"Cair na realidade" e "deixar de lado os delírios de que isto é Europa" são os conselhos que o psicanalista argentino José Eduardo Abadi dá a seus compatriotas. Um dos mais famosos especialistas da área em seu país, Abadi lançou recentemente o livro Não Somos Tão Boas Pessoas, uma perspicaz análise da classe média argentina, onde disseca o comportamento dessa camada social que nos últimos anos vive uma drástica decadência econômica. Em seu consultório no bairro de Palermo, Abadi, que também é dramaturgo, ator do teatro do absurdo e apresentador de um programa de TV, recebeu a Agência Estado para navegar pela psique dos argentinos e tentar achar ali respostas para a atual crise econômica e o estancamento que o país sofre há décadas. Agência Estado - Os argentinos são prepotentes e melancólicos como sustenta o mito? José Eduardo Abadi - Por causa da profunda crise econômica os argentinos estão decepcionados e frustrados. A decepção provoca duas reações: a tristeza e a raiva. No entanto, mais do que atingir os argentinos, essa sensação atingiria os portenhos, os habitantes da cidade de Buenos Aires. Mas agora também existem os "portenhos" de cada província, ou seja, segmentos que, por imitação dos portenhos de Buenos Aires, surgiram nos últimos anos no interior. Mas, enfim, o que provoca a prepotência, é a reação zangada, acompanhada dessa tristeza causada pela decepção e a frustração. Parte disso se deve ao "pensamento mágico". Os argentinos consideram que as mudanças podem ser imediatas, como em um passe de mágica. AE - Este ano houve várias "saídas mágicas", como a blindagem financeira, a mega-troca de bônus, a cesta de moedas, o ajuste fiscal, e todas acabaram decepcionando... Abadi - Houve diversas estratégias, que de alguma forma propuseram medidas de mudança, mas não foram até o fundo. O problema com o "pensamento mágico" é que uma hora ele termina e sempre leva à frustração aguda. Por causa dessa forma de pensar, não se esforçam para mudar esta situação de crise econômica. AE - De quem é a culpa pela crise? Abadi - Os argentinos têm a idéia de que são altamente capacitados de forma natural. Sempre se põe a culpa no exterior quando as coisas não andam bem aqui dentro. É normal ouvir histórias de que todos os argentinos que vão ao exterior são sempre vencedores. Nessas histórias, eles se transformam em cientistas da Nasa, em médicos brilhantes... mentira. De cada cem argentinos que vão para fora, um dá certo. Até que essas fantasias infantis, que nos anestesiam, acabem de uma vez, vamos estar amarrados a uma promessa fictícia. E isto acaba criando um nível de soberba e prepotência que faz com que os países vizinhos não vejam a Argentina com carinho. AE - Como funciona essa prepotência? Abadi - Existe uma zanga pela frustração. E a zanga se veste de prepotência. Quando a gente tira a vestimenta de prepotência vê uma pessoa zangada embaixo. E quando tiramos essa roupa de zanga vemos embaixo uma pessoa triste e frustrada. E quando finalmente tiramos essa última roupa, vemos ali embaixo um argentino atingido pelo "pensamento mágico" que não o deixa crescer. Mas essa prepotência diminuiu muito. Hoje poderíamos dizer que, em vez de prepotentes, os argentinos são tristes e frustrados. Mas também há uma prepotência contra eles mesmos, e confundem autocrítica com autocastigo. Então, em vez de dizer que são uma maravilha, dizem: "Nós somos a última m... Isto aqui é um desastre..." AE - Os argentinos têm uma identidade nacional ou são europeus perdidos na América do Sul? Abadi - Esse é um problema que os brasileiros não têm. Os brasileiros não têm conflitos com sua identidade. Os brasileiros consideram-se brasileiros até o último de seus poros. Mas os argentinos, especialmente os portenhos, consideram que são os europeus da América do Sul. Existia uma idéia de que isto era como uma sucursal da Europa. Diziam que Buenos Aires era como Paris. Diziam que o Jardim Botânico daqui era como o Bois de Boulogne. Não é bem assim. Na Europa nem sabem quem somos. E além disso, a realidade econômica demonstrou que isto não é Europa. AE - Então, os argentinos não são "nacionalistas" como dizem? Abadi - Não há um nacionalismo "saudável" aqui. Existem deformações, meio facistóides, que agora são menores do que antigamente. Os brasileiros são mais nacionalistas, no bom sentido. Sentem mais identificação com sua história e sua terra. E por isso, pode ser que o Brasil tenha uma crise, um alto déficit, mas o dinheiro do Brasil é o real. E os brasileiros deixam seu dinheiro no Brasil, não o enviam para fora, como aqui. Os problemas de identidade, como temos aqui, causam dificuldades em ter uma comunidade. Desta forma, não há solidariedade nem normas. Não há um projeto comum. Existe desconfiança, e logo, fuga de depósitos. Estão sempre na defensiva. Isto leva ao medo, criando prepotência e tristeza. AE - Muitos economistas no Brasil consideram que a Argentina deveria desvalorizar. Isso seria psicologicamente possível neste país? Abadi - Para fazer a desvalorização é necessário a presença de uma comunidade, uma confiança e um alto nível de sentimento de correr um risco em conjunto com os outros, para conseguir algo bom. Mas aqui, uma possibilidade - ainda que remota - de desvalorização criaria pânico, e o pânico gera reações desesperadas, e com isso, teríamos o caos. Para desvalorizar, precisaríamos ter uma comunidade forte. Se as pessoas sentem que o país delas é pequeno e periférico, sentem que não têm uma nação. Se alguém acha que sua nação pode desaparecer, não tem uma nação. Mas a idéia de uma nação não pode surgir desde um delírio. Tem de ter como base a realidade. O problema é que aqui existe muita inveja, que faz com que as pessoas queiram que o outro, quando possui alguma coisa, a perca. Elas não pensam "que bom que ele tem isso". AE - O senhor tem esperanças quanto à Argentina? Abadi - Nos últimos 70 anos a Argentina teve mais presidentes militares do que democráticos. Mas desde 1983 existe democracia de forma contínua. E isso permite perguntar e discernir, coisas de que as gerações anteriores se afastaram muito, tendo este estado de coisas. Espero que estas novas gerações tenham força para um novo projeto de país.
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