No mesmo dia em que o presidente Donald Trump deveria divulgar “advertências” contra as “fake news”, o senador Jeff Flake, republicano do Arizona, atraiu momentaneamente a atenção do país com um discurso no Senado. Flake, crítico contumaz de direita de Trump, fustigou os rotineiros ataques do presidente à imprensa, lamentou que ele divulgue falsidades e salientou a importância da relação entre “verdade” e democracia.
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A lição de moral do senador provavelmente será bem recebida pelos críticos de Trump e pela castigada mídia de Washington. Mas dificilmente abalará Trump – que anteriormente debochou de Flake classificando-o de “inelegível” – ou seus apoiadores radicais que há anos mantêm com a imprensa uma relação de ressentimento e fúria. Embora Flake e alguns de seus aliados republicanos critiquem Trump por seu comportamento agressivo e mesmo perigoso, eles não têm muita voz no ecossistema que originou o tipo de político linha dura do presidente.
Flake também argumentou que o estrago causado por Trump em casa tem profundas implicações no exterior, citando líderes e funcionários de outros países que utilizam a retórica do presidente para investir contra dissidentes.
Essa é também a conclusão a que chegou nesta semana a Freedom House, uma organização não partidária de Washington que fiscaliza o desempenho de políticos, em seu relatório anual sobre a situação da democracia no mundo. A organização usa os próprios parâmetros para avaliar a saúde da democracia, classificando os países de “livres”, “parcialmente livres” e “não livres”. Em 2017, segundo o sumário executivo redigido por Michael Abramowitz, presidente da organização, “os direitos políticos e as liberdades civis em todo o mundo chegaram a seu ponto mais baixo em mais de uma década”.
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A Freedom House tuitou: “Pelo 12º ano consecutivo, nossos pesquisadores constataram um declínio global da liberdade. Com os EUA enfraquecidos como líderes da democracia, os direitos básicos estão sob ameaça em todo o mundo...”. A organização denuncia que nesses 12 anos o declínio democrático foi acelerado por nações que antes pareciam “promissoras” – como Turquia e Hungria – e hoje “caíram em mãos de governos autoritários”.
Em 2017, porém, assinalou o relatório, a situação global da democracia tornou-se “mais sobria que nunca em consequência da retórica das ações da administração Trump”. “A democracia está sob ataque e recua em todo o globo, uma crise que se intensificou à medida que os padrões democráticos dos Estados Unidos iam se deteriorando em ritmo acelerado.”
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A FreEdom House lamentou “o abandono pelos Estados Unidos” de seu papel de tradicional defensor dos princípios democráticos no mundo. “Como já vínhamos notando, Trump substituiu a defesa de direitos e valores universais pela pregação de uma tacanha identidade cultural ou civilizacional que leva a divisões nas sociedades ocidentais.” Segundo Abromowitz, “o líder americano manifestou admiração ou mesmo declarou amizade for alguns dos piores ditadores e homens fortes do mundo”.
Embora às vezes o governo Obama “não tenha sido capaz”, segundo Freedom House, de defender os ideais democráticos dos EUA em todos os países, Trump “tornou explícita – por palavras e ações – sua intenção de abandonar princípios que nortearam a política dos EUA e formaram as bases da liderança americana nas sete últimas décadas”.
Uma reportagem recente divulgada pelo site BuzzFeed sobre ataques à imprensa e à sociedadecivil em países do Sudeste da Ásia mostra que isso vem tendo efeitos reais. “Organizações locais de direitos humanos estão isoladas e seus governos sabem disso”, afirmou Phil Robertson, vice-diretor da divisão asiática do Human Rights Watch, ao site. “Ditadores estão aproveitando a oportunidade para avançar, uma vez que a grande voz dos direitos humanos não está mais se fazendo ouvir.”
Vale notar, como defensores da política exterior de Trump já fazem, que Freedom House não está isenta de preconceitos e seu sistema de avaliação de democracias frequentemente acompanha os pontos de vista subjetivos do establishment intervencionista de Washington.
Mas, com Trump completando seu primeiro ano no poder, as indagações sobre o impacto de sua presidência continuarão a aumentar. Nesta semana, quando ocupar o centro do Fórum Econômico Mundial, em Davos, o presidente terá nova oportunidade de mudar a narrativa de seu turbulento governo. Mas que ninguém se surpreenda se ouvir mais do mesmo. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
Ishaan Tharoor é jornalista
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