A "Vênus do espelho", de Diego Velázquez (1599-1660), um dos mais destacados pintores do "século de ouro espanhol". Pintado entre 1647 e 1651. Está na National Gallery em Londres, Grã-Bretanha. Na época em que foi pintada, causou um rebu assaz significativo, já que, mais do que uma referência à mitologia greco-romana, o quadro era uma desculpa para exibir os glúteos desta desconhecida modelo espanhola (que também teria servido de inspiração para o quadro "A coroação da Virgem"). A obra foi comprada por um nobre inglês em 1813, saindo da Espanha. Em 1906 o britânico Fundo de Coleções Nacionais tentou arrecadar dinheiro para colocar a obra - que estava em mãos privadas - em um museu do Estado. O próprio rei Eduardo VII, admirador de glúteos e desta obra específica, forneceu fundos para que a instituição comprasse o quadro de Velázquez. Um século depois, também em Londres, a revista Zoo fez um ranking dos melhores derrières do mundo.
Keyra ou Keyra Agustina é a dona de uma esférica retaguarda que desde 2004 tornou-se furor na internet. Em 2006 foi declarada "a perfeita bunda do ano" (the perfect ass of the year) por Howard Stern, um dos mais famosos apresentadores da rádio e TV dos EUA.
O frequentadíssimo site ibérico "Super-tangas", de alta popularidade na Espanha e no mundo latino-americano a entronizou como a preferida ao longo de vários anos. Mas, apesar do tempo transcorrido, sua vigência na web permanece.
Os motivos para o sucesso de Keyra - ou melhor, de seu derrière - seriam os seguintes:
1 - Ela não era previamente famosa (isto é, não era cantora, atriz de novela, namorada de jogador de futebol, nem amante de político, jogadora de vôlei ou tenista, menos ainda participante de reality show).
2 - Durante vários anos jamais mostrou a cara, fato que aumentava o mistério.
3 - Suas fotos foram feitas de forma caseira, longe das produções em Bora-Bora da Playboy ou o cetim/rendas/colares de pérolas da Penthouse. Ao contrário: são fotos feitas em um cantinho prosaico da casa. Isto é: sem fotoshop algum.
4 - Se levarmos em conta que Keyra está presente na internet sem marketing, de forma "autônoma", temos que admitir que possui maiores méritos que os glúteos de modelos, cantoras e similares. São glúteos "antissistema".
Retaguarda da jovem argentina Keyra Agustina é considerada obra de arte por milhões de admiradores em todo o planeta Terra.
A figura de Keyra foi divulgada pelos fãs e hoje está estampada virtualmente em quase 700 mil sites na web nos quais entusiastas internautas tecem cantos de louvor à sua retaguarda, que há poucos anos era uma ilustre desconhecida. Habitante do bairro de Palermo, alcançou fama mundial quando seu namorado a fotografou e distribuiu as fotos pela internet. A partir dali a coisa foi viral.
ALTRUÍSMO - Keyra nunca ganhou dinheiro com a exibição de seu derrière: ela recusou a ofertas para ser a estrela de programa de TV na Espanha e convites de diversas revistas masculinas internacionais. Keyra só posou para uma revista, argentina, uma única vez e de graça (a Maxim). Resgatando o axioma "faça o bem sem olhar a quem", seu único interesse é o de inspirar milhões de homens em todo o mundo.
Cenário para poses de Keyra são prosaicos. Aqui, ao lado da porta de seu armário, em um cantinho do apartamento. Na maior parte das fotos, Keyra posa vestida. Com vestimenta exígua, mas vestida.
LISTA: Esta é a lista oficial do ranking de glúteos excelsos da revista "Zoo": 1-Kim Kardashian, 2. Rihanna, 3. Geena Mullins, 4. Pixie Lott ,5. Caitlin Wynters, 6. Scarlett Johansson , 7. Charlotte Herbert ,8. Keyra Agustina, 9. Melissa D , 10. Stacey Pool.(na segunda dezena somente uma sul-americana, Shakira, que ficou no undécimo posto...Jennifer López, americana de antepassados hispano-americanos, ficou no vigésimo-primeiro)
Keyra posa com uma camiseta alusiva à seleção argentina.
NACIONALISMOS GLÚTEOS - Os glúteos das brasileiras foram durante décadas reconhecidos como os "derrières" par excellence deste planeta. Dentro do país, foram assunto tratado por poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, escritores como Jorge Amado, pintores como Di Cavalcanti, além de fotógrafos, músicos, carnavalescos e até arquitetos.
Fora do país, artistas internacionais, desde Marcelo Mastroiani até Frank Sinatra, passando por Orson Welles, também realizaram elogiosos comentários sobre esse aspecto da anatomia nacional.
Para horror dos setores mais nacionalistas, Keyra é argentina, nacionalidade da qual jamais poderíamos ter esperado tal concorrência.
No entanto, o apreço pelas formas deste jovem deusa calipígica liquida eventuais chauvinismos territoriais, já que a exaltação dos glúteos de Keyra chegou até o Brasil. No país, existem centenas de sites com cantos de louvor aos quadris da vizinha do Mercosul.
No Orkut e outras redes sociais, as rivalidades no futebol e no comércio bilateral foram deixadas de lado, já que diversas comunidades dedicam-se ao intercâmbio de opiniões, análises e dados sobre como conseguir novas fotos da ídola argentina. Uma das comunidades, a "Keyra Agustina Brasil", destaca que a jovem é "quase perfeita", já que seu único defeito é "ser argentina e não brasileira".
Analistas explicam que derrières argentinos costumam ser mais "contidos". Acima, Keyra ilustra o assunto que gera debates.
TEORIAS: EXPANSÃO VERSUS SOBRIEDADE - "A bunda argentina é mais 'contida', enquanto que a brasileira é 'expansiva'", me diz o ensaísta argentino Martín Caparrós, enquanto beberica um café em um bar de Palermo.
Eu, modesto estudioso do assunto, sintetizo uma série de opiniões amateurs sobre o assunto que havia ouvido nos últimos tempos: "Martín, muitas pessoas que consultei acreditam que a argentina possui uma retaguarda 'aristotélica', já que o filósofo grego considerava esfera como a forma perfeita. A brasileira, segundo estas pessoas em Buenos Aires, São Paulo, Rio e Bogotá, recordaria a frase do duce italiano Benito Mussolini que dizia 'é meglio un giorno di leone che cent'anni de pecora' (é melhor um dia de leão do que cem anos de ovelha). Isto é, glória, embora breve. A problemática da (eventualmente) mussoliniana bunda brasileira é que - segundo os consultados - tal como a arquitetura de Oscar Niemayer, desafia a gravidade. E tal como as obras de Niemayer, com o tempo sofrem problemas estruturais. Já os glúteos argentinos, mais conservadores em seu design, perdurariam mais, segundo as avaliações ouvidas".
Caparrós ouve, pensa, dá outro gole de café (brasileiro). Na seqüência, arremata com alusões à astronomia: "os glúteos brasileiros são esbanjadores, como uma explosão, que acontece, mas deixa de ser imediatamente". Depois, levanta o índice, pontificando: "mas elas possuem a glória de uma estrela supernova!".
Autor de "Boquita" (considerada o melhor livro de História sobre o Boca Juniors), Caparrós faz um brinde com o resto de seu café: "argentinos e brasileiros - rivais no futebol - confraternizamos no apreço comum pelos derrières".
Germán Pitelli, chefe de redação da edição argentina da revista "Maxim" na época da publicação das fotos da musa da web, sustenta que Keyra, "como boa exibicionista, desfruta que seu traseiro seja admirado por todo o mundo". Do alto de sua vasta experiência, Pitelli afirma que "nunca" viu alguém posar com "tanta naturalidade" como Keyra.
Pitelli é diplomático e elogia glúteos brasileiros e argentinos: "o bumbum argentino é por excelência firme, compacto, pequeno e provocador...já, o das brasileiras é todo um continente a explorar".
"Suas poses são prosaicas, quase sempre tendo como fundo uma persiana ou um cantinho de seu modesto quarto. Não há cetim, nem pérolas ou cenários paradisíacos como em certas revistas masculinas. Ela não tem pretensões, nem ambições", avaliou, por telefone, meu amigo porto-riquenho Héctor Feliciano, ex-correspondente cultural do "The Washington Post" em Paris, autor do livro "O Museu Roubado" (sobre o saque de obras de arte durante a Segunda Guerra Mundial), conferencista em Nova York que atualmente mora em Puerto Rico.
O colombiano Raúl Trujillo, especialista em pesquisa de grupos de consumo e sociologia da moda, afirma que a anônima e caseira Keyra simboliza a derrota da indústria da comunicação, que tenta impor atrizes e modelos famosas como sex-symbols. Trujillo sustenta que "o público agora não quer mais a pessoa famosa...ele quer a cotidianeidade!".
Os gregos criaram uma deusa ad hoc para as questões glúteas: Aphrodite Kallipygios (???????? ??????????). Esta é uma estátua de mármore feita pela Academia Fancesa de Roma, em 1683, cópia da estátua romana da coleção Borghese. A versão original é de uma Vênus nua. Mas, este drapeado foi colocado por Jean Thierry (1669-1739) por "razões de decência"
GLÚTEOS: CULTURA, TEOLOGIA E ARQUEOLOGIA
Os gregos criaram uma deusa do amor, a Aphrodite Kallipygios, cujo nome significa, literalmente, "deusa das formosas nádegas". Para os gregos era uma parte destacada da anatomia humana, não só pela agradável curva, mas também porque o diferenciava dos símios.
Na Idade Média tornou-se parte da cultura popular a ideia de que o diabo, ao contrário dos seres humanos, não possuía nádegas. Isto é, os glúteos, consequentemente, seriam uma marca celestial.
O diabo podia simular que era um humano, fantasiar-se e assumir uma forma de homem ou mulher. Mas, essa atitude camaleônica nunca conseguia ser completa, já que falhava nos quartos traseiros.
Bunda-less demônio fulo da vida com senhoritas de abundantes ancas. Na ilustração, demo é acompanhado do sr. Morte, também carente de glúteos. Gravura de Daniel Hopfer, ao redor de 1500 a 1510.
A ausência de uma "poupança" satânica incomodaria Belzebu de forma atroz. Desta forma, uma maneira de afugentar o 'demo' seria a de arriar as calças (ou levantar saias, saiotes, kilts, batinas, etc) e exibir ao próprio Senhor do Mal as humanas nádegas. Assim, o demônio, furioso, olharia para o lado, colocando longe seu "mau-olhado" e se consumiria em inveja.
Adrianus Spigelius: anatomista brilhante. No entanto, considerava que os glúteos que havia estudado haviam sido criados com fins 'elevados'.
Há alguns séculos, o anatomista flamenco Adriaan van den Spiegel, também chamado de Adrianus Spigelius (1578-1625) afirmava em sua obra póstuma "De humani corporis fabrica libri X tabulis aere icisis exornati" que "as nádegas foram dadas ao homem para que, ao poder sentar-se sem fadiga, possa dedicar-se mais confortavelmente ao estudo das coisas divinas". Era a negação do físico e uma reinterpretação funcional das partes do corpo onde parecia residir o pecado.
Colaborando com o fim da era vitoriana, o escritor britânico D.H.Lawrence, em "O amante de Lady Chaterley" faz uma apologia aos glúteos femininos ao exaltar a "redonda e inativa firmeza das nádegas".
Poucos anos antes, do outro lado do canal da Mancha, o poeta francês Arthur Rimbaud indicava que o derrière trata-se de "dois arcos excepcionais".
Arthur Rimbaud (1854-1891) poeta francês que trafegou entre o simbolismo e o decadentismo também referiu-se aos derrières e seus encantos. Acima, famosa foto do poeta quando jovem. Na imagem, de 1871, tinha 16 anos e estava produzindo os melhores versos de sua vida.
Voltando ao outro lado do canal, no começo do século XIX Lord Byron, poeta inglês, sustentava que o bumbum "é algo estranho e belo de contemplar".
O pintor espanhol Salvador Dali considerava que "a bunda é onde podem ser desvendados os maiores mistérios da vida".
Outro espanhol, o poeta espanhol Federico García Lorca referia-se aos glúteos femininos pequenos, quase minimalistas, (seu objeto de desejo eram os masculinos, mas ele sabia apreciar e admitia a beleza dos derrières femininos) como "planetas de cobre".
Ainda os espanhóis: No século XVII Diego Velázquez pintava bundas "atuais". É o caso da "Vênus do Espelho", por exemplo. O quadro está todo montado para mostrar um derrière. Há escritores que se destacam por um livro. Há pintores que se salvam por um bumbum. Pablo Picasso (mais um espanhol) brincou de desestruturar as bundas. E toda a anatomia. Uma vezes acertou. Outras não. O erotismo de Picasso é agressivo, fáunico. Parece dar mais valor ao ímpeto da possessão que à beleza da mulher.
Fellini: cineasta deu espaço aos glúteos expansivos no celulóide.
Saindo do Mediterrâneo ocidental para o central, o cineasta italiano Federico Fellini afirmava que "a mulher bunduda é uma epopéia molecular de feminilidade".
Aliás, durante muitos anos o diretor de cinema Federico Fellini freqüentou as tardes de uma prostituta. Não mantinha relações sexuais com ela, que se deitava na cama, enquanto ele fumava e ficava bebendo, olhando para sua bunda.
Quando seu roteirista Tonino Guerra lhe perguntou o porquê disso - assim ele me disse em uma entrevista na cinemateca de Madri em 1994 - Fellini respondeu: "un giorno senza culo é un giorno senza sole" (um dia sem bunda é um dia sem sol).
Depois, Guerra fez uma pausa, olhou para o teto do café da cinemateca como se estivesse procurando o amigo, que havia falecido cinco meses antes, e completou com uma observação própria: "são esferas harmoniosas sobre o caos. Sem bunda não há salvação".
E já dizia o poeta Drummond: "Existe algo mais? Talvez os seios/ Ora, murmura a bunda - Esses garotos/ ainda lhes falta muito que estudar".
Ilustração do Codex Manesse (1305-1340) que mostra o Duque Von Anhalt em meio à tresloucada pancadaria com outros cavaleiros. Todos ostentam roupas com seus brasões. E "brasão" vem do latim "blasus", que significa "arma de guerra", tal como os glúteos, utilizados nas batalhas da sedução.
HERÁLDICA GLÚTEA - Na contra-mão de Drummond, diversos antropólogos consideram que os glúteos seriam um luxo da natureza, mera sexualidade. Os seios seriam funcionais, nutritivos. A bunda seria pura gratuidade. Como a cauda de um pavão.
Mas, além de gratuidade, também possuem a qualidade de uma arma. Arma de sedução, mas armas enfim. Neste caso, existiria - por parte de alguns escritores - a tentativa de definir uma "herálica dos glúteos".
Heráldica é a ciência do brasão, isto é, o estudo das armas. E "brasão" vem do latim "blasus", que significa "arma de guerra".
Um desses heraldicistas glúteos conversou comigo sobre o assunto em 1993 em Madri. Ele era Francisco Umbral (1932-2007), literato espanhol, um raro machista respeitado pelas feministas do país do Quixote.
Francisco Umbral, heraldicista glúteo e intelectual espanhol já defunto.
Aqui embaixo segue o resumo da conversa com o escritor:
"Nádegas é fonéticamente frouxo", disse Umbral. Segundo ele, "essa palavra sugere bundas flácidas, caídas. Além disso, ao falar de bunda no plural, "nádegas", parte-se em dois. E a bunda deveria ser uma unidade, singular, como a alma. Indivisível".
GLÚTEOS: "Possuem glúteos as campeãs olímpicas, as de bodyboarding", sustentou Umbral.
POUPANÇA ("Pompis" em espanhol da Espanha): "Possuem poupança nossas tias, todas as professoras de piano e as garotas educadas em colégios de freiras. Exemplo: Margareth Thatcher".
NÁDEGAS: "São uma particularidade das solteiras de profissão. Funcionárias de correios ou municipais, integrantes do corpo de arquivistas e bibliotecárias. As longas horas sentadas afrouxam o glúteo, transformando-o em nádegas".
TRASEIRO ("Traste" em espanhol da Espanha): "As potrancas o possuem. As que estão convencidas que detêm a melhor bunda de seu município.
BUNDA ("Culo", em espanhol da Espanha e vários países latino-americanos): Geralmente é aquela que caminha à nossa frente, em tênue vaivém. A inacessível. Essa bunda heráldica e breve com a qual gostaríamos de praticar
Mas, quando expliquei o conceito brasileiro de "bunda" ao escritor espanhol (e apresentei um material iconográfico sobre o caso), ponderou: "bunda é uma criação brasileira. Digna de um Nobel da Paz. Se todos pensassem em 'bundas' (pronunciou a palavra fazendo ênfase na 'u') não haveria mais Bósnias (em referência à guerra balcânica, que transcorria naquele ano). É o 'culo' do ourives. É quase o 'culo' arquetípico".
No fundo, indepedentemente desses debates, temos que dar nossos agradecimentos aos Australopitecus afarensis, já que ao transformar-se em bípedes, os músculos glúteos expandiram-se exponencialmente, criando o derrière.
Se os homens pensassem mais em sexo haveria menos guerras como a da Bósnia, argumentava 'Paco' Umbral, resgatando o velho slogan hippie, "faça o amor e não a guerra". Mapa da Bósnia-Hezergovina e seus vizinhos Sérvia e Montenegro no começo do século XX.
Em 2009 "Os Hermanos" recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).
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