Argentina: Força de Milei no berço político de Néstor e Cristina Kirchner mostra desgaste peronista

Na província de Santa Cruz, no Sul do país, voto silencioso na oposição fez kirchnerismo perder primária e governo provincial; agora, peronistas se mobilizam para recuperar espaço perdido

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Foto do author Carolina Marins

ENVIADA ESPECIAL A RÍO GALLEGOS, ARGENTINA - Quem caminha pelas ruas e repartições públicas de Río Gallegos, na Província de Santa Cruz, sente a presença constante do ex-presidente argentino Néstor Kirchner. Suas estátuas, fotos, lembranças, nome em ruas e as casas onde morou estão por todos os lados. Afinal, os Kirchner dominam a política local há 30 anos. As eleições deste ano, no entanto, mostram um desgaste do movimento político liderado por Cristina Kirchner, mulher de Néstor, apesar de uma espécie de ‘culto à personalidade patagônico’ cultivado na região.

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Pela primeira vez em três décadas, a província não será governada por um kirchnerista, já que a coalizão opositora, Juntos pela Mudança, levou o cargo com o nome de Claudio Vidal. Além disso, o libertário Javier Milei provocou abalos na confiança peronista na província ao vencer as eleições primárias em Santa Cruz. No primeiro turno, Sergio Massa, apoiado por Cristina, chegou em primeiro, mas analistas veem um voto envergonhado ainda forte no opositor, o que reflete o descontentamento com o grupo do chamado casal K.

A vitória de Milei na primária veio sem o libertário ter feito campanha diretamente na cidade ou na província. Entre os moradores, era possível notar uma insatisfação com o governo local, no poder há tanto tempo, mas também o receio em revelar o voto para presidente. A maioria se limitava a dizer que ainda não sabia em quem votaria, mas estava definitivamente cansada “dos mesmos”.


Estátuas de Néstor Kirchner e Alfredo Anselmo Martínez, em frente à prefeitura de Río Gallegos, em Santa Cruz, Argentina Foto: Carolina Marins/Estadão

“Vamos ter que aprender a fazer oposição”, comentou Agostina Mora, então ministra da Igualdade e Integração do governo de Alicia Kirchner, irmã de Néstor e cunhada de Cristina, ao Estadão, quando a reportagem visitou Río Gallegos antes do primeiro turno da eleição. “Eu tenho quase 40 anos e a minha vida toda sempre fui parte do governo de Santa Cruz. E nosso papel agora vai ser descobrir como fazer uma oposição inteligente”

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“Naquela noite do resultado das primárias, o que vimos foi um voto silencioso, porque não era como se fôssemos nas casas e as pessoas nos diziam diretamente que não estavam convencidas do nosso projeto”, conta Juan Miguel Litvachkes, assessor jurídico do Ministério de Igualdade da província.

“Eu percorri toda a província em campanha e as pessoas não me diziam que queriam votar no Milei, então a minha impressão era de que o fenômeno Milei não estava instalado em Santa Cruz. Porém, o resultado foi outro”, concorda Belén Serfaty, Secretária de Dispositivos Territoriais de Santa Cruz.


Cartazes de Javier Milei em Río Gallegos, na província de Santa Cruz, sul da Argentina Foto: Carolina Marins/Estadão

Voto envergonhado

Maria Belén LeDesma, 31, se mudou de Buenos Aires para Río Gallegos no início deste ano junto com o marido que é militar e está sempre mudando de cidade. Justamente por ser de fora ela se dizia confortável em comentar a política local, mas também sentia o clima de espiral do silêncio sobre o voto. “Parece que existe um clima de medo de falar que pensa diferente”, comenta.

Já Gabriela, que não quis revelar o sobrenome, 21, conta que a família inteira é peronista e que para ela parece ser “natural” ter essa ideologia na cidade. A jovem admitiu não compreender muito a política e também não quis revelar o voto para o domingo de 22 de outubro.

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Uma pessoa caminha perto de uma pintura desfigurada da vice-presidente da Argentina Cristina Kirchner com os dizeres “Todos com Cristina” e “Ladra, corrupta”, em Río Gallegos, em 10 de outubro de 2023 Foto: Horacio Córdoba/Reuters

Mobilização contra a derrota

O peronismo, no entanto, conseguiu reverter o susto nas eleições gerais, ainda que tenha sido uma vitória apertada. Massa levou Santa Cruz com 37,87% enquanto Milei recebeu 36,29%, uma diferença de menos de 3 mil votos. Em alguns departamentos da província, como Magallanes e Corpen Aiken, Milei ainda foi o vitorioso. Onde Massa mais teve sucesso foi no departamento do Lago Argentino, onde está a cidade preferida de Cristina Kirchner e centro turístico da província, El Calafate. É também em Calafate, que estão alguns dos negócios sob suspeita da ex-presidente, como o Hotesur.

A “volta por cima” pode ser explicada pelo enorme aparato político que tem o peronismo, especialmente em seu reduto mais tradicional, que conseguiu mover seus eleitores que não tinham ido votar nas primárias e foram nas gerais. Diferentemente de Milei, cujo partido é pequeno, sem prefeitos e governadores locais. Segundo dados do Centro de Pesquisa para a Qualidade Democrática, Santa Cruz foi a província onde mais cresceu o voto positivo, ou seja, aquele que descarta as ausências, votos brancos e nulos.

Das eleições primárias para as gerais, o aumento no número de eleitores foi de apenas 2% na província, mas de 34% no voto positivo, o que significa que os que foram votar naquele domingo, escolheram de fato um candidato.

O mesmo aconteceu em Entre Ríos, que também foi uma província onde o peronismo “virou”. Na prática, esse voto positivo significou um salto de 38 mil votos nas primárias para 65 mil votos nas gerais para Massa, enquanto Milei cresceu de 52 mil para 62 mil.

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Painel mostra campanha de Sergio Massa, Alicia Kirchner e Pablo González em Río Gallegos, Santa Cruz, Argentina Foto: Carolina Marins/Estadão

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“Milei praticamente manteve a quantidade de votos na província, ou seja, não ganhou nem perdeu, o que já é um dado por si só porque mostra que é um voto que se consolida. Já Massa conseguiu fazer uma boa eleição apesar do que diziam as pesquisas”, afirma o cientista político e sociólogo Sebastian Cruz Barbosa. O efeito se repetiu em outras províncias, como Santa Fé, onde Massa saiu de terceiro lugar nas PASO para o segundo lugar com um acréscimo de 300 mil votos, praticamente o dobro.

A perda histórica da província

Mas uma derrota irreversível, pelo menos pelos próximos quatro anos, é o governo da província. Santa Cruz era governada pelo peronismo desde o retorno à democracia, em 1983. E depois de Néstor, a hegemonia Kirchner - tanto da família quanto aliados - se manteve durante 32 anos. A hegemonia, porém, acabou em 14 de agosto, quando o sindicalista petroleiro Claudio Vidal, que se apresentou em uma aliança eleitoral própria colada ao Juntos pela Mudança, levou com mais de 46% dos votos.

O kirchnerismo se fragmentou em três candidaturas, o que foi apontado como uma das causas da derrota histórica. No fim, a diferença foi apertada, com o União pela Pátria levando quase 44% dos votos, sendo a lista liderada por Pablo Grasso, seguido por Javier Belloni e Guillermo Polke.

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“O caso de Santa Cruz é um mais um fenômeno de esgotamento de ciclos muito longos de mandatos”, explica Barbosa, que estuda o kirchnerismo. O mesmo aconteceu em San Luis, onde o governo peronista também foi substituído pela oposição.

Casa onde cresceu Néstor Kirchner e Cristina se mudou após se casar Foto: Carolina Marins/Estadão

Segundo o pesquisador, um fenômeno que ocorreu nas PASO foi de candidatos peronistas se colarem à cédula de Milei, intencionando ser arrastados pela popularidade do candidato, o que acabou pulverizando o peronismo. Mas nas nacionais houve um movimento para evitar algo semelhante e uma nova derrota.

Ao Estadão, o candidato derrotado Pablo Grasso lamentou a derrota, que atribuiu a um erro de estratégia. “Se eu tivesse gerenciado a estratégia pessoalmente como candidato, teria feito diferente”, admite. “A decisão foi errada. Apresentamos muitos candidatos, de setores diferentes, apenas dois de nós sendo fortes e onde cada um recebeu 50% dos votos (do partido), e ficamos aquém por poucos pontos para levar o governo”.

De fato, os votos de Grasso e Belloni foram praticamente idênticos em quantidade, com um levando 22% e outro 21% dos votos. Além do governo provincial, Grasso disputava a reeleição como prefeito de Río Gallegos - a lei argentina permite disputar mais de um cargo Executivo ao mesmo tempo - e venceu a disputa em 22 de outubro.

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Outro fator apontado pelos próprios kirchneristas para a derrota foi a ausência de Alicia Kirchner na disputa provincial. Governadora desde 2015, desta vez ela disputou e ganhou uma cadeira no Senado. Mas a falta de seu nome localmente pesou, avaliam.

Mausoléu de Néstor Kirchner, construído por Lázaro Báez, mede 13 metros de comprimento, 15 metros de largura e 11 metros de altura Foto: Carolina Marins/Estadão

Estátua, rua e bar a Néstor

A perda da província será custosa para a capital provinciana que tenta manter a memória de Néstor Kirchner. Em Río Gallegos está a sua casa de infância e a primeira onde Cristina morou depois de casada. Também ali estão as polêmicas propriedades investigadas em operações de esquemas de corrupção, como a icônica casa onde morava quando se tornou presidente que foi vendida a Lázaro Báez, o empresário e amigo dos Kirchners preso por corrupção.

As investigações envolvendo Báez e supostos esquemas de lavagem de dinheiro em suas dezenas de propriedades na Patagônia levaram em 2016 às inesquecíveis imagens de retroescavadeiras abrindo buracos em Río Gallegos em busca de dinheiro enterrado.

A casa onde Néstor e Cristina Kirchner moravam quando aquele se tornou presidente, foi vendida a Lázara Báez e investigada em um suposto esquema de corrupção Foto: Carolina Marins/Estadão

Em frente à prefeitura de Río Gallegos está uma estátua de Néstor junto com a do seu sucessor no cargo, Alfredo Anselmo Martínez. Avenidas levam o nome do ex-prefeito, ex-governador e ex-presidente. A cidade também abriga o gigantesco mausoléu com o corpo de Néstor, que morreu em 27 de outubro de 2010, única data em que o local é aberto para visitação do público.

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Em um bar e restaurante na rua Alvear, mais estátuas, inclusive de um Néstor que parece seguir com os olhos. As jaquetas que ele utilizava quando presidente, bem como o carro em que fazia campanha. Inúmeras fotos de família e amigos, principalmente dos então presidente da esquerda da antiga onda rosa latino-americana: Evo Morales, Hugo Chávez e Lula.

Imagens de Néstor, Cristina, Máximo, Evita Perón e ex-presidentes esquerdistas da América Latina, como Lula, em um painel no bar NK Ateneo, em Río Gallegos Foto: Carolina Marins/Estadão

O local, chamado de NK Ateneo - em referência ao ateneu onde nasceu a militância kirchnerista - reúne conhecidos e antigos amigos de Néstor, como Gabriel Aguirre, que se lembra de ter sido o motorista do carro que conduziu Kirchner quando se tornou presidente e sete anos depois quando morreu. “Até hoje tenho a sensação de orfandade”, diz emocionado. “Me imaginei dirigindo muitas coisas, mas nunca o carro com seu corpo”.

Mas mesmo com todas essas referências, aos mais jovens os Kirchner já não são uma presença tão forte. Na verdade, a imagem que ficou foi das retroescavadeiras e das inúmeras manchetes de corrupção. Atualmente como vice-presidente e praticamente apagada da campanha eleitoral de Massa, Cristina Kirchner foi condenada por corrupção.

Muitos jovens de Río Gallegos sabem quem foi Néstor, principalmente pelo que contam seus familiares, mas, como a tendência nacional, o voto jovem tende a ir a Milei. Mesmo o setor “jovem” do kirchnerismo, encabeçado por Máximo Kichner e seus colegas do La Cámpora parece estacionado no cenário político.

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Estátua de Néstor Kirchner e seu carro utilizado para fazer campanha em frente ao bar e restaurante NK Ateneo, em Río Gallegos Foto: Carolina Marins/Estadão

“La Cámpora surgiu com a morte de Kirchner e teve um pico de crescimento, mas depois se estabilizou. Muitos dos militantes, os mais velhos, passaram a fazer parte de cargos políticos e quando Macri ganhou o movimento se concentrou mais na província de Buenos Aires com Axel Kicillof. Eu diria que é um movimento que nem retrocedeu e nem cresceu, mas estacionou”, explica Barbosa.

Mas mesmo se Sergio Massa surpreender novamente e levar a presidência, o futuro do kirchnerismo é uma incógnita. O atual ministro da Economia está longe de ser dos setores mais à esquerda do peronismo, já tendo rompido com Cristina no passado. Se levar a presidência, a sua relação com os chamados K será uma definidora do futuro do peronismo na Argentina.

Estátua de Néstor Kirchner no bar e restaurante NK Ateneo, em Río Gallegos Foto: Carolina Marins/Estadão
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