Em março, uma fabricante de armas russa convidou uma delegação de iranianos para uma viagem de negócios VIP às suas fábricas. Os 17 visitantes foram recebidos com almoços e apresentações culturais e, no último dia, foram conhecer instalações onde são fabricados produtos cobiçados há muito por Teerã: sistemas russos avançados de defesa antiaérea para derrubar aviões inimigos.
A fábrica NPP Start, na cidade de Ecaterimburgo, está sob sanções dos Estados Unidos por apoiar a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Entre outros produtos, a empresa fabrica lançadores móveis e outros componentes para baterias antiaéreas — incluindo o sistema russo S-400, que analistas militares avaliam ser capaz de detectar caças de combate furtivos usados por Israel e EUA.
Um documento russo vazado, parte de um conjunto de e-mails iranianos postados online em fevereiro por um grupo hacker, descreveu a visita como uma mostra “do potencial científico e técnico e das capacidades de produção” que a Rússia poderia oferecer para o Irã.
É incerto se a visita ocasionou alguma compra diretamente. Mas a viagem é emblemática em relação a algo que autoridades de inteligência descrevem como uma parceria estratégica que se aprofundou entre Moscou e Teerã desde a invasão russa em escala total à Ucrânia — uma aliança que poderia emergir como um fato significativo conforme os líderes israelenses avaliam a possibilidade de realizar ataques militares em retaliação às centenas de drones e mísseis lançados contra Israel durante o fim de semana.
O Irã inaugurou um novo capítulo perigoso em suas relações com a Rússia ao concordar, em 2022, em fornecer milhares de drones de batalha e mísseis para Moscou em sua guerra contra a Ucrânia. Os laços intensificados ajudam agora a cimentar acordos entre Moscou e Teerã, incluindo uma promessa russa de fornecer ao seu aliado caças de combate avançados e tecnologia de defesa antiaérea, itens que poderiam ajudar o Irã a endurecer suas defesas contra qualquer ataque aéreo futuro de Israel ou dos EUA, segundo autoridades de inteligência americanas, europeias e médio-orientais e especialistas em armamentos. As autoridades, como vários outros entrevistados para a elaboração desta reportagem, falaram sob condição de anonimato para discutir assuntos sensíveis.
Não se sabe quantos desses sistemas foram fornecidos e acionados, mas a tecnologia russa poderia transformar o Irã em um adversário muito mais formidável, com capacidade melhorada de derrubar aviões e mísseis, afirmaram autoridades e especialistas.
Os acordos armamentistas, alguns inéditos até a publicação desta reportagem, são parte de uma colaboração mais ampla que inclui coprodução de drones dentro da Rússia, compartilhamento de tecnologias contra embaralhamento de sinal e avaliações no campo de batalha em tempo real de armamentos acionados contra as forças equipadas pela Otan na Ucrânia, afirmaram autoridades de inteligência e especialistas em armas. A cooperação tem rendido benefícios substanciais para ambos os países, ao mesmo tempo que eleva o status do Irã de aliado menor para parceiro estratégico, afirmaram as fontes.
“Não existe mais a dinâmica patrono-cliente em que a Rússia tem mais peso”, disse Hanna Notte, diretora do Programa de Não Proliferação na Eurásia do Centro James Martin de Estudos de Não Proliferação. “Os iranianos estão se beneficiando com essa mudança. A natureza de sua relação foi além de ganhos meramente materiais. Há transferências de conhecimento, ganhos intangíveis.”
Acordos
Autoridades de inteligência afirmaram que a Rússia está “avançando” com acordos negociados secretamente para fornecer ao Irã aeronaves Su-35, um dos caças-bombardeiros russos de maior capacidade, o que representaria uma modernização possivelmente dramática para a Força Aérea iraniana, que consiste principalmente de aviões americanos e soviéticos reformados, fabricados antes de 1979. A Rússia também prometeu fornecer ajuda técnica com satélites-espiões iranianos, assim como assistência na fabricação de foguetes para colocar mais satélites em órbita, afirmaram as autoridades.
Não há nenhuma evidência pública de que os Su-35 tenham sido entregues; o adiamento pode ser motivado por um atraso do Irã no pagamento pelos aviões, de acordo com autoridades de inteligência dos EUA e do Oriente Médio com conhecimento detalhado sobre o contrato.
No lado defensivo do cálculo, o Irã busca há muito tempo as baterias russas de mísseis antiaéreos para proteger suas instalações nucleares e militares contra possíveis ataques americanos ou israelenses. Em 2007, Teerã firmou um contrato para adquirir o sistema antiaéreo, mas Moscou adiou o fornecimento das armas em meio a uma pressão dos EUA e de potências europeias. O banimento autoimpingido terminou em 2016, e os sistemas S-300 do Irã entraram em operação em 2019.
Desde então o Irã buscou adquirir o sistema russo S-400, de maior capacidade, mas não é conhecido publicamente se Moscou movimentou-se ou não para fornecer essas baterias.
Algumas variações do S-400 são equipadas com radares capazes de detectar tecnologias de ocultamento usadas pelos aviões furtivos mais modernos. A Rússia enviou sistemas S-400 para proteger suas bases militares na Síria, e as baterias constituem uma ameaça potencialmente letal para aeronaves americanas e israelenses acionadas ocasionalmente no espaço aéreo sírio.
Ataque
Um ataque israelense contra a Embaixada do Irã em Damasco, em 1.º de abril, matou dois generais iranianos e motivou diretamente a decisão do Irã de lançar drones e mísseis contra Israel no fim de semana.
O tenente-general Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas de Israel, afirmou na segunda-feira que o ataque do Irã “terá uma resposta”.
Se entregues, os novos mísseis russos antiaéreos e os sistemas antifurtividade, acionados para proteger bases subterrâneas incrustadas em montanhas rochosas, certamente tornariam o espaço aéreo iraniano “um lugar mais perigoso”, afirmou Can Kasapoglu, pesquisador-sênior do Instituto Hudson, um centro de análise em Washington.
“Isso é importante num momento em que o regime se movimenta rapidamente e sem controles na direção de uma bomba (atômica)”, disse Kasapoglu. Além disso, afirmou ele, “qualquer confronto (com Israel) ocorrerá no espaço aéreo iraniano, onde Teerã tem a vantagem de jogar em casa”.
Moscou também está colhendo benefícios dessa colaboração, afirmaram autoridades de inteligência. Além dos milhares de drones que adquiriu do Irã, a Rússia concordou no ano passado em comprar cerca de US$ 2 bilhões adicionais em itens militares, incluindo sistemas de defesa antidrones que se tornaram a maior prioridade dos generais russos na Ucrânia, de acordo com duas autoridades de inteligência com conhecimento detalhado do acordo.
O Irã concordou, separadamente, em vender mísseis superfície-superfície para a Rússia usar na Ucrânia e, de acordo com novas informações de inteligência, deverá iniciar a transferência dos armamentos proximamente. Agências de espionagem não encontraram evidências até aqui de que os mísseis tenham sido entregues, afirmaram as autoridades.
Produção de drones
A produção de drones militares, enquanto isso, evoluiu para um empreendimento conjunto entre os dois países, afirmaram autoridades de inteligência. Inicialmente, o fornecimento iraniano de drones para a Rússia foi uma tentativa iraniana de ajudar sua aliada a tapar um buraco em sua campanha militar contra a Ucrânia. A Rússia, que tinha poucos drones militares no início da guerra, começou a usar dois modelos de drones Shahed, de fabricação iraniana, no outono (Hemisfério Norte) de 2022: o Shahed-131, de longo alcance, com asa em flecha; e o Shahed-136.
Em meados do verão de 2023, a Rússia estava começando a produzir domesticamente drones Shahed-136, de projeto iraniano, em uma fábrica em Elabuga, uma cidade na região russa do Tartaristão, cerca de 800 quilômetros ao leste de Moscou. Documentos russos obtidos pelo Washington Post no ano passado descreveram planos de fabricação de 6 mil drones até o verão de 2025 para uso na campanha de ataques contra forças ucranianas, usinas de eletricidade e outras infraestruturas vitais.
Preocupadas com a produção doméstica de drones na Rússia, as Forças Armadas ucranianas lançaram um ataque com seus próprios drones contra o complexo de Elabuga em 2 de abril.
Mais recentemente, Moscou e Teerã começaram a trabalhar cooperativamente em novos tipos de veículos aéreos não tripulados, ou vants, de acordo com autoridades de inteligência e os documentos vazados. A torrente de e-mails e registros russos e iranianos revelada pelo grupo hacker Rede Prana foi roubada premeditadamente de um servidor iraniano ligado ao Exército de Guardiões da Revolução Islâmica anteriormente este ano.
Entre os documentos havia detalhes de visitas de delegações do Irã e da Rússia a fábricas de armas em ambos os países. A visita dos iranianos à fábrica NPP Start foi descrita em um “cronograma” russo para a viagem que listava excursões a instalações de defesa em cinco cidades. O documento foi assinado por diretores da Technodinamika JSC, que opera a NPP Start, e autoridades do Ministério da Defesa russo.
O Post não conseguiu verificar independentemente os documentos, mas duas autoridades do governo Biden reconheceram que agências de inteligência americanas estudaram atentamente os materiais vazados e não contestam sua autenticidade. Rússia e Irã não comentaram publicamente o vazamento.
Vários documentos descrevem uma viagem de uma delegação de engenheiros russos ao Irã em abril de 2023 para assistir a uma demonstração de um novo drone com motor a jato, assim como uma linha de vants caçadores-assassinos projetados para destruir drones inimigos. Ambos os modelos pareceram impressionar os visitantes.
Variações do drone a jato, designadas MS-237, Shahed-238 e Shahed-236, foram descritas alcançando velocidades máximas de aproximadamente 650 km/h — cerca de três vezes mais velozes que modelos anteriores de drones iranianos. Teerã revelou a existência de um novo drone em um show aéreo em novembro.
Saiba mais
Na demonstração, o drone a jato — de codinome “motorboat” nas comunicações internas dos russos — “decolou com sucesso, cumpriu as tarefas (…) e aterrissou de paraquedas com sucesso”, afirmou um relatório vazado. “Dada sua alta velocidade, a nave é essencialmente um míssil de cruzeiro.”
O teste aparentemente ajudou a cimentar um contrato para a aquisição de mais de 600 drones a jato de projeto iraniano, com a maioria construída em solo russo com componentes e ajuda do Irã, segundo os e-mails. Os documentos também descrevem negociações prolongadas a respeito da maneira que a Rússia pagaria pelos drones. Ao menos duas prestações seriam pagas com lingotes de ouro avaliados em US$ 140 milhões, mostram os documentos.
Em janeiro, fotos de destroços de um drone a jato que parece idêntico ao MS-237 foram postadas por blogueiros ucranianos após, segundo relatos, a aeronave ser derrubada na região central da Ucrânia. Ainda não há informações a respeito de algum dos drones a jato ter sido lançado contra Israel no recente ataque iraniano.
“Eles são mais rápidos, isso significa que são mais difíceis de interceptar”, afirmou o analista de defesa e especialista em vants e sistemas de mísseis Fabian Hinz, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, um centro de estudos em Londres. Mas, afirmou ele, é provável que os drones a jato sejam “também substancialmente mais caros, porque não é fácil construir esses tipos de motores a jato”.
Fabricar drones em um empreendimento conjunto oferece benefícios substanciais para o Irã, incluindo a capacidade de avaliar seu desempenho nos campos de batalha da Ucrânia. David Albright, especialista em sistemas de armamentos iranianos e presidente do Instituto pela Ciência e a Segurança Internacional, uma ONG em Washington, notou que os documentos vazados mostram evidências de engenheiros russos incorporando melhorias de projeto em drones iranianos.
“Erros e falhas nos projetos foram identificados e reparados”, afirmou ele, “e o Irã se beneficiaria disso”.
Mesmo que sistemas russos como o S-400 ainda não tenham sido vendidos para o Irã e acionados no país, Albright afirmou que compartilhar informações de projeto e conhecimento tecnológico poderia incrementar as capacidades do Irã sem disparar alarmes no Ocidente.
“Talvez ninguém veja nada”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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