O pesquisador Sarang Shidore, diretor do Programa Sul Global do think tank americano Quincy Institute, é categórico ao afirmar que nem Rússia nem China pertencem ao Sul Global. Pelo contrário, são duas potências que tentam capturar para si a agenda dos países verdadeiramente emergentes que buscam alternativas aos seus comércios e relações internacionais que não sejam apenas centradas nos Estados Unidos.
“O Brics é um grande sinal do Sul Global, que não é um sinal antiocidental, mas sim de que eles não estão muito felizes com o sistema global atual”, disse durante uma entrevista por videochamada ao Estadão. “Os países do Brics valorizam sim suas relações com os EUA, mas não sentem que essa seja a única relação na qual devem se concentrar.”
Esses esforços de captura ficaram mais explícitos durante a preparação para a 16ª Cúpula do Brics que acontece em Kazan, na Rússia. Na intenção de aliviar as pressões das sanções internacionais, Moscou pressiona para avançar nas discussões de uma desdolarização do bloco e um novo sistema de transações financeiras.
Nesta terça-feira, 22, no primeiro dia da cúpula, os avanços foram nas definições de novos convites para ingressar no grupo. Bolívia, Cuba, Indonésia, Malásia, Usbequistão, Casaquistão, Tailândia, Nigéria, Uganda, Turquia e Belarus foram os novos convidados depois da adição de cinco países na conferência anterior.
“Os países do Sul Global não necessariamente compram a linguagem russa sobre isso [o Brics como rival do Ocidente]. Inclusive eu conheço poucas pessoas que argumentariam que a Rússia é Sul Global. Não é. E eu argumentei recentemente que a China também não é Sul Global”, diz Shidore.
Leia a entrevista completa:
O que esperar de resultados dessa cúpula do Brics?
A maior expectativa é o processo de expansão. E muito provavelmente no modelo de parceiro, que já era parte dos objetivos do Brics na última cúpula em Johanesburgo. Provavelmente estarão admitindo alguns membros nessa categoria de nível de parceiro, o que expandirá o Brics, mas não em termos de membros centrais, estes serão mais como parceiros de diálogo, trazidos de uma maneira mais periférica para dentro da organização.
Em outras frentes, haverá provavelmente apenas progresso incremental, então coisas como conversas sobre moedas locais ou arranjos alternativos de moeda. É um processo muito longo. Os países estão fazendo isso à parte, fora do Brics. O Brics vai energizar essa conversa, mas, em termos de implementação real, isso vai levar muito tempo.
Haverá algum impacto o fato desta cúpula estar sendo na Rússia, um país que virou pária internacional por sua guerra na Ucrânia?
A Rússia estar sediando é normal em termos de rotação. Obviamente, a guerra significa que a Rússia vai tentar usar o Brics para mostrar que não está isolada, como é esperado. Mas eu acho que não muda muito. Os EUA e a Europa estão bem cientes das relações dos países do Sul Global com a Rússia e não vão impor sanções por isso. O Brasil não vai aderir a sanções à Rússia e mantém o relacionamento, a Índia também mantém relações, a África do Sul, os EAU... todos esses países têm um relacionamento normal com a Rússia. Eles podem não ter gostado da situação ucraniana, mas também têm visões mais complicadas da guerra. Então, eu não acho que o Ocidente ficará chocado que estarão todos se encontrando com a Rússia. Isso já foi contabilizado. E não espero nenhuma grande mudança só porque a Rússia está sediando líderes.
Análises de pesquisadores aqui apontam um isolamento brasileiro no Brics após a expansão que, como o senhor mesmo disse, vai continuar acontecendo. Como vê a participação brasileira em um Brics expandido?
O Brasil está muito inserido no Sul Global como um não-alinhado e isso significa que eles não são hostis aos EUA, mas têm perspectivas diferentes, as suas próprias perspectivas. Vejo o Brasil bastante feliz em continuar sendo uma ponte. Eu sei que quando o Brics expandiu, o país estava relutante porque para o Brasil o Brics é uma grande organização da qual faz parte junto com apenas cinco países. Agora, o Brasil é um dos nove, então isso talvez dilua o status de importância do Brasil. Mas eu acho que o país se reconciliou com essa expansão, no fim das contas, eles realmente não se opuseram, mesmo a Índia teve algumas preocupações, mas esse momento passou.
Eu acho que o Brasil será um participante construtivo. Eles continuarão a apoiar o Novo Banco de Desenvolvimento, que é uma parte interessante e importante do Brics. Continuarão a ter conversas sobre questões globais e a apoiar a revitalização da Organização Mundial do Comércio, de maneira forte, em termos de declarações conjuntas no Brics.
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E da China, a grande interessada na agenda do Brics, o que podemos esperar de sua atuação?
Os chineses, em muitos aspectos, são os grandes beneficiários. Eles conseguem se retratar mostrando que eles não são a Rússia e, ao mesmo tempo, eles são muito poderosos e um país grande que consegue obter apoio de todos - com exceção da Índia. Então a China pode dizer que é não é o alvo de grandes sanções nos EUA. Diferente da Rússia, a China consegue realmente alavancar sua posição como um jogador poderoso, mas não está diretamente sob tanta pressão como a Rússia está pelo Ocidente. E eles têm essa mensagem para o Sul Global. Os chineses dizem que são um país do Sul Global - o que é discutível - mas eles dizem que estão focados no desenvolvimento. Todas essas mensagens a China vai trazer e amplificar na cúpula.
Qual é a relevância de um grupo como o Brics nesse atual contexto geopolítico?
Eu acho que é significativo e o Brics têm sua importância. Existem duas visões sobre o Brics nos EUA: uma é que é irrelevante, apenas um monte de países diversos fazendo nada, apenas se reunindo e conversando. A outra visão é que o Brics representa uma espécie de novo e romântico Bandung. Em 1955, houve a Conferência de Bandung (na Indonésia) dos países do Sul Global da África e da Ásia visando criar uma solidariedade e união de todos os países do então Terceiro Mundo. Uma ideia idealizada e romântica. O Brics não é nada disso. Não representam essa unidade idealista do Sul Global, nem é que sejam apenas países fazendo nada. É algo no meio termo. É importante, mas devemos ter expectativas moderadas. Não é algo que vai revolucionar o mundo, mas é um sinal significativo, e eu diria até um grande sinal do Sul Global - com Rússia e China, mas do Sul Global - que não é um sinal antiocidental, mas sim de que eles não estão muito felizes com o sistema global atual. Os países do Brics valorizam sim suas relações com os EUA, mas não sentem que essa seja a única relação na qual devem se concentrar. Eles querem criar algumas opções e preencher algumas lacunas no sistema atual e querem fazê-lo de uma maneira que o Ocidente não esteja na sala. É uma busca por uma alternativa orientada para reforma, mas não radical. E essa é uma mensagem para o Ocidente, de que ele não está fazendo um ótimo trabalho e tem que melhorar. Nesse sentido, eu acho que o Brics é significativo e Washington está prestando atenção.
Mas a Rússia tem tentado levar esta cúpula para uma direção bastante antiocidental, a China também…
Bem, primeiro que a Rússia não chama de Sul Global, ela chama de “maioria global” de países que são muito críticos ao Ocidente e [os russos] querem acabar com a dominação americana, etc. Essa é a perspectiva deles porque está havendo uma guerra e suas relações são muito hostis. Mas eu acho que os países do Sul Global não necessariamente compram a linguagem russa sobre isso. Inclusive eu conheço poucas pessoas que argumentariam que a Rússia é Sul Global. Não é. E eu argumentei recentemente na revista Foreign Policy que a China também não é Sul Global pelo simples fato de ser uma potência. Então, para mim, o Sul Global é o Brasil, a Índia, a África do Sul e assim por diante. E a perspectiva desses países não é a mesma da Rússia e da China.
A discussão sobre uma moeda comum é antiga dentro do Brics, mas ganhou impulso nas últimas cúpulas após a guerra da Rússia na Ucrânia. A China também tem muito interesse. Como o senhor avalia essa proposta?
A conversa sobre uma moeda comum não é prática no momento. Com certeza, o que eles vão discutir é continuar falando sobre comércio em moedas locais. Talvez criar um novo formato de transação para que, por exemplo, o Brasil possa comercializar em reais com a China, e a China fazer comércio em rúpias com a Índia, ou criar alguma utilização de suas moedas digitais de uma forma mais cruzada e internacional. De novo, eles não estão muito perto disso. Eu acho que as conversas para usar moedas locais vão progredir um pouco, mas não haverá um avanço significativo. A Rússia quer isso. A Rússia está muito interessada nisso porque está sancionada. Mas os países do Sul Global estão mais relaxados, não é tão urgente para eles.
O mesmo vale para a proposta de um sistema substituto ao Swift [sistema da transações internacionais do qual a Rússia foi banida]?
Já existem vários experimentos nesse sentido. Por exemplo, há um projeto sendo feito pelo Banco de Compensações Internacionais, na Suíça, que envolve vários países. Mas todas essas coisas estão no momento em estágio experimental e há problemas técnicos que têm que ser resolvidos. Mas o fato é: há cinco anos nós não tínhamos nenhuma conversa sobre isso. Hoje nós temos uma conversa séria e temos de observar isso no longo prazo. Em um período de 10 ou 20 anos podemos esperar um progresso substancial, mas de uma cúpula para outra não veremos avanços dramáticos.
Olhando além da cúpula, quais são os próximos desafios do Brics?
Eu diria que o maior desafio agora para o Brics é prosperar em um mundo em conflito. O Oriente Médio está passando por uma crise muito ruim nesse momento, enquanto a situação na Ucrânia continua a piorar. O Brics consegue enfrentar o desafio? Em circunstâncias normais, o bloco poderia facilmente prosperar nesta situação. Mas reitero que penso que o Brics vai continuar, ele não vai desaparecer ou colapsar. Ele está aqui para ficar, e continuará a fazer contribuições incrementais. E a mensagem que esses países estão enviando para o Ocidente, os Estados Unidos, é que a liderança dos EUA no mundo não está necessariamente fazendo o trabalho que se esperava. Que os EUA, de muitas maneiras, estão falhando com muitos amigos. Eles são o país mais poderoso do mundo. Então, há essa decepção e essa mensagem é relevante.
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