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Análise: África, política externa e a consciência negra

É de interesse estratégico do Brasil buscar aprofundar a integração junto aos países africanos em razão de vários aspectos; além disso, trata-se de desígnio moral para o País

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Por Hussein Kalout
Atualização:

A África é inseparável da formação do Brasil e do nosso DNA social e, mais do que isso, de nossa evolução histórica, identidade cultural e crenças religiosas. A dívida da nação com a comunidade afrodescendente brasileira é impagável sob qualquer ótica e os esforços do Estado brasileiro nesse processo de reparação são ainda paliativos.

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O regime escravocrata no Brasil somente acabou após ameaça da Grã-Bretanha e graças à perseverança do movimento abolicionista brasileiro – de grandes homens como Luiz Gama, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco. Todavia, a Casa Grande já havia consolidado o seu poder político e social na direção de criação de estamentos, introjetando no pensamento nacional a demarcação da superioridade dos brancos sobre os negros. Alforriados pela Lei Áurea, os negros brasileiros seguiram sendo tratados como cidadãos de segunda classe – inferiorizados, em todos os sentidos.

A escravidão no Brasil pode ter acabado, contudo, não as suas graves consequências. A alma de nossa sociedade não se desprendeu, ainda, de sua empedernida índole escravagista e racista. Questiona-se muito, ainda, se o racismo no Brasil é estrutural e sistêmico (pasmem!).

Monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares na Avenida Presidente Vargas, na região central do Rio de Janeiro Foto: Fábio Motta/Estadão

É o questionamento do inquestionável pela obviedade dos números e pela eloquência da realidade no terreno. Os negros compõem de longe o maior contingente nos bolsões de pobreza do país – isso é estrutural. A nossa sociedade condicionou o negro a não ter o direito a sonhar como o branco. O ponto de partida de um e de outro, na hora de se inserir na cadeia econômica, é absolutamente díspar – isso é sistêmico.

Na semana em que se celebrou em nosso país o Dia da Consciência Negra, o Brasil reforçou a sua lamentável falta de consciência. O que esperar de um governo que não reconhece a existência do racismo no país, que exclui Milton Nascimento da lista de personalidade negras e que coloca a África em compasso de baixíssima prioridade no mapa de sua política exterior?

Aqui a reflexão se faz necessária. É preciso falar da política externa para África pelo que se tornou a nossa diplomacia para o continente negro. A inércia, mal disfarçada por discursos pontuais ou viagens de cunho religioso, está sendo travestida de “missões pelo interesse nacional”. Em primeiro lugar, as relações diplomáticas do Brasil com o continente africano são um desígnio moral.

Em segundo, é de interesse estratégico do Brasil buscar aprofundar a integração junto aos países africanos em razão de vários aspectos. A fronteira do Atlântico Sul é questão vital para segurança nacional brasileira. A criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), em 1986, por iniciativa do governo Sarney, foi um dos grandes movimentos estratégicos de nossa diplomacia - essa iniciativa aglutinou diversos países africanos lusófonos, francófonos, anglófonos, além da Argentina e do Uruguai.

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Desde então, a Marinha brasileira vem orientando a sua bússola para a proteção de nossas fronteiras marítimas – e isso sem mencionar a importante cooperação com a marinha da Namíbia. Da perspectiva econômica, é preciso que o Brasil enderece com mais acuidade as grandes oportunidades econômicas que emergem no continente africano.

É preciso de estratégia específica e contínua na expansão do comércio, especialmente, onde o PIB de vários países demonstra sólido crescimento. O Brasil precisa definir se quer ser um grande parceiro no desenvolvimento econômico da África ou se quer ficar a reboque de outros países.

Enquanto a China, Turquia, Alemanha e Índia, procuram expandir a sua inserção econômico-comercial, o Brasil fecha representações diplomáticas e deixa outras sem instrução política e operando de forma precária. Não seria exagero dizer que o Brasil é a única potência extrarregional que não paira sobre a sua atuação desconfianças neocoloniais.

Fomos sempre bem-sucedidos em nossa atuação na Missões de Paz da ONU no continente, como foi no Congo sob a liderança do general Santos Cruz. Desde 1970, a atuação brasileira na África tornou-se natural e o capital político foi traduzido em apoio efetivo aos candidatos brasileiros para os foros multilaterais como foi o caso da FAO e da OMC. Sem o voto africano os candidatos brasileiros, José Graziano e Roberto Azevedo, não teriam sido eleitos.

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E qualquer aspiração que nutramos no âmbito do sistema multilateral dependerá, em boa medida, do beneplácito do voto africano. Os projetos de cooperação bilateral com a África via Agência Brasileira de Cooperação (ABC) fizeram parte de nossa política externa desde o início dos anos 1990. Todos os governos trataram o continente com a devida importância estratégica e como referência fundamental para a nossa identidade nacional.

Os profissionais que atuam nas áreas técnicas do Itamaraty sabem da importância da matéria. Manter os projetos de cooperação em curso não é precisamente formular. Receber e despedir embaixadores africanos são apenas atos litúrgicos da cortesia diplomática. É preciso ir além disso. É preciso formular no nível mais alto de Estado. Os dividendos amealhados desde os anos 1970, graças ao esforço de Embaixadores como Azeredo da Silveira, Ítalo Zappa e Alberto da Costa e Silva, quando o Brasil inaugurou a sua diplomacia africana, precisam ser preservados. E a preservação não pode existir apenas no discurso.

Durante o governo Geisel, a Brasil participou da Conferência Mundial contra o Apartheid e da Primeira Conferência Mundial contra o Racismo, ambas realizadas em 1978. Geisel abriu 14 Embaixadas na África. Figueiredo foi o primeiro Chefe de Estado a visitar o continente – esteve na Argélia, Nigéria, Senegal, Cabo Verde e Guiné Bissau. O pináculo da diplomacia brasileira para a África se deu entre 2003 e 2010.

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O presidente Lula esteve em 23 Estados africanos e o Chanceler Celso Amorim, cumpriu 66 missões oficiais ao continente, visitando 25 países. Foi nesse período, precisamente, que o Brasil mudou os paradigmas de sua diplomacia africana. E isso sem contar que nesse mesmo período 109 visitas de autoridades africanas m– entre chefes de Estado e de governo e ministros do exterior – foram realizadas ao Brasil.

O legado africano Lula-Amorim elevou a estatura do Brasil. A continuidade se deu no governo Dilma e no governo Temer. O Chanceler Aloysio Nunes Ferreira, levou ao pé da letra a valor do universalismo na política exterior e esteve presente em 14 países africanos.

Vale ressaltar, ainda, a impecável e decisiva atuação do Chanceler Celso Lafer durante a Conferência Mundial de Durban contra o Racismo, em 2001. A sua contribuição pavimentou os caminhos para que, no pós-Durban, o movimento negro brasileiro e o Itamaraty pudessem adensar a sua interlocução na formulação de posições estratégicas em matéria de direitos humanos na ONU e na OEA – foi a coroação da dimensão africana na política exterior brasileira.

Enquanto vetor ideológico for o fator condicionante das linhas da política externa, os equívocos seguirão trucidando os interesses do Estado brasileiro e a relação com o continente africano será uma das grandes vítimas desse processo. Enquanto a África valer menos no mapa cartesiano da política externa brasileira, o país seguirá ferindo a sua consciência africana de morte.

* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

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