Algumas democracias do mundo estão em um ano difícil. Em Mianmar, onde o legado de meio século de governo militar começou a esmorecer em 2010, um golpe de Estado, na segunda-feira, determinou a prisão da líder Aung San Suu Kyi, eleita democraticamente. No dia seguinte, o líder opositor russo Alexei Nalvalni foi sentenciado a 32 meses de prisão por supostas violações de liberdade condicional, após ter deixado seu país para buscar tratamento médico em razão da tentativa de assassinato da qual ele escapou por pouco.
Na Índia, a democracia mais populosa do mundo, uma recente onda de protestos de agricultores levou a bloqueios do acesso à internet, restrições em redes sociais e intimidação de jornalistas. E os Estados Unidos, há muito tempo os autoproclamados defensores das normas democráticas, ainda estão lidando com as consequências da tentativa do ex-presidente Donald Trump de reverter o resultado das eleições do ano passado e do subsequente ataque violento contra o Capitólio.
A Economist Intelligence Unit (EIU), grupo de pesquisa e análise comm sede em Londres, quantificou esse declínio em um relatório publicado na quarta-feira. A pesquisa anual, que classifica o estado da democracia em 167 países com base em indicadores que incluem processos eleitorais e respeito às liberdades civis, revelou que somente 8,4% do mundo viveu sob democracias plenas no ano passado, enquanto mais de um terço viveu sob governos autoritários. Em uma escala de 0 a 10 para a medição da democracia, a pontuação média global caiu para 5,37 — a nota mais baixa desde que a EIU iniciou o estudo, em 2006.
Não há nenhuma dúvida de que a democracia está em declínio. Difícil é explicar exatamente por quê. Uma razão é a pandemia, uma crise de saúde pública que motivou muitos países a impor restrições sem precedentes. “Confrontada com uma doença nova e mortífera, a maioria das pessoas concluiu que evitar uma perda catastrófica de vidas justificava alguma perda temporária de liberdade”, escreveu a Economist. Mas a ameaça à democracia não surgiu com o coronavírus. Dados da Freedom House mostram que mais de 100 países viram seus níveis de liberdade declinar desde 2016, enquanto alguns poucos tiveram melhorias.
O ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro, deu uma sensação de desilusão e derrota a grupos pró-democracia aliados dos Estados Unidos. “Nosso principal aliado na luta pela democracia tombou”, afirmou ao Post o ativista venezuelano Jorge Barragán naquele momento. “O que isso significa para nós?”
Quando os militares de Mianmar anunciaram o golpe justificaram fazendo alegações infundadas de fraude eleitoral. “Os militares de Mianmar fizeram o que Trump tentou fazer”, tuitou na segunda-feira Kenneth Roth, diretor executivo da Human Rights Watch.
Alguns críticos questionam, com razão, como os Estados Unidos e seus aliados podem pensar em passar um sermão sobre democracia a quem quer que seja quando os próprios regimes estão sob pressão. Líderes autocráticos sugerem que, simplesmente, existem diferentes regimes no mundo. Quando falou ao Fórum Econômico Global, na semana passada, o líder chinês, Xi Jinping, disse que há “preconceito ideológico” e “ódio”. Nenhum país pode existir em uma bolha, sem sofrer influência das mudanças mais amplas na geopolítica. E, na batalha entre democracia e autocracia, parece que a última está ganhando terreno. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
* É JORNALISTA
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