O presidente da Argentina, Javier Milei, anunciou dois grandes pacotes econômicos em duas semanas, com 40 medidas: um na semana passada, dois dias após a posse, e outro nesta quarta-feira, 20. Neste pacote mais recente, foi assinado o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), com mudanças em 300 leis para desregulamentar a economia, 30 delas detalhadas pelo libertário em pronunciamento. Uma das alterações foi a revogação da lei do aluguel, permitindo negociações diretas entre proprietários e inquilinos, que podem definir até mesmo em qual moeda o aluguel será pago.
O outro pacote foi anunciado no dia 12, com 10 medidas principais, para tentar cortar gastos. Entre as mudanças, estão redução de subsídios e repasses nacionais às províncias, forte desvalorização da moeda e manutenção de auxílios sociais.
E o que todas essas medidas significam, na prática, para a vida dos argentinos? Embora muito recentes, elas já estão provocando um turbilhão no país. Do agronegócio, passando pela indústria e varejo, todos os setores se surpreenderam, por exemplo, com o tamanho da desvalorização da moeda. Mas também com o aumento de impostos, muito distante das propostas libertárias de Milei enquanto candidato.
O objetivo das medidas de Milei e de seu ministro da Economia, Luis “Toto” Caputo é alcançar o déficit zero, mas a falta de um plano mais amplo, com metodologia e objetivos definidos, decepcionou economistas. Os entraves jurídicos para algumas dessas medidas também trouxeram questionamentos.
A medida de maior impacto anunciada no início do governo foi a desvalorização do peso. O presidente já dava sinais de que optaria por cifras em torno de 600 pesos (no câmbio oficial) para cada 1 dólar. O anúncio, porém, foi de uma desvalorização de 54%, tirando o dólar de seus mais de 400 para 800 pesos.
A medida fez o dólar blue (paralelo) disparar momentaneamente, de 900 para 1.150, mas logo voltou aos patamares de antes. No entanto, os preços no comércio dispararam, a ponto de aumentar quase todos os dias e praticamente dobrar em duas semanas. A previsão é que dezembro termine com uma inflação entre 20% e 30%, levando a taxa de 2023 para 200%.
O futuro promete ser de muito ajuste no bolso dos argentinos, especialmente com o fim do controle de preços que o governo anterior promovia e com a redução de subsídios no transporte e nas contas de luz e gás. A projeção é de uma recessão ainda mais profunda nos próximos meses. Milei já antecipa que “virão os piores meses” dos argentinos. A paciência da população será bastante testada.
Veja as medidas anunciadas até agora:
- Revogação da lei de aluguéis.
- Revogação da Lei do Abastecimento.
- Revogação da Lei de Gôndolas.
- Revogação da Lei Nacional de Compras.
- Revogação do Observatório de Preços do Ministério da Economia.
- Revogação da Lei de Promoção Industrial.
- Revogação da Lei de Promoção Comercial.
- Revogação dos regulamentos que impedem a privatização de empresas públicas.
- Revogação do regime das empresas públicas.
- Transformação de todas as empresas públicas em sociedades anónimas para a sua posterior privatização.
- Modernização do regime laboral para facilitar o processo de criação de emprego efetivo.
- Reforma do Código Aduaneiro para facilitar o comércio internacional.
- Revogação da lei fundiária para promover o investimento.
- Modificação da lei sobre a gestão dos incêndios.
- Abolição das obrigações das fábricas de açúcar em termos de produção de açúcar.
- Liberalização do regime jurídico aplicável ao sector vitivinícola.
- Abolição do sistema nacional de comércio mineiro e do Banco de Informação Mineiro.
- Autorização para a transferência do pacote acionista total ou parcial da Aerolineas Argentinas.
- Aplicação da política de céu aberto.
- Modificação do Código Civil e Comercial para reforçar o princípio da liberdade contratual entre as partes.
- Modificação do Código Civil e Comercial para garantir que as obrigações contraídas em moeda estrangeira devem ser pagas na moeda acordada.
- Alteração do quadro regulamentar da medicina pré-paga e da segurança social.
- Eliminação das restrições de preços no sector dos pré-pagos.
- Incorporação das empresas de medicina pré-paga no sistema de segurança social.
- Estabelecimento de receitas electrónicas para agilizar o serviço e minimizar os custos. 26.
- Modificações no regime das empresas farmacêuticas para fomentar a concorrência e reduzir os custos.
- Alteração da Lei das Empresas para permitir que os clubes de futebol se tornem sociedades anónimas, se assim o desejarem.
- Desregulamentação dos serviços de Internet por satélite.
- Desregulamentação do setor do turismo, eliminando o monopólio das agências de turismo.
- Incorporação de ferramentas digitais nos procedimentos de registo de veículos a motor.
- Não se renovam os contratos do Estado com menos de um ano de vigência.
- Decreta a suspensão da propaganda oficial do governo nacional por um ano.
- Redução de ministérios de 18 para 9 e secretarias de 106 para 54.
- Reduzir ao mínimo a transferência do Estado nacional para as província.
- Não serão solicitadas novas obras públicas e serão canceladas as obras já licitadas que ainda não começaram.
- Redução de subsídios em transporte e energia.
- Manter as políticas sociais como o Asignación Universal por Hijo (espécie de Bolsa Família argentino) e cartão alimentação e aumentar seu valor.
- Manter o plano de geração de empregos ‘Potenciar Trabajo’.
- Fixação do câmbio oficial em 800 pesos, aumento provisório do imposto PAIS e retenção de exportação de produtos não-agropecuários.
- Mudança do sistema de importação (SIRA) para retirar autorização prévia.
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Ganhadores e perdedores
O setor do agronegócio foi de longe um dos maiores ganhadores com as medidas de Milei, talvez por ser justamente o motor da economia exportadora argentina e que pode trazer os tão almejados dólares para um presidente que sonha com a dolarização. Ainda assim, houve reclamações pelo aumento de retenções. Subprodutos da soja, por exemplo, passaram de uma alíquota de 31% para 33%, sendo que a soja é o maior produto de exportação argentina.
Outros produtos teriam uma taxa de retenção de 15%, o que desagradou ao setor e forçou o governo a recuar. O governo então decidiu manter 18 produtos com as alíquotas zeradas: azeitona, arroz, couro bovino, laticínios, frutas (exceto limão), horticultura, feijão, batata, alho, grão-de-bico, ervilha, lentilha, mel, açúcar, erva-mate, chá, equinos e lã. Mas manteve os 15% para outros produtos, como trigo, milho e girassol. O setor vinícola terá retenções de 8%, contra as 15% inicialmente previstas.
De acordo com o economista da Universidade de Buenos Aires Fabio Rodriguez, toda área que lida com commodities vai se beneficiar do aumento do dólar, mesmo que haja algum aumento de taxa tributária. “Em um primeiro balanço, diria que a agricultura se beneficia, e a manufatura associada de origem agrícola também, aquelas que obviamente têm mercados ou que são dedicadas à exportação, que é um grande setor da economia argentina”, afirma.
“Também devemos considerar ganhadores o setor de energia, petróleo e mineração porque também haverá um equilíbrio de exportações, e eles se beneficiarão da melhoria na taxa de câmbio, mas também se beneficiarão de uma melhoria em sua lucratividade por meio de tarifas. O preço da gasolina e da energia serão liberados, e isso será favorável ao setor de produção de commodities de energia, minerais ou gás.”
Já no campo dos perdedores, estarão todos aqueles que dependem de alguma forma do consumo e de importações. Com o aumento de preços, e sem previsão de aumento de salários, os argentinos devem consumir cada vez menos nos meses à frente. Isso deve desacelerar a economia e afetar diretamente o setor industrial, de atacado e varejo.
Segundo estimativas da consultoria argentina Equilibra, o salário real dos argentinos que pertencem ao setor formal poderia sofrer uma perda de 9% em dezembro, o que seria a maior queda desde 2002.
Um possível recessão também travaria a oferta de empregos, colocando em xeque a já vulnerável produção argentina, criando uma espécie de bola de neve para o consumo.
As empresas que dependem de importação também sentirão o impacto, embora nas medidas haja a previsão de fim do sistema de entraves. Sem dólares, as importações ficaram menos interessantes com o dólar a 800 pesos. Quem dependia de importação, como é o caso de grande parte dos setores industrial, farmacêutico e médico, já sofria com a falta de insumos, mas a tendência é piorar.
A indústria ligada à construção civil também deve sofrer nos próximos meses, já que o próprio governo está congelando obras públicas e paralisando licitações. O setor é um grande empregador na Argentina e contribuirá para a bola de neve da queda de consumo.
“Para resumir, eu diria que todos os geradores de renda por commodities estão entre os vencedores, enquanto grande parte dos setores industrial e de obras públicas, que abastecem o mercado interno e são altamente dependentes de importações, estão entre os perdedores”.
O setor do turismo, grande interesse dos brasileiros, não deve sofrer uma grande perda em um primeiro momento, já que viajar para a Argentina deve continuar barato em um futuro médio. No entanto, com a inflação em disparada e o câmbio paralelo praticamente estagnado, os turistas tendem a perder poder de compra dentro do país, ainda que nada comparado aos residentes.
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