Israel enfrentou nesta quinta-feira, 11, o início do que deve ser um longo processo: a ação por genocídio na Corte Internacional de Justiça, que foi movida pela África do Sul e que recebeu apoio do Brasil. A decisão do governo Luiz Inácio Lula da Silva, duramente criticada pela comunidade judaica, se afasta da posição tradicional da diplomacia brasileira no conflito árabe-israelense, disseram analistas ouvidos pelo Estadão.
O respaldo à acusação sul-africana também reforça a visão de Lula sobre a guerra, que já provocou críticas da comunidade judaica. Analistas ponderam ainda que o apoio serve também para ampliar a pressão por um cessar-fogo, defendido pelo Brasil desde o início do conflito.
Israel rejeita um cessar-fogo no momento e diz que uma trégua ajudaria o Hamas, que, segundo Tel-Aviv, pretende realizar novos ataques contra o país. Israel diz também que o objetivo da ofensiva é a destruição completa do Hamas.
“Me parece que o governo está procurando marcar uma posição que não é muito tradicional da diplomacia brasileira com essa decisão”, afirma o professor de Relações Internacionais da ESPM Leonardo Trevisan. “Afasta o Brasil da condição de um interlocutor válido para as duas partes”, acrescenta.
A divergência entre o apoio ao processo movido pela África do Sul e a tradição de “equilíbrio e moderação da política externa brasileira” foi citada também pela Confederação Israelita do Brasil (Conib), que emitiu uma dura nota de condenação ao apoio logo após o anúncio do Itamaraty. O texto chamava a ação sul-africana de “cínica e perversa”, alegando que o objetivo seria “impedir Israel de se defender dos seus inimigos genocidas”.
A acusação toca em um ponto extremante sensível para Israel. Isso porque o termo genocídio foi cunhado pela primeira para descrever o Holocausto - um trauma que está na raiz do apoio internacional à criação do próprio Estado israelense.
Tel-Aviv tem dito que acusação sul-africana deturpa o sentido de genocídio já que esse é um crime que prevê a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo. O argumento é de que o Hamas seria o genocida por pregar em seu estatuto de fundação a destruição de Israel, enquanto as suas tropas estariam se esforçando para conter o impacto sobre os civis em Gaza.
“Segundo a definição da ONU para o termo genocídio, que o Brasil aprecia e trabalha à luz, o principal é a intenção. Israel não tem intenção de matar palestinos não envolvidos e evita isso tanto quanto possível”, disse a embaixada de Israel no Brasil acrescentando que o Hamas usa civis como “escudos humanos”. O texto termina dizendo que o Brasil deveria “levar esses fatos em consideração” ao decidir apoiar o processo movido pela África do Sul.
O diplomata e ex-embaixador Rubens Barbosa, no entanto, avalia que o apoio do governo brasileiro foi “coerente” com as suas posições públicas. Embora tenha condenado o ataque terrorista do Hamas, Lula já chamou a resposta israelense de “insana” e falou em genocídio e terrorismo ao se referir à guerra me Gaza.
“Na nota do Itamaraty fala-se da desproporcionalidade do ataque e da crise humanitária com o corte da energia, de alimentos e medicamentos”, afirma Barbosa. “É importante lembrar que o pedido da África do Sul apoiado pelo Brasil não discute o mérito da questão, mas pede apenas medidas preventivas para limitar a crise humanitária (como cessar fogo)”.
A resposta israelense ao ataque terrorista do Hamas deixou mais de 23 mil mortos em Gaza, segundo o ministério da Saúde local que é controlado pelo Hamas. O número não pode ser verificado por fontes independentes, mas elevou a pressão internacional para que Israel reduzisse a intensidade dos bombardeios no enclave palestino.
Essa pressão veio inclusive dos Estados Unidos. O principal aliado de Israel afirma que a acusação por genocídio é “infundada”, mas já expressou publicamente a preocupação com o drama humanitário na Faixa de Gaza. Mais de 80% dos habitantes do enclave foram descolados pelo conflito, segundo levantamento da ONU. Muitos, vivem em abrigos improvisados, onde as doenças e a fome também são ameaça em meio à guerra, alertam organizações humanitárias.
Nesse sentido, tanto a ação da África do Sul como o apoio do Brasil podem ser entendidos como uma forma de pressão sobre Israel por uma redução dos bombardeios. As audiências públicas que ocorrem esta semana discutem no primeiro momento o pedido de Pretória por uma medida provisória que ordene a interrupção dos bombardeios em Gaza. Só depois, a Corte Internacional de Justiça deve entrar no mérito da acusação por genocídio, discussão que deve se arrastar por anos.
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“Eu vejo a atitude brasileira mais como gesto político”, resume o diplomata e ex-embaixador Rubens Ricupero. “Se compreende que o Brasil tenha decidido pesar mais porque a verdade é que, até agora, as tentativas dos americanos para persuadir Israel a moderar em relação à morte de civis não deram resultado. Então se compreende que haja um aumento da pressão internacional. Faço uma interpretação mais política que jurídica”, explica.
Uma ordem preliminar da Corte seria de cumprimento obrigatório, pelo menos, em tese. No passado, tanto Israel como a própria África do Sul já ignoraram decisões do tribunal, que não dispõe de mecanismos de coerção ou punição para os Estados. Ainda assim, analistas afirmam que uma decisão teria o peso para pressionar Israel a rever ações em Gaza.
“Se o tribunal toma uma decisão, como se espera, para que Israel interrompa operações, o peso político é muito alto”, afirma Ricupero.
“A intenção é aumentar a pressão sobre Israel para que algum cessar-fogo seja alcançado ou que pelo menos haja uma redução de bombardeios”, corrobora Trevisan. “É preciso observar que Israel está resistindo à pressão norte-americana nesse sentido”, reforça.
Apoio internacional a ação sul-africana
Além do Brasil, outros governos sul-americanos de esquerda também subscreveram a ação. É o caso, por exemplo, de Colômbia, Bolívia e Venezuela. Bogotá ameaçou romper os laços com Israel diante da guerra e La Paz efetivamente rompeu, assim como já havia feito Caracas anos antes. O apoio também veio de países como Turquia e Jordânia, próximos à causa palestina.
Na Europa, a vice-primeira-ministra da Bélgica, Petra De Sutter, defendeu que o país se tornasse o primeiro da União Europeia a dar apoio ao caso. “A Bélgica não pode ficar parada a assistir ao imenso sofrimento humano em Gaza. Devemos diante da ameaça de genocídio”, disse em publicação no X (antigo Twitter). “Quero que a Bélgica tome medidas na Corte Internacional de Justiça, seguindo a liderança da África do Sul. Vou propor isso ao governo”, disse ela. Pelo menos até agora, no entanto, essa não é a posição oficial de Bruxelas.
Audiência na Corte internacional de Justiça
Nesta quinta-feira, o primeiro dia de audiências, a África do Sul destacou o número de vítimas na guerra em Gaza e as falas de autoridades israelenses que, segundo a acusação de Petrória, provariam a intensão necessária para caracterizar o crime de genocídio.
O advogado sul-africano Tembeka Ngcukaitobi argumentou que o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, usou referências bíblicas violentas para desumanizar os palestinos. Ngcukaitobi cita também frases do ministro da Defesa, Yoav Gallant, que se referiu aos palestinos como ‘animais humanos’. De acordo com o advogado, a retórica israelense normaliza o suposto genocídio.
Israel nega categoricamente às acusações e acusou a África do Sul de atuar como “braço jurídico” do Hamas referindo-se aos advogados sul-africanos como “representantes” do grupo terrorista no Tribunal. Amanhã, Tel-Aviv terá a sua argumentação ouvida pela Corte Internacional de Justiça.
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