Argentina escolhe hoje o tamanho de seu Estado, entre os gastos peronistas e a ‘motosserra’ de Milei

Candidato libertário enfrenta o peronista Sergio Massa no segundo turno das eleições neste domingo; disputa deve ser apertada

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Foto do author Carolina Marins
Atualização:

ENVIADA ESPECIAL A BUENOS AIRES - De cada US$ 100 produzidos pela economia da Argentina, US$ 42,80 são gastos pelo governo. E de cada 100 argentinos, 44 dependem de algum benefício oferecido pelo Estado. É esse modelo que está em xeque nas eleições deste domingo, 19, na disputa entre o peronista Sergio Massa e o libertário Javier Milei. A votação de hoje define não apenas o novo presidente do país, mas também o tamanho do Estado argentino daqui para a frente.

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De um lado, um peronista que defende um Estado forte em uma realidade em que os gastos públicos são impulsionados pela impressão de dinheiro sem lastro, que gera inflação. De outro está um libertário que defende “passar a motosserra” no Estado a ponto de eliminar a moeda nacional e extinguir o Banco Central, em um país onde boa parte da população é dependente dos serviços públicos.

Com a máquina do Estado e do peronismo — que controla sindicatos e a burocracia nas províncias — a seu favor, Massa aposta no medo dos argentinos de perder acesso a serviços públicos e subsídios estatais para derrotar Milei. O libertário diz que seu plano de governo tem como objetivo derrotar a inflação, que neste ano deve chegar a 140%.

Cartaz diz "Não à privatização dos trens argentinos. Não a Milei" na estação de trem de Retiro, Buenos Aires, em 17 de novembro Foto: Carolina Marins/Estadão

Máquina inchada

De acordo com um estudo conduzido no meio deste ano pelo observatório Pulsar, da Universidade de Buenos Aires, os argentinos estão cada vez mais pró-iniciativa privada e defendem uma diminuição dos gastos do Estado. No entanto, essa defesa não é irrestrita. Mais da metade da população defende que saúde, educação e segurança pública devem, sim, ser funções do Estado. O que os argentinos querem, segundo o estudo, é uma diminuição nos empregos públicos e na própria máquina estatal.

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É neste cenário que a proposta de Milei de reduzir o número de ministérios de 18 para 8 faz sucesso. “A grande maioria dos meus amigos trabalha no setor público por falta de opção. Não há oportunidade para prosperar com o próprio negócio neste país”, diz o estrategista político Alfonso Recasens, 27, que apoia Milei e vive em San Luís, província onde 50% da população depende do emprego público.

Esse desgaste descrito por Recasens pode ser explicado pela ineficiência do Estado argentino na hora de gastar seus recursos. Segundo dados do Ministério da Economia da Argentina, os gastos públicos representaram 42,8% do Produto Interno Bruto do país em 2021, último ano disponível para consulta.

O valor é o segundo maior dos últimos 20 anos. O governo federal é o maior responsável por esses gastos, com 24% do total, seguido por 15% das províncias e 3,4% dos municípios. A média da América Latina, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) é de 30%.

Apesar do volume, no entanto, o dinheiro é gasto sem critério. Um estudo conduzido pelo mesmo BID, ainda em 2018, comparou os níveis de eficiência dos gastos públicos da região e concluiu que a Argentina é a que registra o pior índice, ao lado de El Salvador e Bolívia. Para fazer o cálculo, o estudo, o último do gênero disponível, considerou compras do Estado (incluindo perdas com corrupção), salários de funcionários públicos e subsídios.

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A taxa de ineficiência, ou seja, o desperdício da Argentina, seria de 7,2% de seu PIB naquele ano, ante 4,3% da média regional. Como em 2018 a Argentina não tinha a inflação que tem hoje e a situação monetária e financeira piorou sensivelmente, essa taxa provavelmente cresceu.

“Foi assim que chegamos ao estado atual, onde são menos os que pagam os impostos para manter um Estado que é cada vez maior, e esse é um dos motivos pelos quais a Argentina deixou de crescer”, explica Juan Carlos Rosiello, professor de Economia da Universidade Católica Argentina (UCA).

Dependência do Estado

Tantos anos de crescimento do peso do Estado na economia produziram um grande contingente de pessoas que dependem diretamente do governo, tornando qualquer corte um risco para os mais vulneráveis. Ao todo, 21 milhões de pessoas, em uma população de 47 milhões, recebem diretamente alguma assistência do Estado.

De acordo com os dados do Ministério da Economia, saúde, educação e assistência social correspondem ao maior montante de gastos estatais, chegando a 67,9% em 2021, com o governo nacional se responsabilizando por mais da metade desse valor. Em seguida vêm o Funcionamento do Estado (14,5%), com gastos como salários, defesa e segurança; Serviços Econômicos (10,9%), como subsídios à energia e combustível; e, por último, a dívida pública (4,7%).

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Campanha do medo

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Os subsídios são parte importante da disputa entre Massa e Milei e se transformaram em um dos protagonistas desta campanha no segundo turno.

Quem chega à estação de trem de Retiro, em Buenos Aires, se depara com uma enorme faixa acima das catracas que diz: “Não à privatização dos trens argentinos. Não a Milei”. A campanha faz parte de uma série de iniciativas tomadas pelo governo argentino para comparar o que defende a coalizão União pela Pátria, peronista, com a chapa libertária A Liberdade Avança.

Comparações semelhantes de valores também foram feitas sobre as universidade públicas, as escolas e o preço da insulina. Cartazes contra Milei também são vistos no Banco Central da República Argentina, na estação de trem de Constituição e na Universidade de Buenos Aires.

Ofensiva peronista

Até as telas com os cronogramas do trem participam da ofensiva pró-Estado de Massa, com os supostos valores das passagens que seriam cobrados pelo governo do libertário. A informação divulgado é que o valor da passagem passaria de 56,23 pesos argentinos (menos de R$ 1,00 na cotação de 17/11 do dólar paralelo) para 1.100 pesos (pouco menos de R$ 7,00).

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Recentemente, o presidente Alberto Fernández foi além e disse que quem estava de acordo com as ideias do libertário, poderia abrir mão de seus subsídios no transporte. Na quarta-feira, 15, o Ministério dos Transportes anunciou que “dos 18 milhões de cartões ativos, apenas 1.665 pediram o cancelamento do benefício, dos quais 49 se arrependeram e apenas 290 cartões foram utilizados para realizar viagens sem subsídio”.

Alberto Borda, 64, trabalha em uma banca de jornal dentro da estação Retiro e defende a faixa contra Milei. “Essa é uma iniciativa legítima dos trabalhadores ferroviários. Tem mesmo de abrir os olhos da população, que não tem dimensão do que diz Milei”, afirma.

O que diz Milei

Com a ofensiva tanto do governo quanto da campanha de Massa, Milei acusa a campanha do adversário de promover o medo contra ele, com ajuda de marqueteiros brasileiros ligados ao PT. O libertário nega que sua agenda seja “privatizadora”. Em sua última peça de campanha, ele disse: “Não vamos privatizar a saúde, não vamos privatizar a educação, não vamos reformar a INCUCAI (órgão que fiscaliza a doação de órgãos), não vamos privatizar o futebol, não vamos permitir o livre porte de armas. O que sim vamos fazer é terminar com a inflação para sempre”.

Membros da campanha de Sergio Massa se defendem dizendo que estão “apenas mostrando o que significam as coisas que diz Milei”. “Evidentemente, a decisão de Milei de remover os subsídios tem muito pouco apoio popular e social. Mostramos que é uma proposta fracassada, prejudicial à sociedade”, discursou o ministro dos Transportes, Diego Giuliano.

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O libertário Javier Milei promete 'passar a motosserra' nos gastos públicos argentinos Foto: Marcos Gomez/AFP

Disputa apertada

As últimas pesquisas de opinião indicam uma disputa apertada. No caso de uma vitória de Milei, o principal desafio será reunir o capital político para implementar seu plano. Seus principais inimigos para diminuir o tamanho do Estado argentino serão o Congresso e as províncias e prefeituras, dominadas pelo peronismo.

“A última vez que se fez uma reforma do Estado em democracia foi no peronismo, com Menem”, lembra o cientista político Pablo Touzon. “Hoje, se ganha Milei, vai ser com poucos pontos de diferença e com uma estrutura de governo raquítica. A pergunta sobre a capacidade de reforma de Milei não é tanto sobre sua vontade, mas se pode reformar assim, sem peso político. Com apoio do PRO (partido de Mauricio Macri), ele deve sim avançar com uma reforma, o mais forte que puder, mas a estabilidade disso é incerta. Além disso, o peronismo vai seguir aí.”

Segundo Rosiello, se Milei for eleito e de fato tentar seguir com sua agenda de diminuição estatal e dolarização, precisará fazer isso já nos primeiros três meses de governo, para conseguir a confiança de investidores logo no início. Caso contrário, pode enfrentar um cenário parecido com o do governo Macri, que não conseguiu atrair capital externo.

Já se for Massa o eleito, a tendência é a manutenção das políticas estatais atuais, ainda que o ministro fale de ajustes específicos. Para chegar ao primeiro turno, ele liberou ainda mais benefícios e subsídios, por meio de seu Plan Patita, que deve cobrar a conta no ano que vem.

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Cartaz da Associação de Trabalhadores do Estado (ATE) em apoio a Sergio Massa nas eleições argentinas em 16 de novembro Foto: Carolina Marins/Estadão
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