Santos populares argentinos são protagonistas de histórias trágicas. O Gauchito Gil retratado em uma estampa popular. Hoje falaremos sobre ele e outra santa popular argentina, 'La Difunta Correa', a pedido do comentarista Laerte Carmello. No pé desta postagem, a notícia sobre a morte do cantor Sandro, um dos ícones da música pop argentina.
A cúpula da Igreja Católica não reconhece estes santos no "panteão" oficial dos santos canonizados pelo Vaticano, já que para isso seriam necessários dois milagres confirmados, verificados por doutores em teologia e outros especialistas do ramo certificados pela Santa Sé. O segundo e terceiro escalão do clero geralmente encaram os cultos como "manifestações de intensa fé". Mas, tentam conduzir os fiéis para o culto de santos 'autorizados'.
Estes santos populares tiveram - todos - mortes trágicas. São falecimentos de elevado sofrimento, que fazem que os fiéis considerem que foi uma espécie de visto imediato para um passaporte que limpa os mártires de todos seus pecados e os coloca em contato direto com Deus.
De quebra, são santos "locais", isto é, uma espécie de encarregados diretos, encarados como se fossem divindades com menos serviço do que os santos ou virgens de alçada mundial. Desta forma, o milagre solicitado deveria - teoricamente - ser concedido (se for o caso) de forma mais rápida. Uma espécie de "atalho" entre a pessoa que solicita um milagre e o alvo do pedido, isto é, Deus.
As lendas indicam que estes santos não-oficiais possuiriam maior 'percepção social' do que seus congêneres europeus e compreenderiam melhor eventuais "debilidades", como a de roubar por necessidade.
Enquanto que não seria adequado solicitar ajuda celestial a um santo como são Francisco, são Miguel, santa Teresa ou as Virgens de Covadonga, Fuencisla ou Lourdes para ter sucesso em um eventual roubo com o qual poderá saciar a fome de sua família, a pessoa em questão sim poderia pedir ao Gauchito Gil um respaldo santificado nessa empreitada.
No entanto, o gauchito condenaria e puniria um roubo por cobiça. A "Difunta", além de ajudar as pessoas, castigaria aquelas que se comportam mal.
O culto a alguns santos populares, que no final do século XIX ou na primeira metade do século XX estavam restritas a suas áreas originais de influência nas pequenas cidades do interior da Argentina, começaram a expandir-se para as grandes cidades do país.
Desta forma, atualmente é comum ver taxistas com estampas do Gauchito Gil ou comerciantes com uma foto do altar da cantora Gilda (falecida de forma trágica em um acidente na estrada) ou do cantor Rodrigo Bueno (também falecido em um acidente) ao lado da caixa registradora. 'San La Muerte' é outra das figuras que integram a equipe de assistentes celestiais que encurtariam o caminho entre aqueles que pedem milagres e os céus.
No entanto, o Gauchito Gil foi mais além que seus colegas do panteão dos santos extra-oficiais e já conta com um grupo no Facebook.
A DEFUNTA
Deolinda tentou seguir a trilha dos soldados que haviam levado seu marido. Mas, carregando seu bebê nos braços, perdeu-se no meio de uma área desértica. Esgotada, sentou-se no chão e morreu de sede.
Dias depois, um grupo de gauchos passou por ali. Os homens viram o corpo sem vida de Deolinda. E, em seus braços - diz a lenda - estava seu bebê, que ainda mamava dos seios cheios de leite da mãe morta. A criança foi resgatada pelos gauchos, que ficaram impressionados com a cena.
Gradualmente, os gauchos que nos anos seguintes passavam por ali, começaram a deixar garrafas d'água para sacia a eterna sede da 'Defunta' Correa. No final do século XIX a peregrinação até o lugar começou a ficar intensa. O fenômeno consolidou-se no século XX.
No início ela era procurada para realizar milagres de saúde, além de proteger os viajantes. Mas, no meio da série de crises que afetaram a Argentina nas últimas décadas, a 'Difunta' passou a ser requerida para estas áreas.
Este gaucho, misto de bandoleiro e benfeitor, com o início da guerra do Paraguai (1865-1870), foi recrutado pelo Exército. Gil fugiu e tornou-se desertor. Outras versões indicam que não desertou e que também participou de uma guerra civil interna em sua província. No meio desse segundo conflito bélico, teria tuido uma visão, enquanto dormia, do deus guarani Ñandeyara, que lhe ordenou "não derramar sangue dos irmãos". Nesta segunda versão, Gil teria desertado dessa guerra civil.
Após desertar, dedica-se à uma vida de "Robin Hood". Nas pausas, aproveita para participar de festas e bailes.
Anos depois, foi encontrado pela polícia. Não tentou resistir, obedecendo a ordem de Ñandeyara.
Depois de uma longa sessão de torturas no meio do campo, os policiais penduraram Gil de um "algarrobo" (uma árvore de madeira muito dura) de cabeça para baixo.
Um dos policiais ergueu o punhal e preparou-se para cortar o pescoço de Gil. Nesse instante, o gaucho murmurou: "seu filho está muito doente. Se você rezar para ele, a criança viverá. Caso contrário, morrerá".
Gil também teria dito que, quando o policial voltasse para o vilarejo de Mercedes, além de saber da doença do filho, também ficaria sabendo que as autoridades haviam indultado o foragido. "Você vai derramar sangue inocente, por isso, reze para mim para que eu interceda perante Deus nosso senhor pela vida de seu filho...o sangue dos inocentes costuma servir para fazer milagres", disse o prisioneiro.
O policial ignorou as afirmações do prisioneiro e o degolou. Poucas horas depois, de volta a seu vilarejo, o policial foi informado que seu filho estava profundamente doente. Desesperado, o policial rezou a Gil para que salvara a criança. Segundo a lenda, o recentemente executado desertor salvou o menino desde o além. Agradecido, o policial enterrou Gil com as correspondentes honrarias cristãs e ergueu um santuário para ele.
Desta forma, é o caso de um santo popular cujo culto iniciou no dia seguinte à sua morte. E de quebra, seu primeiro devoto é o próprio verdugo.
Diplomaticamente, perante o crescente culto do Gauchito Gil, em 2006 o bispo Ricardo Faifer, bispo da cidade de Goya, perto de Mercedes, o definiu como "um irmão falecido que, acreditamos, está perto do Criador".
O santuário, nas vizinhaças da cidade de Mercedes, na província de Corrientes, é objeto de peregrinações permanentes, para irritação da cúpula da Igreja Católica, que considera que seu culto é "pagão". A data em que o Gauchito é mais intensamente celebrado é o 8 de janeiro, dia que teria marcado seu sacrifício.
Mas, apesar de sua morte em 1874, seu culto só tornou-se nacionalmente intenso nos últimos 30 anos, época em que a Argentina mergulhou de crise em crise econômica.
Na província, que é vizinha ao Rio Grande do Sul, a peregrinação ao santuário do Gauchito Gil, em média de 130 mil pessoas no dia 8 de janeiro, só é ultrapassada pela romaria realizada na Basílica de Itati, onde está a imagem da Virgem de Itatí.
O Gauchito Gil é retratado como um gaucho jovem, de cabelos longos e rebeldes que caem sobre os ombros, bigode e 'boleadoras' nas mãos. Atrás dele, costuma aparecer uma cruz. Se não fosse pela ausência da barba (somente possui o bigode) e a vestimenta gauchesca (e as boleadoras), sua figura poderia ser confundida com a iconografia costumeira de Jesus Cristo.
Entre todos os santos populares, o culto do Gauchito Gil é o que mais teve repercussões artísticas, tanto em formato de canções, filmes, peças de teatro, além de repentistas.
O cantor Sandro não fez milagres celestiais convencionais. Mas, fez que milhões de 'chicas' argentinas fossem felizes durante décadas. Na foto, Sandro pouco antes de ser submetido às diversas cirugias que tentaram salvar sua vida. Com entusiasmo, vestido com um robe de chambre no pátio do hospital, saudou suas fãs.
DOS POODLES DE OKLAHOMA A EL GITANO: FALECEU SANDRO, UM DOS FUNDADORES DO ROCK ARGENTINO
Todos os canais de TV na Argentina interromperam sua programação normal para anunciar o falecimento do ídolo de multidões. O Washington Post estampou o título: "Morreu o Elvis argentino".
O cantor foi velado com honrarias no Congresso Nacional. Milhares de fãs, desconsoladas, choravam em silêncio na fila para dar o adeus ao ídolo. 50 mil pessoas foram ao velório. Sandro foi enterrado nesta quarta-feira.
Sandro - também chamado de "Sandro de América" - cujo nome verdadeiro era Roberto Sánchez, é considerado um dos fundadores do rock no mundo hispano-falante. Ele foi a principal figura do rock argentino nos anos 60 e início dos 70.
Posteriormente, o cantor adaptou-se às baladas românticas e o pop latino. Carismático, low profile em sua vida pessoal, Sandro transformou-se em um cantor 'cult' desde a virada do século.
Famoso em toda a América Latina, o cantor também fez sucesso entre o público hispano nos EUA. Em, 1970 tornou-se o primeiro artista latino a apresentar-se - e lotar - o estádio Madison Square Garden, em Nova York. Nos anos 80 foi desprezado pela crítica, que o acusava de ter um estilo "brega".
Mas, nos anos 90 sua imagem foi recuperada. Sandro convidado pelos jovens roqueiros argentinos para realizar duetos e tratado como um mestre.
Por causa de seus graves problemas respiratórios, Sandro não realizava shows desde o ano 2001. Assolado por um enfisema pulmonar, no último show Sandro cantou com um microfone que estava conectado a um tubo de oxigênio.
Sandro manteve ao longo de sua carreira a marca do requebrado e movimentos pélvicos que enlouqueciam as fãs. Com um look inspirado em Elis Presley, os especialistas posteriormente indicaram que Sandro, na música argentina, teve peso similar ao que Roberto Carlos teve no Brasil. E, em certo período de sua vida cultivou um look similar ao de Sidney Magal, com toques ciganos que lhe valeram outro apelido, "El Gitano" (nome de um filme seu, aliás).
Com o passar do tempo Sandro trocou a jaqueta de couro pelo smoking. Nos shows também apresentava-se com um robe de seda vermelha. Apesar da troca de vestimenta, continuou mantendo o requebrado impetuoso à moda de Elvis Presley que nos anos 60 e 70 escandalizava a Igreja Católica, que pedia que suas imagens não fossem transmitidas pela TV.
Sandro foi o primeiro cantor que contou com frenéticas fãs que tentavam arrancar sua roupa. Nos shows que realizava no início dos anos 70 "las chicas" arremessavam sua lingerie sobre o cantor. No final dos anos 90, as mesmas fãs, 30 anos mais velhas, continuavam arremessando a roupa de baixo na direção do cantor (além de centenas de bichinhos de pelúcia em cada show).
Sandro debutou na carreira artística em 1960 quando fundou o grupo "Los caniches de Oklahoma" (Os poodles de Oklahoma), cujo primeiro sucesso foi "Comendo rosquinhas quentes na Ponte Alsina", considerada por vários estudiosos como o primeiro rock argentino que foi gravado.
Em 1961 Sandro e seus parceiros de grupo deixaram de lado o irônico nome canino e mudaram o nome do conjunto para "Sandro y los del fuego" (Sandro e os do fogo). Posteriormente fez carreira solo com os apelidos de "Sandro" e "O cigano".
NENAS E LINGERIE - Em 2001 fui assistir aquele que seria o último show de Sandro, no Teatro Gran Rex, em plena avenida Corrientes, em Buenos Aires. Sentei no "poleiro", isto é, nas últimas filas. Ali pude ver o frenesi das "nenas" de Sandro (90% do auditório), que viam seu envelhecido cantor como um sex symbol no auge de sua sensualidade.
As cinquentenárias, sexagenárias e septuagenárias 'nenas' gritavam como fãs adolescentes a cada movimento pélvico (breves, nessa ocasião, pois já estava doente) de Sandro, enquanto arremessavam sutiãs e calcinhas sobre o palco.
Foi uma experiência antropológica. Não vi tal festival de hormônios femininos em fervorosa exaltação a um cantor sequer nas adolescentes que assistiam os 'Backstreet boys' ou representantes de diversas gerações que viam os Rolling Stones. Canastrão, mas carinhoso, com um toque de gentleman, Sandro conseguiu 'sacudir' gerações de mulheres na América Latina.
"Um sedutor mitológico sem a ajuda dos manuais" - O "Clarín", sobre Sandro: http://www.clarin.com/diario/2010/01/04/um/m-02113277.htm
A construção do mito: http://www.clarin.com/diario/2010/01/04/um/m-02113269.htm
Velório no Congresso Nacional, segundo o "La Nación": http://www.lanacion.com.ar/nota.asp?nota_id=1218547&pid=8032111&toi=6253
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