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Artigo: Pandemia e crime organizado na América Latina

No início da crise, alguns acreditaram que a covid-19 poderia ser ruim para criminosos; um ano depois, ficou claro que não foi isso que aconteceu

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Por José Miguel Cruz e Brian Fonseca

Durante os primeiros dias da pandemia, alguns acreditavam que a covid-19 poderia ser ruim para o crime organizado, como o MS-13 e o cartel de Sinaloa. O lockdown em várias cidades do mundo impediu as pessoas de saírem de casa, minando o comércio, tanto legal quanto ilegal. Na média, a recessão atingiu as economias latino-americanas com mais força do que qualquer outra, significando menos dinheiro no bolso dos consumidores. À medida que os governos mobilizavam verbas e equipes para enfrentar o desafio, falava-se de um novo nível de engajamento que poderia fortalecer os laços entre os cidadãos e o Estado, possivelmente eliminando as organizações criminosas transnacionais em algumas áreas.

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Um ano depois, ficou claro que não foi isso que aconteceu. A capacidade operacional, adaptabilidade, redes extensas e cofres recheados das organizações criminosas propiciam oportunidades para explorar os vazios deixados por instituições sobrecarregadas e cadeias de suprimento estressadas em toda a região. Embora ainda seja muito cedo para avaliar quaisquer mudanças duráveis ou resistentes, as organizações criminosas transnacionais estão mostrando indícios de que se adaptaram rápido e até se tornaram mais fortes de várias maneiras, algumas delas surpreendentes.

De fato, a pandemia pode, em última análise, ser um ponto de virada que marca a aceleração de tendências desastrosas relacionadas ao crime e à segurança registradas durante as últimas três décadas. A questão é o que governos podem fazer para impedir que isso continue.

Mesmo antes de a pandemia atingir a região, a América Latina e o Caribe eram o berço de alguns dos grupos criminosos mais dominantes, adaptáveis e violentos do mundo. Desde a década de 90, essas quadrilhas evoluíram de estruturas criminosas altamente centralizadas e hierárquicas para redes em expansão e ágeis envolvidas em uma ampla gama de atividades ilícitas. 

Hoje, elas administram diversos portfólios de atividades ilegais que incluem desde o tráfico de drogas, de humanos, de armas, de minerais e outras mercadorias ilícitas até extorsão, sequestro, crime cibernético e lavagem de dinheiro. Esses grupos também evoluíram, de empreendimentos criminosos amplamente focados no hemisfério, com base em dinheiro vivo, para redes criminosas globais que estão profundamente entrelaçadas aos setores público e privado em toda a região.

Agentes da Policia Nacional de Honduras prendem membros da gangue Mara Salvatrucha(MS-13) Foto: Orlando Sierra/AFP

A história recente ilustra a tremenda resiliência desses grupos. Na América do Sul, os países andinos Bolívia, Colômbia e Peru continuam sendo os principais produtores de cocaína, apesar de décadas de políticas de erradicação. As antigas insurgências colombianas e peruanas resistiram às forças de segurança e evoluíram para organizações criminosas de fato com alcance global e extensos portfólios de atividades. Após a desmobilização dos paramilitares colombianos em 2006, bandos criminosos, também chamados de bacrim, surgiram como parte de uma terceira evolução das organizações de tráfico ilícito muito mais abrangentes e diversificadas que suas antecessoras. 

De acordo com a InSight Crime, uma organização que estuda segurança na América Latina, a Colômbia enfrenta hoje uma quarta geração de organizações criminosas que possuem uma tremenda perspicácia empresarial, maior sofisticação tecnológica e são melhores tanto na estratégia de se integrar à sociedade quanto de fundir negócios legítimos com atividades ilícitas.

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Na Venezuela, o regime de Nicolás Maduro transformou o país em um importante polo de drogas que partem da região com destino aos EUA, África Ocidental e Europa. O cartel dos Sóis é uma importante organização do narcotráfico composta em grande parte por militares venezuelanos. O país também atua como fonte de tráfico sexual. 

O Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, expandiu sua presença além das fronteiras do Brasil para assumir uma participação maior no tráfico internacional de entorpecentes ilícitos produzidos no Cone Sul. Os cartéis de drogas mexicanos continuam entre as organizações criminosas mais dominantes e poderosas do mundo. Entre eles, o cartel de Sinaloa, o Jalisco Nova Geração, o cartel do Golfo e o cartel Los Zetas operam em todo o mundo e são responsáveis por mais de 61 mil desaparecimentos e um número ainda maior de mortes desde os anos 60. 

No fim de 2020, o México estava a caminho de registrar o ano mais violento de sua história, com mais de 40 mil assassinatos e uma taxa de homicídio projetada acima de 27 para cada 100 mil habitantes. A recente prisão e subsequente libertação do ex-ministro da Defesa do México, General Salvador Cienfuegos Zepeda, destaca como as organizações criminosas estão infiltradas no Estado mexicano.

Na América Central, gangues como MS-13 (Mara Salvatrucha) e Barrio 18 sobreviveram a quase duas décadas de políticas severas do governo destinadas a desmantelá-las e, talvez por causa dessas políticas, essas gangues ainda crescem de forma desenfreada com mais de 50 mil membros em El Salvador, Honduras e Guatemala. A região atrai outras organizações que estão se mudando para lá para tirar proveito de condições econômicas calamitosas, governos debilitados, um estado de direito enfraquecido e da proximidade de mercados importantes nos EUA. 

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Finalmente, o Caribe está mais uma vez fornecendo às organizações criminosas rotas de contrabando vitais que conectam produtores a consumidores. Fracas restrições a liberação de vistos e cidadania por meio de esquemas de investimento estão atraindo grupos que procuram usar o Caribe como um centro para várias atividades criminosas, incluindo tráfico ilícito e lavagem de dinheiro.

Por causa da pandemia, o crime está se expandindo para outras áreas, incluindo aquelas que o Estado, sobrecarregado, simplesmente não tem condições de administrar. Os grupos criminosos têm proporcionado uma espécie de governo paralelo em áreas praticamente abandonadas por instituições estatais. Por exemplo, na América Central as gangues assumiram a tarefa de fazer cumprir as medidas de controle da pandemia emitidas pelo governo e distribuir alimentos para a população em suas comunidades. No México, vários grupos criminosos, como a organização de Chapo Guzmán e o cartel Jalisco Nova Geração, têm distribuído alimentos às comunidades que controlam como forma de ganhar legitimidade pública. 

No Brasil, facções em várias favelas do Rio de Janeiro impuseram toques de recolher e distanciamento social aos moradores e ao comércio local, ao mesmo tempo que distribuíam produtos de saneamento, suprimentos médicos e alimentos. Se os cidadãos continuarem a recorrer a grupos criminosos para a prestação de serviços, os governos serão forçados a pagar um alto preço para desalojar essas quadrilhas quando a pandemia acabar. 

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A covid-19 também está criando novas oportunidades econômicas para esses bandos. À medida que a recessão empurra um número cada vez maior de latino-americanos para as sombras da economia informal, o comércio de mercadorias ilegais pode se tornar ainda mais atraente. Por exemplo, há registros de um aumento no tráfico de suprimentos médicos, desde máscaras cirúrgicas, desinfetantes e álcool em gel a medicamentos e kits de teste. Recentemente, o secretário-geral da Interpol, Jürgen Stock, alertou que grupos criminosos planejavam se infiltrar nas cadeias de fornecimento de vacinas.

Dificuldades econômicas estão criando uma “epidemia paralela” de angústia emocional, aumentando a demanda global por substâncias psicotrópicas, muitas fortemente controladas ou totalmente ilegais. As organizações criminosas contam hoje com um mercado maior e mais exigente e instituições enfraquecidas. Alguns países, como o Brasil, podem emergir como novos atores transnacionais no fluxo de bens ilícitos, graças à interrupção do canal existente aliada à nova demanda registrada em regiões como a Europa.

A maioria das sub-regiões das Américas deve experimentar uma consolidação de suas redes criminosas transnacionais. Os Andes podem ver um aumento nas safras ilegais, pois elas se tornarão uma das fontes de receita mais seguras para os agricultores locais. Os grupos criminosos da América Central garantirão a continuação de seu status ao controlar centros de tráfico e proporcionar empregos para populações carentes, em muitos casos com a ajuda de políticos e agentes estatais corruptos.

Nesse ambiente, atores estatais e não estatais de Rússia, China e outros países poderão fazer parceria com organizações criminosas e instituições corruptas nas Américas de forma mais fácil. Esses países e seus setores privados são conhecidos por contornar o estado de direito e, geralmente, preferem trabalhar com atores corruptos. A influência crescente da China tem ajudado Maduro, em particular, permitindo que sua cleptocracia sobreviva.

Os custos sociais da pandemia serão enormes, especialmente considerando que as economias da região podem não se recuperar totalmente aos níveis pré-covid antes de 2025, de acordo com o FMI. Segundo o Banco Mundial, antes da covid-19, já havia mais de 20 milhões de “ninis”, neologismo em espanhol que se refere aos jovens que não trabalham nem estudam, na América Latina. Para milhares de jovens, a participação em grupos criminosos pode se tornar a única chance de sobrevivência. 

O desemprego generalizado e o subemprego também aumentarão a pressão da migração legal e ilegal, alimentando as cadeias de tráfico humano. Relatórios mostram, por exemplo, que quando o governo colombiano fechou sua fronteira com a Venezuela para conter o surto de covid-19, milhares de migrantes venezuelanos desesperados acabaram caindo nas garras de organizações criminosas que operam na área.

Muitos governos nacionais reagirão ao poder crescente das organizações criminosas, e a revolta da opinião pública resultante, redirecionando recursos para expandir as instituições de segurança. Outros governos podem se ver forçados a negociar com organizações criminosas, uma prática já em vigor em El Salvador e comum no nível subnacional, onde os governos locais são fracos. Esse tipo de negociação parecerá politicamente conveniente, especialmente em países com eleições nos próximos 18 meses, mas na ausência de controles institucionais adequados e reformas nas instituições-chave, tais táticas raramente tiveram sucesso no passado.

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Qualquer resposta governamental eficaz deve encarar as devastadoras consequências econômicas da crise de saúde, a erosão da capacidade do Estado e o colapso da legitimidade institucional. Os governos devem cavar fundo e desenterrar vontade política para expandir a luta contra a impunidade, a corrupção generalizada e a falta de capacidade institucional. Eles precisam expandir as reformas estruturais em instituições-chave, como o Judiciário, as forças policiais federais, estatais e locais, e melhorar a capacidade de fornecer aos cidadãos as necessidades mais básicas, como educação e saúde pública. 

Sem esforços para uma reforma das instituições responsáveis pelo bem-estar da população e um esforço de investimento sustentado em capital humano, qualquer iniciativa tradicional com foco na segurança está fadada ao fracasso. Investimentos em capital humano e social devem ser acompanhados por uma maior cobrança das instituições políticas responsáveis. A regressão ao autoritarismo que vários países enfrentam agravará as crises desencadeadas pela pandemia. Portanto, enfrentar o crime organizado nessas circunstâncias exige que a resiliência dos governos democráticos seja maior do que a resiliência dos grupos criminosos da região.

Dado o tamanho da emergência e a crescente expansão transnacional das redes criminosas, os governos devem trabalhar multilateralmente para otimizar recursos, compartilhar informações e melhorar a coordenação intergovernamental. O combate ao crime transnacional é um desafio global que exige uma colaboração multilateral mais significativa que reúna países dentro e fora do hemisfério.

* JOSÉ MIGUEL CRUZ É DIRETOR DO CENTRO KIMBERLY GREEN DA FACULDADE DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS STEVEN J. GREEN, DA UNIVERSIDADEINTERNACIONAL DA FLÓRIDA. BRIAN FONSECA É DIRETOR DOINSTITUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS JACK D. GORDON DA UNIVERSIDADEINTERNACIONAL DA FLÓRIDA.