Não conte seus frangos antes dos ovos chocarem, diz um antigo provérbio inglês. Seu equivalente russo aconselha a contar os frangos no outono.
Na Rússia, o outono começa a chegar em agosto e é, com frequência, revelador. O putsch (golpe) de agosto de 1991 abriu fissuras na elite soviética, acelerando a implosão do país, e a crise financeira de agosto de 1998 expôs a falência do novo Estado russo.
Os ataques terroristas de 1999, o massacre de Beslan, em 2004, e até a Revolução de 1917 ocorreram no outono — como se não apenas a natureza, mas também forças sociais e políticas amadurecessem e dessem frutos nessa estação. No outono de 2022 (Hemisfério Norte), os russos foram forçados a encarar a realidade da Guerra na Ucrânia.
A decisão de Vladimir Putin, em setembro, de mobilizar os russos levantou o inconsistente véu que ocultava precariamente o que o governo continua a chamar de operação militar especial na Ucrânia. Muitas famílias russas, após meses de alheamento, tiveram de enfrentar a face desagradável da guerra: uma invasão em escala total, que durava 210 dias.
Quase metade dos russos sentia “ansiedade, medo e horror”, enquanto 13% estavam enfurecidos, de acordo com pesquisas conduzidas pelo instituto independente Levada Center após o anúncio. Uma amarga guerra de vingança, suportada com resiliência impressionante e coragem moral na Ucrânia, foi evidenciada pela escalada de ataques da Rússia contra alvos civis.
A guerra de Putin
Ainda assim, apesar de toda comoção que a escalada inspirou, ela parece não ter afetado a visão da maioria dos russos a respeito da guerra. De acordo com um estudo recente, 43% dos russos apoiam os bombardeios contra cidades ucranianas, e o apoio geral à guerra não mudou muito.
Dado o alarmante estado da Rússia — isolada internacionalmente e precária economicamente — e da nascente consciência sobre as implicações da guerra na Ucrânia, um apoio tão robusto às ações do Kremlin pode ser considerado algo surpreendente.
Mas isso emerge de um poço profundo de sentimentos coletivos nutridos nas décadas recentes, que associam interesses individuais aos do Estado — encarnado em Putin. Esse apoio pode diminuir, mas não desaparecerá.
Quando a guerra começou, esperanças de que os russos se levantariam em desafio à crueldade insensata da liderança de seu país se frustraram rapidamente. Alguns russos corajosos, com frequência de gerações mais jovens, foram às ruas ou se opuseram à guerra mais clandestinamente.
Mas os protestos, ainda que tenham reunido milhares de pessoas nos dias iniciais da invasão, não viraram manifestações verdadeiramente em grande escala. O principal fator foi o medo. Depois que o Kremlin tornou criticar a guerra um ato punível com até 15 anos de prisão, os protestos, compreensivelmente, desvaneceram. Afinal, as pessoas têm só uma vida e querem vivê-la, em vez de viver sob tortura da polícia ou esquecidas numa cela, apodrecendo.
País pária
Apesar da invasão ter despertado fúria entre uma minoria de russos, a maioria ficou em choque. Em uma questão de dias, a Rússia virou pária, extirpada de rotas internacionais de aviação civil e alvo de severas sanções. Isso foi profundamente desconcertante.
Para navegar nessas águas desconhecidas, os russos comuns procuraram um princípio moral familiar: a identidade coletiva nacional. “Certo ou errado, é o meu país” foi a reação-padrão.
Os efeitos da guerra na Rússia
Uma mensagem de uma famosa personalidade do mundo artístico reverberou intensamente: “Não criticamos nosso próprio povo na guerra mesmo se estivermos errados”. Em vez disso, as pessoas culparam o presidente americano, Joe Biden, a expansão da Otan e o Ocidente, assim como nacionalistas ucranianos.
Com o passar do tempo, muitos russos se distanciaram. Viveram os meses de verão como se nada estivesse acontecendo. O Estado russo tomou nota do alheamento do público e, no início de setembro, os meios de comunicação estatais se afastaram do estilo de cobertura que caracterizou os primeiros meses da guerra, com ênfase na desmilitarização e na desnazificação da Ucrânia, e se voltaram para o ‘infotainment’, com novas séries de TV históricas e talk-shows tarde da noite com apresentadores familiares.
Por um tempo, resultados de jogos de futebol e House of Drangon (série da HBO) estiveram entre os tópicos mais pesquisados no Google na Rússia. A ordem de mobilização de Putin, contudo, desfez esse equilíbrio. À medida que os homens foram convocados para o combate, as atitudes dos russos em relação à guerra foram testadas novamente.
A mobilização foi um segundo choque que, outra vez, foi internalizado pela sociedade. Apesar de demonstrações de inquietação e descontentamento em algumas regiões, o público russo aquiesceu amplamente.
Os russos com mais escolaridade e recursos buscaram maneiras de contornar sua possível convocação; as opções de saída variaram entre deixar o país e obter documentos oficiais que evitassem a conscrição. Mas o dever ao Estado e ao seu próprio povo é visto por muitos russos comuns como uma obrigação inevitável.
Isso não deveria surpreender tanto. A guerra, afinal, amplia o papel da identidade coletiva — que é em si o ponto de partida do entendimento dos russos sobre suas próprias realidades.
Não é mera questão de propaganda, apesar de ser verdade que a maioria dos cidadãos russos forma sua opinião consumindo informações de meios de comunicação controlados pelo governo. Essa identidade coletiva opera em um nível mais profundo de interpretação e percepção, em que os indivíduos forjam suas opiniões com base no que conhecem como — ou imaginam ser — visões dominantes e socialmente desejáveis.
Esse reflexo explica aparentes contradições constatadas pelas pesquisas. Uma sondagem recente revelou que quase 40% dos russos estão, hipoteticamente, prontos para apoiar qualquer decisão de Putin, seja ela assinar um acordo de paz ou marchar para Kiev.
O paradoxo do apoio a essas estratégias antiéticas se dissolve uma vez que você percebe que o povo responde a essas pesquisas não individualmente, mas coletivamente: as pessoas apoiam qualquer coisa que se considere servir ao interesse coletivo — expressado por seu presidente. Em tempos de guerra, com a nação confrontando uma série de adversários, essas dinâmicas apenas se intensificam.
Unir-se em torno da bandeira em tempos de guerra não é, evidentemente, uma singularidade russa. A particularidade no caso da Rússia de hoje está na fusão simbólica de sua identidade nacional com a figura de Vladimir Putin.
Essa estranha confluência é fruto de um processo de duas décadas de despolitização, durante o qual o Kremlin encorajou as pessoas a confiar em Putin — que é concebido como uma figura singularmente heroica, que salvou a Rússia dos selvagens e dolorosos anos 90 — ao mesmo tempo que semeou profundas desconfianças em relação a todos os outros políticos.
Na década de 2000, essa amplamente bem-sucedida estratégia dependeu da elevação do nível de vida. Na década passada, conforme o crescimento econômico empacou e o descontentamento irrompeu, ela assumiu a forma de uma política de identidade nacional.
Patriotismo, veneração a símbolos do Estado e admiração pelas glórias do passado russo, assim como recentes sucessos da Rússia, tornaram-se um espelho no qual os cidadãos veem a si mesmos refletidos. No centro desse ideal de nacionalismo está Putin, a encarnação de uma Rússia mais forte e bem-sucedida.
Despertar dessa ilusão será um processo doloroso e prolongado. Até aqui, assim como seu líder, muitos cidadãos russos estão comprometidos com a vitória na Ucrânia — seja o que for que isso possa significar. Ainda assim, este outono, apesar de poder levar algum tempo para os russos admitirem, foi igualmente revelador: marcou o ponto em que Putin começou a escorregar, gradualmente mas certamente, do pedestal nacional da Rússia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
*É professora da King’s College London e autora de The Red Mirror: Putin’s Leadership and Russia’s Insecure Identity (O espelho vermelho: A liderança de Putin e a insegura identidade da Rússia)