WASHINGTON - Desde o início do escândalo da Ucrânia, Marie Yovanovitch tem sido uma espécie de digressão. Ela estava relacionada com a coisa toda porque foi afastada do cargo de embaixadora dos EUA em Kiev enquanto tudo acontecia.
A maneira como ela foi demitida foi particularmente feia, com testemunhas descrevendo esta como uma “campanha de difamação”. A teoria fácil - e adotada pelos democratas nas audiências de impeachment - era de que tudo isso ocorreu porque ela era um obstáculo aos esforços da equipe de Donald Trump para garantir investigações politicamente úteis sobre o ex-vice-presidente Joe Biden e seu filho Hunter.
Novos documentos apresentados pelo advogado Lev Parnas, no entanto, sugerem algo mais específico em andamento: um esforço para remover Yovanovitch como um favor à Ucrânia em troca de informações sobre os Biden - essencialmente, um outro 'toma lá, dá cá' (quid pro quo, como se referem os americanos).
Os documentos foram entregues aos investigadores da Câmara por Parnas, um sócio do advogado pessoal do presidente Trump, Rudy Giuliani, que foi indiciado e, desde então, tem dado informações importantes sobre o escândalo na Ucrânia.
O argumento mais citado é o de que Yovanovitch pode estar sob algum tipo de vigilância. Isso explicaria por que lhe disseram para deixar a Ucrânia no meio da noite. Yovanovitch testemunhou que lhe disseram que a chamaram por preocupações com sua segurança. "Você precisa voltar para casa imediatamente."
Mas, por mais desagradável que seja, as maiores notícias imediatas no impeachment de Trump são as negociações sobre barganhas em torno da embaixadora. Tudo sugere que os ucranianos talvez estivessem mais interessados em remover Yovanovitch do que Giuliani e companhia.
A revelação mais problemática é uma referência a algum tipo de “preço” referente a Yovanovitch. Em mensagens de texto com Parnas, Robert Hyde - um lobista republicano, candidato ao Congresso e grande defensor de Trump - fala sobre os movimentos de Yovanovitch e o uso de celulares e computadores.
Então ele acrescenta, talvez ameaçadoramente: “Eles estão dispostos a ajudar se nós/você desejarmos um preço”. Ele diz no próximo texto: “Acho que você pode fazer qualquer coisa na Ucrânia com dinheiro... foi o que me disseram.”
Não está exatamente claro a qual preço ele se referia, mas o próximo texto sugeria que era algo potencialmente nefasto. Também não está claro quem são “eles”, mas parece ser alguém do círculo de agentes adjacentes a Trump.
Talvez a evidência mais clara esteja em mensagens de texto em russo entre o então procurador-geral ucraniano Yuri Lutsenko e Parnas. Neles, Lutsenko faz alusão repetida a uma troca envolvendo a expulsão de Yovanovitch e os Biden.
'E aqui você não pode se livrar de um idiota'
Lutsenko diz a Parnas: “É só que, se você não tomar uma decisão sobre a senhora - questionará todas minhas declarações. Inclusive sobre B." (“Senhora” é claramente uma referência a Yovanovitch, e “B” é aparentemente uma referência a Hunter Biden ou Burisma Holdings, a empresa que empregou Hunter Biden, com base em textos posteriores)
Lutsenko diz que há “testemunho sobre transferências para B” e acrescenta: “E aqui você não pode se livrar de um idiota: (“Parnas responde: "Ela não é uma simples idiota, confie em mim”. E em seguida: “Mas ela não está fugindo”).
Depois, Parnas diz a Lutsenko que “em breve tudo vai mudar e nós estaremos no caminho certo”, Lutsenko responde dizendo que ele tinha cópias dos pagamentos que a Burisma fez à empresa de investimentos cujo cofundador é Hunter Biden.
Todos esses textos se referem a conversas mantidas no fim de março. Yovanovitch foi removida do cargo no mês seguinte.
As mensagens remontam a outros textos entre Andri Yermak, alto assessor do presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, e altos funcionários do governo Trump. Nesses textos posteriores, o anúncio de investigações está repetidamente ligado a uma reunião na Casa Branca para Zelenski.
Nelas, a demissão de Yovanovitch está repetidamente ligada a informações potencialmente prejudiciais sobre os Biden. Em ambos, a troca é semelhante: um favor oficial do governo dos EUA para a Ucrânia em troca de algo pessoalmente benéfico para Trump.
A ideia de que Lutsenko estava interessado na saída de Yovanovitch não é novidade. Adam Entous, do The New Yorker, o entrevistou longamente e revelou o desentendimento de longa data de Lutsenko com Yovanovitch - e talvez sua motivação para fechar alguns acordos com Giuliani (e, por extensão, o governo dos EUA) sobre isso.
Enquanto alternava bebidas – uísque duplo, Coca-Cola, uísque duplo e cerveja -, ele criticou seu tratamento por parte de diplomatas americanos, incluindo Yovanovitch, que, ele acreditava, havia injustamente favorecido seu rival, o chefe de um novo departamento anticorrupção na Ucrânia, e o quadro de jovens ativistas que examinavam cada movimento seu.
“Perguntei a Masha”, disse Yovanovitch. “Por que eu, que estava na prisão, eu que fui comandante de rua em duas revoluções?” ele disse, ironizando. “Eu sou o bandido e eles são os soldados corajosos?”
Nos últimos dois anos, Lutsenko, buscando reforçar sua reputação e suspeitando que Yovanovitch tentava miná-la, estava ansioso para organizar reuniões de alto nível para ele mesmo em Washington, começando com o secretário de Justiça Jeff Sessions. Quando ouviu rumores de que Yovanovitch e outras autoridades americanas estavam bloqueando as reuniões, ele ficou cada vez mais ressentido.
Lutsenko também foi a fonte da alegação de que Yovanovitch havia fornecido a ele uma lista de americanos que a Ucrânia não poderia acusar - uma lista de “não processar”. A alegação veio em uma entrevista com John Solomon, do jornal The Hill, mas Lutsenko mais tarde a desmentiu.
É importante observar que Parnas não é um funcionário do governo Trump ou empregado de Trump. Mas ele, há muito tempo, é um canal entre o advogado pessoal de Trump e os principais ucranianos e fala russo.
Ele também estava falando sobre algo que apenas o governo dos EUA poderia fornecer: a remoção de Yovanovitch. E ele parecia estar bem ciente do objetivo aqui; outra nota manuscrita, aparentemente de Parnas, diz: “Leve Zalensky (sic) a anunciar que o caso Biden será investigado” - um outro quid pro quo que pode ser conectado à equipe de Trump. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO
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