Enquanto o Conselho de Segurança da Nações Unidas fazia uma reunião emergencial para discutir a iminente invasão russa a Ucrânia em 24 de fevereiro deste ano, Vladimir Putin mandava seu Exército bombardear Kiev. Ao secretário-geral da ONU, António Guterres, restou apenas um vazio – e um pouco patético – apelo para que Putin desse uma “chance a paz”. Foi, nas palavras do próprio Guterres, o momento mais triste do seu mandato.
Se havia alguma dúvida de que o timing do início da guerra na Ucrânia representava o desprezo do líder russo por um dos pilares da atual ordem internacional, Putin mais uma vez deixou claro que entende de simbolismos. Escolheu a abertura dos trabalhos da Assembleia-Geral da ONU deste ano, que pela primeira vez desde o início da pandemia fazia o encontro de forma presencial, para comunicar uma nova e mais perigosa etapa da guerra na Ucrânia. Para não perder o costume, aproveitou para novamente ameaçar o mundo com uma hecatombe nuclear. E dessa vez achou por bem incluir a garantia de que não estava blefando.
Tudo isso horas antes de Joe Biden chegar a Nova Iorque, o que significa que seus assessores provavelmente tiveram que revirar a noite reescrevendo seu discurso. Apesar disso, Biden fez um pronunciamento sem muitas surpresas. O tema central foi o mesmo desde sua eleição: a defesa dos pilares da ordem internacional construída, patrocinada e sustentada pelos Estados Unidos desde o final da 2ª Guerra, da qual a ONU é um dos produtos.
Biden enxerga as dinâmicas do sistema internacional atual como sendo caracterizado por uma disputa entre autocracias e democracias. Nesse sentido, tanto Rússia quanto China representam um desafio a essa ordem, vindo do campo autocrático. Apesar de, como esperado, Biden dedicar grande parte de seu discurso a invasão russa, ele não deixou de mencionar aquilo que chama de “competição” com China. Há que se mencionar que nem Putin nem Xi Jinping foram a Nova Iorque participar da abertura da Assembleia-Geral.
Atrair o Sul Global
É a partir desse contexto que devemos entender a sua defesa, que gerou algum burburinho no Sul global, de assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU para países da África, América Latina e Caribe.
Biden e seus assessores sabem que são apenas palavras ao vento. Afinal, é difícil imaginar, por exemplo, que os Estados Unidos de repente tenham decidido defender um assento permanente no Conselho de Segurança para o maior país caribenho: Cuba. Ou ele pretende que o Haiti ou Granada ocupem tal posição? Além de tudo, qualquer reforma no Conselho de Segurança precisa contar com o apoio dos atuais 5 membros permanentes, o que as últimas décadas de existência da ONU tem deixado claro tratar-se de uma ilusão.
Biden citou essas três regiões em específico não para defender uma reforma real, mas com a finalidade de angariar apoio na sua cruzada em defesa da ordem internacional atual. Afinal, é justamente na América Latina, África e Caribe que a China vem ganhando cada vez mais espaço, deslocando os Estados Unidos da posição de principal parceiro em diversos países da região.
É também nessas regiões em que muitos países têm adotado posturas ambivalentes com relação a guerra na Ucrânia. Portanto, Biden aproveita o discurso para sinalizar para esses países que eles também deveriam ter interesse na manutenção da atual ordem, bastando para isso algumas reformas cosméticas.
O problema para Biden é que desafios a ordem internacional atual não começaram agora e não vem apenas de China e Rússia, mas também dos próprios Estados Unidos. A invasão do Iraque em 2003, ignorando ostensivamente a ONU, e a eleição de Trump em 2016, com uma agenda pouco interessada na manutenção dessa ordem, contribuíram para o seu enfraquecimento. As recentes ações de Putin são, portanto, apenas mais um lembrete da fragilidade da ONU diante das grandes potências.
*É professor de Relacoes Internacionais do Berea College (Kentucky, EUA)
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