Argentinos têm de escolher entre comprar comida ou remédios em meio a ajustes de Milei

Com medicamentos aumentando acima da inflação nos últimos meses, argentinos mais vulneráveis não conseguem comprar medicamentos, expondo uma nova faceta da crise econômica

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Foto do author Carolina Marins

Enquanto o presidente Javier Milei celebra os dados econômicos dos seus primeiros 100 dias na presidência da Argentina, a população precisa fazer uma escolha sensível: comprar comida ou remédios? Com a inflação a 276% anuais e os salários congelados, é impossível comprar os dois, e o resultado é uma queda de mais de 42% na compra de medicamentos nos primeiros dois meses do ano.

Segundo a Confederação Argentina de Médias Empresas (Came), fazia tempo que o setor de farmácia não sofria uma queda tão grande nas vendas. Foram vendidos 42,4% menos medicamentos em janeiro e fevereiro deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. Já a variação interanual do mês de fevereiro foi de 39%.

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E a culpa não é da falta de produtos, um problema que a Argentina vivenciou ano passado quando a inflação disparou e, na tentativa do governo anterior de conter a fuga de dólares, começaram a faltar produtos importados. De acordo com o informe, a queda foi por baixa procura mesmo, fazendo farmácias cogitarem abaixar os preços na intenção de atrair clientes.

Segundo o Centro de Profissionais Farmacêuticos Argentinos (Ceprofar), os medicamentos aumentaram 112% de novembro a janeiro, período que em Javier Milei dividiu com Alberto Fernández a presidência do país. Nesse mesmo período a inflação foi de 70%, observa o centro. Somente em janeiro foram comprados 10,8 milhões de medicamentos a menos em comparação com o mesmo período do ano passado.

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Uma voluntária classifica medicamentos para distribuí-los gratuitamente aos mais necessitados no Banco Comunitário de Medicamentos da Fundação Tzedaka, em Buenos Foto: Juan Mabromata/AFP

A cozinheira Viviana Bogado, 53, conta que seu filho Daniel, de 16 anos, precisa de antibióticos e uma dieta especial, o que não cabe no seu orçamento. “Tenho que comprar um leite especial para ele que custa três vezes mais que o comum, mais antibióticos e remédios para o estômago. Tive que escolher, ou seu tratamento ou o meu para colesterol”, relatou à AFP.

“Entre comer e comprar remédio, as pessoas têm escolhido comer”, observa a farmacêutica Marcela López por trás do balcão de uma farmácia em Buenos Aires. Segundo ela, quem não pode pagar um antibiótico, cujo aumento foi acima de 100%, tenta lidar com a dor levando ibuprofeno, cujo aumento foi de 95% nos últimos meses, de acordo com levantamento da Ceprofar.

“As pessoas estão comprando unidades menores dos remédios e essa é uma situação dramática que a estatística não mede”, explica Ruben Sajem, diretor do Ceprofar à agência. “Por exemplo, quem toma medicação diária para hipertensão, compra um blister de 10 comprimidos e acredita que tomando dia sim dia não está tudo bem. Na verdade isso não funciona, mais cedo ou mais tarde a saúde vai piorar e o gasto acabará sendo maior, inclusive para o sistema de saúde”.

Em fevereiro, quando a Casa Rosada celebrou os 13,2% de inflação mensal depois dos 20% de janeiro e 25% de dezembro, o setor de saúde registrou um aumento de 13,6%, que inclui não só o aumento de medicamentos, mas também dos planos de saúde. Com uma política de desregulamentação, promovida pelo Decreto de Necessidades e Urgências (DNU) firmado em dezembro, os planos de saúde passarão a sofrer reajustes mensais em torno de 25%, o que promete jogar mais pressão aos bolsos. Embora o decreto tenha sofrido uma derrota recente no Senado, ele segue em vigor até o Congresso decidir se o aceita ou rejeita.

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Nas farmácias argentinas, as pessoas verificam o preço dos remédios e não compram, nem mesmo antibióticos Foto: Juan Mabromata/AFP

Farmácia puxa queda no consumo

Em seus 100 primeiros dias de gestão, Milei celebra o primeiro superávit argentino em mais de 10 anos. Foram dois meses consecutivos em que as contas públicas fecharam no azul depois da intensa política de corte de gastos promovida pelo libertário. A medida foi uma das responsáveis pela desaceleração da inflação dos últimos dois meses.

O problema é que este resultado positivo é conquistado a custas de uma redução drástica do consumo, que primeiro afetou os alimentos e agora chega à saúde. De acordo com dados da Came, no primeiro bimestre do ano as vendas no varejo em geral caíram 27% na comparação com o mesmo período de 2023, queda esta que foi liderada pelo setor de farmácia.

Assim como acontecia com alimentos, o governo anterior de Alberto Fernández mantinha um acordo de controle de preço dos medicamentos com as farmacêuticas. O acordo, porém, terminou antes do fim do seu mandato e desde então os remédios apresentam altas consecutivas. Agora, após a forte desvalorização da moeda e com a inflação galopante, o poder de compra dos argentinos despencou, tornando esta alta ainda mais dramática.

Os salários dos argentinos perderam 20% o poder de compra nos últimos dois meses, o caso mais dramático é dos aposentados e pensionistas, em geral uma população mais velha e mais dependente dos medicamentos.

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“Tomo cinco remédios, dois me dão de graça, gasto 85 mil pesos por mês (R$ 417 na cotação paralela do câmbio), quase um terço da minha aposentadoria. Não há dinheiro”, diz ironicamente a aposentada Gabriela Fuentes, 73, que trata artrite. Quando tomou posse, em 10 de dezembro, Milei usou o jargão “No hay plata” (Não há dinheiro) para justificar a sua política de ajuste econômico.

Aposentados participaram de manifestação pedindo o restabelecimento da entrega gratuita de remédios em 24 de fevereiro Foto: Juan Mabromata/AFP

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Faltam remédios gratuitos

Aposentados e pensionistas, bem como pessoas com doenças graves que comprovem baixa renda, podem receber medicações gratuitas por meio de programas do governo. Mas, desde que assumiu a presidência, o governo Milei promoveu uma auditoria do programa que está vinculado ao Ministério de Capital Humano e atende pacientes com câncer, epilepsia e HIV, entre outras enfermidades.

Com HPN (Hemoglobinúria Paroxística Noturna), uma doença rara que destrói os glóbulos vermelhos para a qual não existe cura, Pablo Riveros, 20, precisa receber injeções quinzenais. O tratamento, porém, custa 42.000 dólares (mais de R$ 200.000) por mês, um valor impossível para sua mãe, uma costureira que é reponsável por outros seis filhos. A HPN “me causa anemia crônica, sangramento por qualquer via, muito cansaço”, conta Riveros, que não está paralisado pela enfermidade: pinta, toca piano e frequenta a universidade.

Desde março de 2023, um mês depois de ser diagnosticado, ele começou a receber a medicação do Estado mediante um programa de assistência social. A última vez que recebeu foi em novembro e já não há mais remédio sobressalente. Sua mãe, Estela Coronel, conta que a última aplicação só aconteceu graças à doação de um hospital.

Com o tratamento, Riveros vive uma vida normal: pinta, toca piano e frequenta a universidade Foto: Juan Mabromata/AFP

A família apresentou um recurso de amparo. “A resposta foi que o Estado não está nos negando a medicação, mas que temos que esperar que o fim da auditoria, porque, para eles, há corrupção em todos os lados”. “O problema é que Pablo não tem tempo”, afirma a mãe. O governo, porém, nega que haja uma interrupção do fornecimento.

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Fabián Furman é diretor do Banco Comunitário de Medicamentos da Fundação Tzedaká, uma entidade judaica que entrega medicamentos grátis à população vulnerável em Buenos Aires, e diz ter observado um aumento perceptível dos pedidos de ajuda. O banco, porém, prioriza pacientes crônicos e só fornece medicamentos por três meses a fim de atender o maior número possível de pessoas.

FMI alerta para proteger os vulneráveis

“Nos preocupa muito o tema do acesso aos medicamentos. Estamos vendo que a compra de medicamentos, como pílulas contraceptivas e retrovirais para o HIV, estão ficando restringidas e há um risco de que com isso se afetem direitos, em particular direitos sexuais e reprodutivos”, observou a diretora para as Américas da Humans Right Watch, Juanita Goebertus Estrada, que esteve recentemente na Argentina, durante entrevista ao Estadão.

Cada vez mais analistas se preocupam com o custo humano que as medidas de ajustes de Milei vêm trazendo. “Os números são bons para as contas públicas, mas abaixaram muito o nível de gasto, e isso fez com que a economia pessoal e das famílias caísse bastante”, afirma o analista do Observatório Pulsar da UBA Facundo Cruz.

Pablo Riveros, que sofre de Hemoglobinúria Paroxística Noturna, mostra seus medicamentos em sua casa em Lanús, na grande Buenos Aires Foto: Juan Mabromata/AFP

“Colocando em contexto, se considerarmos os números da inflação dos últimos meses, eu diria que a economia não trouxe bons números, particularmente para a sociedade. Os únicos bons números que trouxe foram para o Ministro da Economia, em seu balanço financeiro do Estado”, completa.

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Recentemente, o FMI (Fundo Monetário Internacional) fez um alerta para o presidente argentino: é preciso proteger os mais vulneráveis enquanto implementa as suas medidas econômicas. “As medidas concretas adotadas para cumprir com a âncora fiscal devem ser calibradas para garantir que a assistência social continue sendo prestada e que o peso não recaia totalmente sobre os grupos mais pobres”, declarou a subdiretora do FMI, Gita Gopinath, em uma entrevista ao jornal La Nación publicada no mês passado.

“Pela primeira vez na história, o próprio FMI adverte a Argentina: ‘Cuidado, não é só uma questão de ajuste, você precisa ter muito cuidado com o aspecto social’”, afirma o economista e professor da UBA Fabio Rodriguez./Com AFP

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