia a ser agendado.
Os deputados queriam ouvi-lo antes do recesso parlamentar, mas a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden) acabou protelando para depois do recesso parlamentar. A data vem sendo negociada diretamente com a equipe do ex-chanceler no Palácio do Planalto.
A tendência é que a reunião com Amorim ocorra logo após a efetiva retomada de atividades congressuais em Brasília. Oficialmente, o recesso se encerrou em nesta sexta-feira, 2 de agosto. Novos pedidos de convocação de Amorim e até do chanceler Mauro Vieira são esperados na comissão.
No Caso do Senado, a convocação ainda precisa ser votada na comissão equivalente, a CRE. Se aprovado como proposto, o requiremento da senadora Tereza Cristina (MS), líder do Progressistas e ex-ministra de Jair Bolsonaro, levará o assessor especial de Lula forçosamente a prestar esclarecimentos “acerca de sua atuação como enviado do Brasil para acompanhar as eleições presidenciais ocorridas na Venezuela”. Ela pede um “relato detalhado sobre as observações feitas, as reuniões realizadas e as conclusões tiradas”.
“É fundamental que o representante do governo preste contas sobre sua missão oficial, garantindo que as ações tomadas em nome do Brasil estejam alinhadas com os interesses nacionais e com os princípios democráticos e de respeito à soberania dos países vizinhos”, justificou a senadora de oposição.
Discrição
Além de integrar as comitivas presidenciais pelo mundo, Celso Amorim cumpriu essas missões “sozinho” no estrangeiro, a mando do presidente. As 22 missões sem Lula foram realizadas entre janeiro de 2023 e julho de 2024, conforme os dados disponíveis sobre viagens a serviço dos integrantes do Poder Executivo federal. Esse deslocamentos não constam, no entanto, discriminados na agenda pública de Celso Amorim. Também costumam ser pouco detalhados.
As viagem, em sua maioria, são em destinos do Sul Global e a países do eixo liderado por Rússia e China para conter a influência americana e europeia no cenário geopolítico global. Ao longo do mandato, Lula tem se posicionado ao lado de chineses e russos em alguns temas, como o monopólio do dólar e pró-Palestina, além de defender uma posição entendida como pró-Rússia na guerra da Ucrânia.
Em um ano e meio de mandato, o assessor especial realizou as missões em perfil baixo, geralmente em sensíveis, em nome do presidente, acompanhado de poucos assessores de sua equipe. Quase sempre ele dialoga com seus pares, assessores ou conselheiros presidenciais em temas de segurança e política externa, mas também pode dar entrevistas ou palestras.
A Presidência da República adotou a prática de manter os deslocamentos de Amorim sob certa reserva, ao menos até o momento de sua realização. Não raro, os despachos de Lula costumam ser publicados no dia da viagem, sem muitos detalhes da agenda.
Mais de Celso Amorim
Diplomatas alegam que algumas missões relacionadas ao cargo de Amorim, comparável aos assessores de segurança de alguns presidentes, precisam ser realizadas com discrição. Ele foi preferencialmente escalado pelo petista para tratar de temas sensíveis, como a crise política na Venezuela e a guerra na Ucrânia.
Mais longevo ministro das Relações Exteriores no Brasil, Amorim foi chanceler de Lula nos dois primeiros mandatos (2003 a 2010) e seguiu sendo o principal conselheiro do presidente em política externa. Aos 82 anos, assumiu no atual mandato o papel de chefe da Assessoria Especial, cumprido antes pelo professor Marco Aurélio Garcia, um dos fundadores do PT. Ele despacha diariamente no Palácio do Planalto, junto a Lula e dá conselhos diversos.
Para integrantes da Assessoria Especial, Amorim tem mais protagonismo do que o antecessor - e faz tantas viagens - por causa da bagagem como ex-ministro e embaixador e da demanda atual de um mundo mais conflituoso. Lula o vê como um potencial mediador ou interlocutor, em disputas globais e regionais. Garcia era mais ligado ao partido, à integração regional e à inserção política latino-americana.
O ex-ministro foi responsável pela coordenação dos trabalhos no setor de Política Externa, em 2022, durante a campanha e na transição de governo, tendo triado a montagem da equipe diplomática do atual governo e opinado na escolha do embaixador Mauro Vieira como atual ministro das Relações Exteriores.
Críticos apontam que Amorim, na prática, continua sendo o “chanceler de fato” no governo, embora a chefia do Itamaraty seja exercida por Vieira
Mesmo dentro do governo, auxiliares do presidente e diplomatas veem Amorim como um “formulador” e Vieira como o “executor” das tarefas, embora em diversas ocasiões eles compartilhem o aconselhamento e a definição de estratégia. Ambos negam qualquer rusga por causa de protagonismo e se dizem amigos. De fato, não houve sinais externos de desavença entre eles, embora possam discordar. Ao menos fora do governo, Amorim é visto como um nome mais ideológico e vinculado do PT do que Vieira.
Se Amorim teve 22 missões no exterior sem o presidente, Vieira realizou 43 do tipo, adotando-se o mesmo critério, além de compor também as comitivas presidenciais. A agenda é diferente: a cidade que ele mais visitou foi Nova York, seis vezes, principalmente por causa da atuação brasileira no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Vieira fez giros para fomentar relações comerciais e políticas na Ásia, Oriente Médio, Europa e África. Visitou países do entorno do Brasil e na América Latina.
Críticos apontam que Amorim, na prática, continua sendo o “chanceler de fato” no governo, embora a chefia do Itamaraty seja exercida por Vieira, que foi seu chefe de gabinete. Não raro, o ex-ministro antecipa posições que mais tarde são confirmadas em decisões anunciadas por Lula e o Itamaraty.
Foi assim em maio, quando ele esteve com sua equipe em Pequim, na China. Na ocasião, o assessor especial disse que o embaixador Frederico Meyer não voltaria ao cargo em Tel Aviv, após ter sido humilhado na crise diplomática com Israel. Durante a mesma viagem, assinou com o chanceler chinês, Wang Yi, uma proposta conjunta de conferência internacional de paz “reconhecida tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia”. Amorim vinha defendendo que o Brasil não se engajasse mais em alto nível nas conferências de paz convocadas unilateralmente pela Ucrânia e aliados, sem que os russos estivessem representados. As duas decisões foram confirmadas por Lula.
Mapa-múndi
Parte das viagens de Amorim ao exterior, nos primeiros 18 meses de governo, ocorreu para participar dessas reuniões em que se discutia a chamada fórmula de paz ucraniana de Volodmir Zelenski. Foi assim em quatro passagens pela Europa: na França, na Dinamarca, na Suíça e na própria Ucrânia.
Sem acompanhar o presidente Lula, Amorim esteve uma vez em Havana, Cuba; Johannesburgo, África do Sul; Bogotá, Colômbia; Kingston, São Vicente e Granadinas; Bridgetown, Barbados; Davos e Genebra, Suíça; Copenhague, Dinamarca; São Petesburgo, Rússia; Kiev, Ucrânia; Berlim, Alemanha; Pequim e Xangai, China. O ex-chanceler foi ainda três vezes a Caracas, na Venezuela e duas a Moscou, na Rússia. Viajou cinco vezes a Paris, na França.
Nesses giros internacionais, Amorim tratou, entre outros assuntos, da guerra em Gaza, das condições para as eleições presidenciais na Venezuela, da disputa pela região do Essequibo, na Guiana, e da dívida do regime de Cuba com o Estado brasileiro.
Comissão
As viagens de Celso Amorim ao exterior pautaram debates na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Os deputados Rodrigo Valadares (SE) e David Soares (SP), conseguiram aprovar no mês passado a presença do assessor especial de Lula. Ambos fazem parte do União Brasil, partido que integra a base do governo, porém compõem a ala mais hostil a Lula.
Inicialmente, os parlamentares queriam aprovar um requerimento de convite para realizar uma audiência pública com Amorim. Neste caso, toda a argumentação do ex-ministro e dos deputados, a sessão de perguntas e respostas, é transmitida ao vivo e ocorre em plenário aberto.
O objetivo inicial era que Amorim prestasse esclarecimentos sobre a última visita à Rússia, em abril. Deputados da base do governo entraram em cena para transformar o requerimento de convite em uma reunião reservada - a intenção é que o conteúdo não seja divulgado.
Houve divergências com a ementa da proposta de audiência original. Os autores argumentaram que “chama a atenção” a “proximidade” do atual governo com a Rússia e o Partido Rússia Unida - de Putin - e que desde a posse de Lula em 2023 houve “diversos flertes com a autocracia comandada por Putin”.
Diz o texto inicial: “Considerando que as posições de Celso Amorim colocam o Brasil em um cenário nebuloso de se inserir em um conflito internacional ao qual há declaração de neutralidade, colocando assim a segurança e a soberania brasileira em xeque, justifica-se o presente requerimento”.
Advogado russo
Eles também querem explicações sobre a possibilidade de visita ao Brasil do líder russo, para participar da Cúpula de Líderes do G-20. Lula já manifestou que o russo está convidado, o que desperta temores na comunidade internacional. Putin tem contra si um mandado de prisão em aberto, expedido pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra, e o Brasil é signatário da Corte. Mas a possibilidade de prisão dele é considerada remota, e o Brasil já levantou a tese de que as regras do tribunal não se aplicam a países - e seus líderes - que não compõem o TPI - caso da Rússia atualmente. Lula chegou a dizer que ele não seria preso - depois recuou e afirmou que a questão cabe à Justiça.
“Ressalta-se que esta é a segunda visita de Celso Amorim à Rússia, com muitas das vezes o assessor da Presidência da República agir (sic) como uma espécie de advogado russo na mídia e nos organismos internacionais”, afirmaram os autores do requerimento.
O ex-chanceler foi blindado pela bancada de esquerda, do PT ao PSOL. Durante a negociação, até um bolsonarista defendeu modificar as condições em que Amorim deveria se apresentar à Câmara. Acabou prevalecendo um acordo para transformar o requerimento inicial em uma reunião reservada.
Nesse formato, apenas parlamentares, o depoente e servidores da comissão, além de técnicos e convidados pelo colegiado, podem assistir ao depoimento de Amorim. Ela é menos restritiva do que a reunião secreta, outra modalidade prevista no regimento da Câmara, na qual somente os parlamentares podem participar e as deliberações ficam sob sigilo.
O deputado General Girão (PL-RN), militar da reserva, argumentou que a reunião não poderia ser pública porque seriam tratados assuntos sensíveis, como o envio ou não de armamentos à guerra na Ucrânia. “São questões de Estado que não podem vazar”, disse o parlamentar.
David Soares disse inicialmente que o requerimento de audiência deveria ser aprovado para que Amorim esclarecesse o motivo de algumas visitas à Rússia, o que teria sido discutido com o chanceler russo Serguei Lavrov e o presidente Vladimir Putin - principalmente se eles abordaram na conversa privada em Moscou as condições do Kremlin para um acordo de paz; ou ainda assuntos de natureza bilateral e comercial.
“Certamente eu entendo que o Brasil esteja com alguma pré-proposta visando o fim do conflito ou de alguma relação comercial que o Brasil vem desenvolvendo e ainda não chegou ao público e até para que entender qual seria a próxima viagem dele a Kiev”, provocou Soares. Os deputados disseram que objetivo não era “atacar a Rússia”, mas compreender a pauta de Amorim. “Precisamos entender quais são os temas”, disse Valadares.
O ex-presidente da Câmara Arlindo Chinaglia (PT-SP), que integrou o grupo de relações exteriores na transição de governo, pediu que os autores retirassem o texto de justificativa da proposta de convidar Amorim. Ele propôs que, caso as razões fossem modificadas, passaria a defender que Amorim fosse à comissão para dar explicações.
“Gostaria que o ex-ministro Celso Amorim viesse, para que certas coisas fossem desmentidas por ele. Não há nenhum problema que ele venha. É função do Executivo explicar o que faz, óbvio”, disse Chinaglia. “Não podemos aceitar os termos, porque tem erros graves aqui. A justificação é inaceitável.”
O deputado Fausto Pinato (PP-SP) também entrou em cena e levantou a hipótese de que assuntos de interesse ultrassecreto poderiam ser debatidos, conforme a pauta original do requerimento. Ele lembrou que, pelas regras atuais acordadas na Câmara, somente ministros de Estado podem ser convocados ou convidados para dar esclarecimentos nesse formado. Alegou ainda que o questionamento deveria ser direcionado, neste caso, ao ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. O ministro já foi às comissões na Câmara e no Senado neste ano, mas pode ser obrigado a voltar.
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