THE NEW YORK TIMES – O bitcoin deveria transformar a economia de El Salvador, catapultando a pobre nação centro-americana à condição de improvável arauto de uma revolução financeira.
Mas cerca de um ano depois de o presidente do país, Nayib Bukele, chocar o mundo das finanças tonando moeda nacional sua moeda digital mais popular, a aposta parece estar saindo pela culatra, sublinhando o lapso entre as promessas utópicas dos proponentes da criptomoeda e as realidades econômicas.
As reservas do governo em bitcoin perderam aproximadamente 60% de seu valor presumido durante a recente queda no mercado. O uso de bitcoin entre os salvadorenhos despencou, e o país está ficando sem dinheiro vivo, depois de Bukele fracassar em captar novos fundos com investidores do ramo de criptomoedas.
Ainda assim, os percalços financeiros não prejudicaram a popularidade de Bukele. Pesquisas mostram que mais de 8 a cada 10 salvadorenhos continuam a apoiar o presidente, em parte graças a sua amplamente apoiada repressão às gangues criminosas e seus subsídios sobre combustíveis, que amainaram as consequências da inflação global em seu país.
Mas o fracasso de Bukele em seus objetivos declarados a respeito do bitcoin — de trazer investimento ao país e ajudas financeiras para os pobres — expuseram as limitações de sua governança autoritária com foco na imagem, afirmam críticos. E também levantou dúvidas a respeito da sustentabilidade financeira de seu ambicioso plano de modernizar El Salvador em detrimento da governança democrática.
No ano passado, o governo de Bukele alocou o equivalente a 15% de seu orçamento anual de investimento na tentativa de incorporar o bitcoin à economia nacional.
O governo ofereceu US$ 30, cerca de 1% do que um trabalhador salvadorenho médio ganha em um ano, para todos os cidadãos que baixassem um aplicativo de pagamentos com criptomoedas apoiado pelo governo chamado Chivo Wallet; chivo significa “legal” na gíria local.
Bukele afirma que aproximadamente 3 milhões de salvadorenhos, ou 60% da população adulta, atenderam ao seu chamado.
Ainda assim, após um impulso inicial, o uso da criptomoeda despencou.
Somente 10% dos usuários do Chivo continuaram a fazer transações com bitcoin no aplicativo depois de gastar os US$ 30 que lhes correspondiam, de acordo com um estudo realizado por três economistas com base nos Estados Unidos em fevereiro, publicado pela ONG National Bureau of Economic Research. Quase nenhum usuário novo baixou o aplicativo este ano, constataram os pesquisadores.
“O governo deu a esse projeto tanto estímulo quanto pôde — e mesmo assim fracassou”, afirmou Fernando Alvarez, economista da Universidade de Chicago e um dos autores do estudo.
Uma outra sondagem, da Câmara do Comércio de El Salvador, realizada em março, constatou que apenas 14% das empresas do país fizeram transações em bitcoin desde que a criptomoeda foi introduzida no país, em setembro, e apenas 3% afirmaram perceber algum valor comercial nela.
Os salvadorenhos radicados nos EUA também ignoraram o chamado de Bukele para que usassem bitcoin no envio de dinheiro para seus parentes no país centro-americano. Aplicativos de pagamentos digitais, como o Chivo, foram responsáveis por menos de 2% desses envios nos primeiros cinco meses de 2022, de acordo com o Banco Central de El Salvador.
O esforço de Bukele sofreu também com uma liquidação global de criptomoedas, que baixou em bilhões de dólares os valores dos ativos digitais desde março.
“As pessoas estão com medo de perder dinheiro”, afirmou Edgardo Villalobos, que coordena os fornecedores de um grande mercado de rua no centro de San Salvador, a capital de El Salvador. Após as recentes quedas de valor, ele afirmou que os US$ 30 em bitcoin que as pessoas recebem ao baixar o Chivo valem agora US$ 10 na moeda digital.
Ainda assim, apesar do revés, entusiastas do bitcoin e empreendedores argumentam que a introdução da moeda digital transformou a imagem de El Salvador e que o país passou a ser visto como um desbravador da tecnologia, que criou oportunidades para seus cidadãos fora dos sistemas bancários tradicionais.
“Enquanto defensores da liberdade financeira, seguimos nesse caminho”, afirmou Eric Gravengaard, diretor da Athena Bitcoin, uma empresa de criptomoedas com base nos EUA que opera a rede de caixas automáticos de criptomoedas em El Salvador e processa transações em bitcoin para as maiores redes varejistas do país.
Críticos afirmam que o bitcoin também fracassou em relação à promessa de trazer empreendedores do ramo de criptomoedas ao país.
Somente 48 novas empresas com foco em bitcoin foram registradas em El Salvador desde a introdução da criptomoeda, de acordo com o Banco Central do país; isso representa menos de 2% de todos os negócios abertos desde 2019. Quase todas são startups que contratam pouca mão de obra local e trazem pouco investimento, afirmou Leanor Selva, diretora-executiva na Associação Nacional da Empresa Privada de El Salvador.
“No dia a dia o impacto foi nulo”, afirmou ela, acrescentando que, em vez de atrair novos investidores, o bitcoin afugentou investidores tradicionais preocupados a respeito do impacto da criptomoeda na estabilidade econômica.
Gravengaard replicou apontando que 28 dos 30 funcionários de sua empresa em El Salvador são cidadãos locais. De maneira mais geral, o crescente setor de tecnologia salvadorenho dá aos seus jovens a oportunidade de construir suas carreiras em um país que tem sido uma das maiores fontes de migrantes para os EUA.
“É simplesmente um sonho”, afirmou Gerson Martínez, empreendedor do ramo de bitcoin. “Como filho de migrantes que deixaram El Salvador, isso me dá muita esperança.”
A queda de valor tampouco dissuadiu Bukele de seu entusiasmo pelo bitcoin, que lhe valeu a adulação da comunidade global do empresariado do setor das criptomoedas.
Em uma série de postagens no Twitter no longo do ano passado, Bukele anunciou que comprou cerca de 2,4 mil tokens de bitcoin desde setembro, com um valor estimado de US$ 100 milhões. Quando críticos o acusaram de irresponsabilidade financeira, ele respondeu afirmando que faz as transações pelo telefone, enquanto está nu.
“Bitcoin é o futuro!”, afirmou ele em um tuíte postado em 30 de junho, depois de anunciar a mais recente compra de criptomoeda durante uma liquidação. “Obrigado por venderem barato.”
Não está claro onde os ativos em bitcoin ficam guardados, quanto eles valem, como foram pagos e nem mesmo quem possui os códigos que provam sua propriedade.
As pessoas estão com medo de perder dinheiro
Edgardo Villalobos, coordenador de fornecedores de mercado em San Salvador
A assessoria de imprensa de Bukele, seu ministro das Finanças, José Alejandro Zelaya, e seu conselheiro para bitcoin, Samson Mow, não responderam pedidos de comentário.
Até o momento, as compras de bitcoin de Bukele deram um prejuízo de US$ 63 milhões em razão da desvalorização da criptomoeda, segundo estimativa publicada na semana passada pela revista Disruptiva, da Universidade Francisco Gavidia, de San Salvador.
As perdas aumentam ao mesmo tempo em que o governo enfrenta dificuldades para subsidiar os custos em elevação da importação de alimentos e combustíveis e tenta atender seu próximo encargo de dívida.
Sublinhando os desafios nos financiamentos, Bukele cortou no ano passado repasses a governos locais, forçando alguns prefeitos a reduzir serviços públicos como bolsas de estudo e investimentos em infraestrutura hidráulica.
“O problema com o bitcoin é que ninguém está ganhando nada com isso”, afirmou o economista salvadorenho Carlos Acevedo, ex-diretor do Banco Central do país. “É um investimento que não traz benefícios sociais.”
A queda nos valores das criptomoedas já tiraram do eixo uma das principais plataformas do experimento financeiro de Bukele: a emissão do primeiro título de governo sustentado por bitcoin. A obrigação teria permitido a Bukele evitar instituições financeiras tradicionais, como o Fundo Monetário Internacional, que condicionou novos financiamentos ao país a disciplina financeira.
Após anunciar um título de US$ 1 bilhão denominado em bitcoin, o governo adiou indefinidamente o projeto no último minuto, em março, alegando que a guerra na Ucrânia havia piorado as condições financeiras globais.
Economistas afirmam que isso deixou o país com poucas opções válidas para realizar um pagamento de US$ 800 milhões sobre sua dívida que vence em janeiro, assim como para pagamentos subsequentes nos próximos anos.
Finalmente, Bukele encarará a difícil escolha entre cortar drasticamente o gasto público, sob o risco de enfurecer os eleitores, ou levar o país ao calote. Um calote perturbaria o fluxo de importações básicas, reduziria o crescimento e poderia ocasionar uma corrida aos bancos.
“Bukele mostrou que se importa mais com sua imagem pública do que com gestão prudente da economia”, afirmou Frank Muci, especialista em políticas públicas da London School of Economics que estudou o título em bitcoin de El Salvador. “Mas uma hora a conta chegará, sob grande custo para o país.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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