Este é um ano de efemérides cortazarianas. No dia 12 de fevereiro completaram-se 25 anos de da morte do escritor Julio Cortázar. Neste ano também comemoram-se os 60 anos da publicação de "Os Reis", os 50 anos de "As armas secretas" e os 30 de "Um tal Lucas". Se estivesse vivo, Cortázar completaria neste ano 95 anos. Mais especificamente, no dia 26 de agosto. Neste contexto de celebrações sobre a vida e obra de Cortázar, há poucas semanas chegou às vitrines das livrarias portenhas o "Papéis Inesperados", que reúne obras nunca publicadas antes, entre as quais onze contos, quatro autoentrevistas, treze poemas, anotações, além de capítulos - que nunca haviam sido incluídos - das obras "Livro de Manuel" e "Um tal Lucas".
Por isso, achei interessante contar sobre um livro publicado na Argentina há 10 anos, por um dos brilhantes jovens jornalistas do país, Emilio Fernández Cicco. O livro é "El secreto de Cortázar" (O segredo de Cortázar), publicado pela Editorial de Belgrano. A obra está esgotadíssima. Quem o encontre em algum sebo, não duvide em comprá-lo.
"Inibido, sempre doente, e de cultura eurocêntrica...Quem poderia imaginar que essa descrição se encaixaria na exuberante personalidade de um dos mais famosos escritores argentinos deste século, Julio Cortázar?", me explicou Fernández Cicco. E logo, arrematou: "esse era o Cortázar antes de ser Cortázar...".
Na obra, Fernández Cicco resgatou poemas, canções de ninar e hinos que Cortázar escreveu nesse período, e que eram completamente desconhecidas ou que se imaginavam perdidas.
Fernández Cicco relata a trajetória do tímido professor de literatura que começa sua vida profissional nas cidadezinhas de Bolívar e Chivilcoy, no interior da província de Buenos Aires, passando por Mendoza, até sua volta à capital do país quase uma década depois. A obra é fruto de dois anos de pesquisa, que esquadrinhou a desconhecida juventude do autor de "O jogo da Amarelinha", "História de Cronópios e de Famas" e "Bestiário", entrevistando centenas de ex-alunos, amores platônicos, amigos e parentes. Cobrindo as mudanças fundamentais ocorridas na vida do jovem escritor entre 1937 e 1945, "o livro conta o desabrochar de Cortázar, tanto literário como da personalidade", explica o autor.
O IMBERBE QUE VIROU BARBUDO Entre as mudanças ocorridas estão as alterações físicas. Ou melhor, uma só, que chamou a atenção: deixar de ser um imberbe a exibir uma vistosa barba. "Não tinha barba. E subitamente lá na França não sei o que aconteceu. Nunca lhe perguntamos se fez um tratamento. Mamãe surpreendeu-se, porque antes ele somente tinha um bigodinho, e nada mais", explicou Ofélia Cortázar, irmã do escritor.
Fernández Cicco especula que Cortázar começou a tomar hormônios com o mesmo médico que lhe tratava a asma. A lenda indica que seu colossal desejo de ter barba o levou a ingerir hormônios.
Fernández Cicco também esclarece a obscura história do pai de Cortázar, que em 1920, quando seu filho tinha 6 anos, desapareceu misteriosamente de casa e nunca mais foi visto. Com o dinheiro da avó, conseguiram sobreviver, além do trabalho da mãe em um Fundo de Aposentadorias. Anos mais tarde, relata Fernández Cicco, surpreenderam-se a ter notícias do pai: havia falecido no interior do país. Maior foi a surpresa quando souberam que tinham direito aos bens que o pai havia deixado: fazendas e uma confortável pensão para a viúva. Mesmo estando em dificuldades financeiras, Cortázar filho tomou uma atitude que deixava claro que nada queria do pai ausente: convenceu sua mãe a não aceitar um centavo sequer.
O fantasma do pai, também chamado Julio Cortázar, esteve presente durante anos. Por esse motivo, "Julio Denis" foi seu pseudônimo nas primeiras obras. Somente começou a assinar "Julio Cortázar" a partir de meados de 1945.
FANTASMA DA MORTE Cortázar imaginava que morreria antes dos 30 anos. Francisco Menta, um colega seu, uma vez lhe ofereceu um cigarro. O futuro escritor, que viveria até os 70 anos, respondeu: "desculpe, mas tenho que cuidar o coração". Mais tarde Menta surpreendeu-se ao ver fotos de Cortázar fumando avidamente charutos cubanos. Seus amigos tentaram animá-lo quando seu primeiro livro, "Presencia", um punhado de poemas crípticos, teve pouca repercussão. "Vamos lá, é seu primeiro livro. Depois haverá mais", lhe disseram. Com o apoio deles, dois meses depois Cortázar retomou sua produção. Além disso, eles orientaram o jovem poeta para um destino literário diferente: "porquê não volta a escrever aqueles contos tão bons?", lhe disseram, afastando-o irremediavelmente da poesia.
Durante os anos de Chivilcoy, Cortázar participou como roteirista de um filme feito na própria cidade: "A sombra do passado". O filme era um policial com traições, amor, drama e vinganças. O filme foi estreado em 1945, mas o público foi indiferente. Da obra, não resta uma só cópia. Só sabemos que Cortázar ao escrever o roteiro, dizia "quanto piores os diálogos, mais o público gosta".
TIMIDEZ Os depoimentos da época sustentam que Cortázar não falava sobre mulheres. Os amigos lhe falavam sobre elas, mas ele não respondia, o que causou boatos de que era afeminado. "Não queria saber de mulheres", afirma categórica sua irmã Ofélia. Uma de suas ex-alunas, foi mais ferina: "em suas calças nem havia volume...". As conversas com colegas restringiam-se à literatura e arte.
Em Chivilcoy estaria o primeiro amor de Cortázar: a estudante Nelly Martín. Cortázar tentou aproximar-se primeiro através de poemas, que enviava anônimamente.
"Não perguntes quem coloca en este canto / uma alma destinada ao sofrimento / e um pobre coração que te ama tanto; / se tu o adivinhas, nada te espante; / mas se não em encontras em teu sentimento / de nada serve que te dê meu nome" foi um dos poemas que Cortázar lhe enviou.
O "avanço" do jovem professor sobre a estudante é ilustrado saborosamente no livro: sabendo que Nelly iria ver uma peça de teatro do qual ele era o roteirista (uma história sobre gauchos - "O punhal dos trovadores") Cortázar subornou o funcionário da bilheteria para que vendesse a ela a entrada da cadeira a seu lado. Depois disso, teriam longos encontros na praça central da cidade, sempre às cinco das tarde. No entanto, nunca nada aconteceria. Mais de meio século depois, Nelly diria a Fernández Cicco: "eu e ele nunca nos beijamos na boca".
Nelly também o inspiraria a escrever sua primeira novela, "Solilóquio": a clara descrição de sua vida de professor e seu amor platônico por uma aluna não muito culta, mas "selvagemente sensual". Anos depois, em Paris, Cortázar queimou o livro, junto com seus primeiros contos fantásticos. No entanto, sobreviveram três cópias que haviam ficado com seus amigos na Argentina. Sua primeira esposa, Aurora Bernández, publicaria "Solilóquio" após seu falecimento.
Chivilcoy o sufocava. Ali era visto como comunista, anarquista e nacionalista. Em 1944 partiu para dar aula de literatura francesa na Universidade de Mendoza. Os Aliados haviam liberado Paris e a universidade fervilhava de ideias políticas. Em 1945, Cortázar participou da ocupação da Universidade pelos alunos.
No fim da ocupação, Cortázar foi preso junto com os alunos. Farto de tudo e com o crescente poder do então coronel Juan Domingo Perón (futuro presidente), a quem ele encarava como um autoritário, Cortázar voltou à Buenos Aires. "Mãe, renunciei a tudo. Não tenho um centavo sequer", disse ao entrar inesperadamente na casa. "Onde come um, comem dois", respondeu a mãe. Cortázar havia deixado suas inibições e seu jeito de menino. Cortázar já começava a ser Cortázar.
SUA IRMÃ, SOBRE JÚLIO: Sua irmã Ofélia disse a Fernández Cicco que Cortázar nunca lhe mostrou os contos para que os lessem antes de publicado. "Quando o livro saía ele nos dava de presente e pronto. Alguém compreende os livros de Julio? Você teve paciência para ler 'O jogo da amarelinha'. Ufa ! Por favor...Eu não consegui ler esse livro jamais...".
Outras frases de Ofélia sobre Júlio:
- "Meu irmão esperava ter uma hora livre para pegar um livro e pensar e imaginar. Essa foi sua vida".
- "Quando era criança, tínhamos que chamá-lo vinte vezes para que largasse os livros e viesse almoçar'.
BRUXELENSE-PORTENHO Filho de um casal argentino nascido em 1914 em Bruxelas, Bélgica (seu pai trabalhava na Embaixada argentina nessa cidade), viveu na Argentina durante sua infância, juventude e início da vida profissional, como professor de literatura. Nos anos 50, perseguido pelo governo do general Juan Domingo Perón, exilou-se na França. Ali transformou-se em um sucesso literário. Cortázar morreu de leucemia no dia 12 de fevereiro de 1984 em Paris. No dia em que saiu de sua casa para ir ao hospital para mais uma internação, disse, em alusão ao boxe, uma de suas paixões: "se esta luta fosse de sete rounds, eu ganharia. Mas, com doze rounds, acho que não haverá jeito...". Ele está enterrado no cemitério de Montparnasse, tal como era seu desejo, ao lado de sua esposa Carole Dunlop, falecida um ano antes dele. Quem visita seu túmulo costuma deixar uma taça de vinho e o rabisco de uma "rayuela" (o jogo da amarelinha, em homenagem a seu mais famoso livro).
E, para encerrar, esta entrevista que Cortázar concedeu nos anos 70 à TV Espanhola. Ele explica como surgiram os "Cronópios" e as "Famas".O link do Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=yS14T8ObSew&feature=related
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