Quando o indiciamento federal contra o ex-presidente Donald Trump foi revelado, na sexta-feira, dia 9, eu vasculhei as reportagens procurando alguma bomba que, acreditei, estaria lá — talvez alegações sobre ele ter fornecido documentos secretos para alguma potência estrangeira ou ter se valido de segredos para ganhos nos negócios. Exceto por algo assim, eu estava convencido que acusações não seriam processadas.
Eu estava errado. As 37 acusações no indiciamento de Trump tiveram como base principalmente informações já conhecidas do público. Conforme noticiou o Post, “o grosso das acusações” — 31 — “relaciona-se a retenção deliberada de informações de defesa nacional”, tecnicamente violando a Lei de Espionagem. Essa legislação foi criada em 1917, “para coibir atividades de tempos de guerra consideradas perigosas ou desleais, incluindo tentativas de adquirir informações relacionadas a defesa com o objetivo de prejudicar os Estados Unidos”, conforme descreve o website da Comunidade de Inteligência do governo. Mas nenhuma linha das acusações indica que Trump é suspeito de manter esses documentos com intenção de trair o país.
Outras acusações constituem maneiras variadas de afirmar que ele guardou ou escondeu — ou conspirou para esconder — documentos ou registros. Tratam-se apenas de modos criativos de acusar Trump de diferentes crimes em relação a uma única ação central. Em um país onde muitos especialistas concordam que, em primeiro lugar, documentos demais são classificados como secretos, acusar criminalmente um ex-presidente por possuir alguns deles é um exagero.
Finalmente, há aquela acusação com que se pode contar como último recurso: “obstrução”. Promotores de Justiça a torto e a direito aprendem cedo que se você não consegue fazer com que os réus sejam condenados pelo crime em si, você pode tentar fazê-los ser condenados por obstruir sua investigação.
Sejamos claros: não havia nenhuma justificativa válida para Trump manter documentos secretos, especialmente após o governo ter exigido sua devolução. Mas não é parte da psique de Trump fazer o que é lógico ou fácil. Nós sabemos disso. Ele considera todos os confrontos desafios pessoais. É isso o que algumas pessoas adoram sobre ele e o que tem exaurido tanto o restante de nós.
Mas sejamos claros também a respeito do seguinte: fazer acusações relacionadas a posse de documentos secretos contra um presidente ou ex-presidente por qualquer motivo menor que um conluio com inimigos dos EUA ou vender essas informações no mercado clandestino é desnecessário, insensato e destrutivo para a democracia. Isso exacerbará nossa polarização política e dominará o ciclo diário de notícias da mesma forma que aquela histeria sobre ingerência da Rússia que se espalhou nos dois primeiros anos de Trump na presidência. Ninguém poderia ansiar por isso.
Acusações contra Trump
Mas o maior inconveniente em indiciar Trump é o limite profundo atravessado pelo presidente na função ao usar o poder do Estado — ou abusar dele, segundo milhões de pessoas —para deter e possivelmente encarcerar um oponente político.
Com este indiciamento, nosso país entra em um perigoso e novo território. Em 2019, Trump foi duramente criticado (e, por fim, sofreu impeachment mas foi absolvido pelo Senado) por pedir para a Ucrânia investigar Joe Biden e seu filho Hunter. E Biden nem sequer havia declarado sua candidatura. Para muitos dentro e fora do país, o indiciamento anunciado na quinta-feira parecerá mais insolente e até autoritário em sua natureza. Sim, há um procurador-especial, um tribunal de júri e sua celebrada independência. Mas na realidade o advogado-especial Jack Smith trabalha para o procurador-geral, Merrick Garland, que atende aos desígnios de Biden. Os graus de separação não são alentadores.
Ninguém está acima da lei, e não é tão difícil imaginar o tipo de crime grave que deixaria um governo sem alternativa a não ser processar o principal rival político do presidente. O que simplesmente não é o caso aqui. Sim, essas acusações são defensáveis a partir de uma interpretação estrita da lei, mas procuradores sempre têm como critério considerar o contexto mais amplo, e aqui o Departamento de Justiça falhou no mais importante teste de criteriosidade imaginável.
Como presidente, Trump já tinha visto todos os documentos secretos em questão. Aparentemente, ele não os reteve por propósitos indignos, mas atendendo a um senso desencaminhado de prerrogativa. Ele foi descuidado e negligente com os documentos — o que dificilmente é algo sem precedentes nos níveis mais elevados do governo. Tenha Trump aludido a eles ou não em alguma conversa ou até os mostrado brevemente para algum visitante, indiciamentos criminais soam como vingança pessoal e política.
E ainda assim, a arrogância de Trump em relação ao material secreto é mais uma razão — além de sua recusa em reconhecer sua derrota eleitoral em 2020 — para os republicanos procurarem outra pessoa para levantar sua bandeira em 2024. Este episódio é um lembrete brutal de que, se Trump reconquistar a Casa Branca, sua predileção pelo drama pessoal sempre escanteará oportunidades para realizações verdadeiras.
Mas o destino de Trump deveria ser decidido por eleitores, não pelo Departamento de Justiça — e certamente não pelo Departamento de Justiça de Biden — ou os tribunais. Com base no que sabemos agora, a violação subjacente não justifica a agitação social que decorre de se indiciar um ex-presidente e provável candidato republicano em 2024.
Este indiciamento pode inspirar os inimigos de Trump, mas não é bom para o país. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*Gary Abernathy, comentarista colaborador do Post, é colunista autônomo
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