Dois dias depois do surpreendente resultado das eleições primárias na Argentina, o argentino encontrou nesta terça-feira, 15, várias prateleiras vazias e teve dificuldades para encontrar produtos para automóveis, eletrônicos e eletrodomésticos, bem como itens essenciais como papel higiênico. A razão foi a forte reação do mercado à vitória de Javier Milei e a cartada do governo de desvalorizar drasticamente a moeda. Sem conseguir definir preços diante da turbulência, produtores e lojistas tiraram seus produtos de circulação.
Frente à incerteza que uma eleição de triplo empate traz ao cenário argentino, o peso argentino perdeu cerca de 20% do seu valor e o dólar oficial saltou para 365 pesos ante um fechamento de 298 na sexta-feira antes das eleições. No mercado paralelo, o dólar chegou a ultrapassar a barreira dos 700 pesos. A consequência chegou hoje ao bolso dos argentinos que viu uma alta tão grande de preço dos produtos que muitos deles sumiram.
Muitos fornecedores, principalmente de produtos importados ou com preços atrelados ao dólar, preferiram suspender suas vendas até conseguir definir os preços. “Ontem, o único insumo que tinha preço eram as sacolas. Os preços não mudaram, mas como são cotados em dólares, o valor em pesos subiu tanto quanto a desvalorização”, afirmou um fornecedor ao caderno rural do jornal Clarín.
“A vitória de Milei foi fora de todas as expectativas, isso para os mercados é uma coisa não esperada e gera uma incerteza ainda maior”, explica o economista da Universidade Católica Argentina Juan Carlos Rosiello. “Por isso que os preços subiram. O câmbio deu um salto e aí governo se antecipou a isso e fez uma forte desvalorização do câmbio oficial”.
Com a desvalorização de 20%, todos os produtos que tenham algum tipo de associação ao dólar tendem a aumentar na mesma medida nos próximos dias. “É por isso que hoje não tinha mercadoria. Tudo o que tem a ver com importação, desde remédios a até carros, eles tiraram de circulação e diziam que não tinha, porque não havia preço”.
A tendência, afirma o economista, é que a situação se estabilize na próxima semana, mas mesmo quando estabilizar será com um aumento de 20% do valor.
No entanto, o Indec, instituto de estatísticas da Argentina, publicou nesta terça que a inflação de julho subiu para 6,3%, frente os 6% de junho, totalizando uma taxa anual de 113,4%. O dado, porém, não considera a forte desvalorização e consultoras já projetam que a inflação de agosto terá dois dígitos.
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Contenção de preços
Na intenção de impedir que essa desvalorização chegue ainda mais ao bolso do consumidor, o que prejudicaria a candidatura a presidente do ministro da Economia, Sergio Massa, membros da pasta convocaram empresas e supermercados a conter os preços dos produtos. Segundo jornais argentinos, lojistas e distribuidores de alimentos e bebidas receberam novas tabelas de preços.
“Em alguns casos, eles enviam as listas com todos os aumentos de dois dígitos. E em outros, seus pedidos são suspensos diretamente”, afirmou um diretor de uma rede de supermercado ao jornal La Nación. Seu temor, desabafa, é que as lojas fiquem desabastecidas e só restem estabelecimentos chineses com produtos na prateleira.
Termina também nesta terça o controvertido programa Preços Justos de Massa, que buscou congelar os preços até as primárias. Para evitar um aumento que somaria o fim do programa com a desvalorização, o secretário de Comércio Matías Tombolini convocou os lojistas para uma reunião nesta terça à noite.
Jornais argentinos chegaram a noticiar que o governo havia também suspendido as exportações de carne por 15 dias na intenção de negociar preços, mas membros do ministério negaram a informação horas depois. “Estamos negociando os preços da carne para o mercado interno e não há suspensões na exportação de carnes”, escreveu o secretário de Agricultura, Juan José Bahillo, na rede social X.
O medo é que com a desvalorização promovida pelo governo, o valor da carne salte nos açougues até o fim de semana.
Câmbio defasado
A desvalorização da moeda, feita no dia seguinte às PASO (Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), era algo que o governo de Alberto Fernández vinha tentando evitar há meses, apesar das pressões do FMI (Fundo Monetário Internacional). O ministro da Economia vem tentando liberar desembolsos do fundo para continuar pagando a dívida argentina, mas no mês passado o FMI negou a liberação pedindo por uma desvalorização da moeda.
O resultado da política de Fernández foi a proliferação de cerca de 20 tipos de câmbios circulando atualmente. Sem querer desvalorizar e impactar negativamente a campanha de Massa, o governo segurou o valor do dólar oficial em menos de 300 pesos, enquanto no blue - câmbio verdadeiramente em circulação - essa taxa estava o dobro. O FMI exigia uma correção dessa anomalia para liberar os desembolsos.
Mas com o risco de afetar a candidatura de Massa, que já é prejudicado pela baixa popularidade do governo no geral, a desvalorização só veio depois das primárias. “O governo sabia que ia ter que fazer uma desvalorização depois das eleições, então pensou: ‘por que vou fazer antes se terei de fazer de novo depois das eleições? Farei apenas depois’”.
Outra ação do governo foi elevar a taxa de juros em 21 pontos, para 118% ao ano, na intenção de impedir que os argentinos recorram ao dólar frente a desvalorização do peso. Uma medida, na opinião de Rosiello, acertada, já que assim o governo estará incentivando o depósito de moedas no banco e tirando a pressão sobre as reservas internacionais do Banco Central, que já estão negativas.
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Em nota, o FMI aplaudiu as medidas e anunciou que reunirá sua diretoria em 23 de agosto “para aprovar os pagamentos acordados”.
A economia argentina carrega o peso de uma grande emissão monetária e da enorme dívida pública, situação agravada em 2018, na gestão de Mauricio Macri, quando o FMI lhe concedeu um dos maiores empréstimos da história da instituição, de US$ 57 bilhões (R$ 220 bilhões na cotação da época).
Ao assumir o cargo no final de 2019, o presidente Alberto Fernández renunciou às parcelas de desembolso pendentes, renegociando-as em 2021 como um acordo de US$ 44 bilhões (R$ 213,4 bilhões). Porém, o acordo é cumprido a duras penas e obriga o país a fazer pesados desembolsos periódicos, além de cumprir as metas de redução do déficit fiscal em um contexto de 40% de pobreza com parte da população dependente de auxílios estatais.
FMI fala com Milei
Frente à novidade das primárias de domingo, agentes do Fundo Monetário Internacional contataram a irmã de Javier Milei, Karina, para conversar. A informação foi primeiro dada pelo candidato e posteriormente confirmada pela agência.
“O Fundo contata regular e rotineiramente uma ampla gama de líderes políticos e econômicos, que também incluem países com programas do FMI”, disse uma porta-voz da agência. “No caso de candidatos presidenciais, esses contatos também permitem que a equipe entenda melhor os aspectos-chave de possíveis políticas econômicas futuras”.
Milei quase não cita a enorme dívida argentina com o fundo em suas propostas econômicas, mas afirmou em entrevista ao canal América logo após as PASO que não terá problemas com o FMI porque, segundo ele, a chave do que o FMI está pedindo é diminuir o déficit e seu programa fiscal é mais agressivo do que o do Fundo.
Já para a agência, Milei é uma novidade a ser compreendida, já que apresentou chances reais de se tornar o próximo presidente da Argentina e, portanto, o próximo a dialogar com o Fundo. “Por orientação ideológiao, imagino que Milei deve pagar o FMI, não vai dar calote”, afirma Rosiello./Com informações da AFP
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