A tragédia da guerra civil voltou a assombrar o Líbano. O nível de tensão social é dramático e a população, em fúria com o seu sistema político, exige mudanças drásticas. O país está à beira da catástrofe total.
A cleptocracia sectária que presidiu a dinâmica de conchavos e de acomodação de interesses entre os mais variados grupos políticos do país, nas últimas três décadas, foi emparedada pelas manifestações. Contudo, a estratégia de apear do poder todas as forças políticas – e transplantar outras – tampouco é realista.
Qualquer processo transformador dependerá não apenas de entendimento interno, mas, também, de como os atores regionais e internacionais irão se posicionar com respeito ao delicado equilíbrio sociopolítico que governa o sistema de freios e contrapesos do Líbano.
Pode parecer que o futuro do país depende dos libaneses; mas, no fundo, o destino do Líbano está preso às amarras da arquitetura de segurança regional e ao papel das potências tutelares que hoje influenciam a geopolítica no leste do Mediterrâneo.
Para além do gesto de solidariedade, o desembarque do presidente francês, Emmanuel Macron, em Beirute, não deixa de estar vinculado à redefinição do papel geoestratégico de Paris na região do Levante. A Rússia, que já havia retomado sua posição de tutela sobre a Síria, terá agora a companhia da França, que reassumiu, em definitivo, as rédeas do Líbano, após hiato de duas décadas.
Para Paris, o Líbano, que havia perdido proeminência na agenda diplomática do Quai d’Orsay, recuperou valor estratégico em razão dos efeitos da guerra síria e de seus resultados sobre o concerto europeu. Também favoreceram a retomada da importância estratégica do Líbano as fendas criadas pela aliança euro-americano-saudita ao buscar conter a expansão do poder do Irã e de seus aliados na região.
É importante compreender que a inflexão na política francesa se valeu de erros fundamentais cometidos pelos EUA e pela Arábia Saudita. A estratégia de “pressão máxima” do governo Trump não funcionou conforme o esperado: o regime sírio sobreviveu e o Irã expandiu sua influência.
Por sua vez, os sauditas pecaram pela falta de visão política e não souberam ter paciência estratégica para fazer avançar seus interesses no Levante. A implosão das pontes sauditas no Líbano se materializou quando, em 2017, Saad Hariri, então primeiro-ministro do Líbano, foi detido em pleno aeroporto de Riade quando desembarcava para reunião de trabalho.A humilhação imposta pelo príncipe herdeiro, Mohammad Bin Salman, perante os aliados de Hariri, dilacerou o capital político do ex-premiê libanês. O resultado foi a derrota do arco de alianças de Hariri na eleição parlamentar de 2018.
O anacronismo das visões estratégicas e da abordagem diplomática no âmbito do bloco pró-Ocidente fez com que a França se descolasse e se posicionasse na fronteira da rivalidade geopolítica entre a coalizão americano-saudita e a aliança russo-iraniana no contexto regional.
Macron compreendeu que a consecução dos interesses franceses e a restauração da ascendência da França no Levante dependem primordialmente da construção de eixos de equilíbrio entre os polos do contencioso, e não do emprego da estratégia de “pressão máxima” como fórmula de anulação política. Se a política de sanções ao Líbano funcionasse, o bloco pró-russo-iraniano não teria vencido as eleições. Tampouco teria sobrevivido.
São estruturalmente díspares o modus operandi da diplomacia francesa e o método empregado pela diplomacia americana para a solução do impasse libanês. A ação diplomática francesa, sob a liderança de Macron, visa intervir em variáveis com vistas à preservação do delicado equilíbrio sectário – sem vencedores ou derrotados. Já a linha seguida pela administração Trump parte da premissa de que quaisquer movimentos têm de buscar engendrar aquilo que melhor atende aos interesses securitários de Israel. Isto restringe a margem de manobra dos EUA a poucos aliados.
Para o Quai d’Orsay, não é possível revogar a legitimidade popular dos grupos vencedores de uma hora para outra. As transformações políticas precisam também se traduzir em voto nas urnas – assim como o próprio processo de renovação de lideranças. Mesmo com toda a corrupção que acomete o sistema político libanês, o processo de transição, ao ver de Paris, precisa ser conduzido de forma cuidadosa e paulatina – sem deixar vácuo de poder no cenário interno.
Essa dicotomia, enfim, fez do Líbano refém de dinâmica deletéria, entre o conflito social e a corrupção. E obviamente não será pelas mãos de quem está hoje no poder que as transformações das quais o país necessita irão de fato ocorrer.
*Hussein Kalout é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.
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