Como funcionam as armas nucleares táticas que Putin pode usar contra a Ucrânia

Uso de armas nucleares pode transformar Rússia em pária internacional e emitir radiação para o próprio país

PUBLICIDADE

Por David E. Sanger e William J. Broad

WASHINGTON — Apesar de todas as suas ameaças de disparar armas nucleares táticas contra alvos na Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está descobrindo agora o que os Estados Unidos concluíram anos atrás, suspeitam autoridades americanas: armas nucleares menores são difíceis de controlar e funcionam muito melhor como instrumento de terror e intimidação do que como arma de guerra.

PUBLICIDADE

Analistas dentro e fora do governo que simularam diferentes cenários relativos às ameaças de Putin passaram a duvidar da utilidade dessas ogivas — carregáveis em projéteis de artilharia e transportáveis em caminhões — em seu avanço na direção de seus objetivos.

A principal utilidade dessas armas, afirmam muitas autoridades americanas, seria parte de um esforço final de Putin de impedir a contraofensiva ucraniana ameaçando tornar inabitáveis certas regiões da Ucrânia. Autoridades ouvidas pela reportagem falaram sob condição de anonimato para descrever algumas das discussões mais sensíveis dentro do governo.

Transmissão na Praça Vermelha do discurso de Vladimir Putin sobre a anexação da Ucrânia no dia 30 de setembro, em Moscou Foto: Alexander Nemenov / AFP

Os cenários que simularam a maneira que os russos usariam armas nucleares táticas variam amplamente. Eles poderiam disparar tanto um projétil de calibre 152 milímetros com um canhão de artilharia em solo ucraniano quanto um míssil carregado com ogiva de meia tonelada lançado dentro da Rússia. Os alvos poderiam ser alguma base militar ucraniana ou uma pequena cidade. A magnitude da destruição — e da contaminação radioativa — dependeria de fatores que incluem o tamanho da ogiva e os ventos da estação. Mas mesmo uma pequena explosão nuclear seria capaz de causar milhares de mortes e deixar a região atingida inabitável por anos.

Ainda assim, os riscos para Putin poderiam facilmente superar qualquer ganho. Seu país poderia se tornar pária internacional, e o Ocidente tentaria capitalizar sobre a detonação para tentar convencer China e Índia — e outros países que ainda compram petróleo e gás natural da Rússia — a adotar as sanções a que têm resistido. E então há o problema dos ventos que estarão batendo: a radiação emitida pelas armas russas poderia facilmente ser soprada para dentro da Rússia.

Publicidade

Por meses, simulações em computadores do Pentágono, laboratórios nucleares americanos e agências de inteligência têm tentado prever o que poderia acontecer e como os EUA poderiam responder. A tarefa não é fácil, porque armas nucleares táticas possuem muitos tamanhos e variações, a maioria com uma fração do poder de destruição das bombas que os EUA soltaram em Hiroshima e Nagasaki em 1945.

Em um discurso furioso, na semana passada, repleto de bravatas e ameaças, Putin afirmou que esses ataques “criaram um precedente”.

Os resultados das simulações, afirmou uma fonte ciente da iniciativa, variam dramaticamente — dependendo do alvo de Putin ser alguma base militar remota da Ucrânia, uma pequena cidade ou algum ponto sobre o Mar Negro, em uma “demonstração” de força.

Um grande sigilo cerca o arsenal de armas nucleares táticas da Rússia, que variam em tamanho e força. A arma com que os europeus mais se preocupam é a ogiva pesada que pode ser instalada no míssil Iskander-M, capaz de atingir cidades na Europa Ocidental. Análises dos russos equiparam a magnitude da explosão atômica mais branda de uma ogiva carregada em um Iskander a aproximadamente um terço do poder de destruição da bomba de Hiroshima.

Muito mais se sabe a respeito das armas nucleares táticas projetadas para o arsenal dos EUA durante a Guerra Fria. Uma delas, fabricada no fim dos anos 50 e batizada de Davy Crockett, em homenagem ao herói da fronteira que morreu no Álamo, pesava cerca de 30 quilos e parecia-se com uma grande melancia, com quatro barbatanas. A ogiva foi projetada para ser disparada de um canhão instalado atrás de um jipe e tinha um milésimo da força da bomba de Hiroshima.

Publicidade

Captura de vídeo mostra explosão da maior bomba atômica de todos os tempos durante teste realizado em 1961 pela União Soviética Foto: Rosatom

Mas conforme a Guerra Fria progrediu, tanto os EUA quanto os soviéticos desenvolveram centenas de variações. Houve cargas de profundidade atômicas para aniquilar submarinos e rumores de “valises nucleares”. Em um determinado momento, nos anos 70, a Otan possuiu um total de 7,4 mil armas nucleares táticas, o que equivale a quase quatro vezes a atual estimativa do estoque russo.

Naquela época, elas também faziam parte da cultura pop. Em 1964, James Bond desativa uma pequena arma nuclear em “Goldfinger” segundos antes da ogiva ser detonada. Em 2002, em “A Soma de Todos os Medos”, filme com base no romance homônimo de Tom Clancy, terroristas aniquilam Baltimore com uma arma nuclear tática transportada em um navio cargueiro.

Na realidade, contudo, mesmo que uma explosão de uma arma nuclear tática possa ser menor do que a produzida por um armamento convencional, a radioatividade emitida seria duradoura.

Em terra, os efeitos da radiação “seriam muito persistentes”, afirmou Michael Vickers, ex-conselheiro civil mais graduado do Pentágono para estratégia de contrainsurgência. Nos anos 70, Vickers foi treinado para se infiltrar nas fileiras soviéticas carregando uma bomba nuclear em uma mochila.

As armas nucleares táticas da Rússia “seriam mais provavelmente usadas contra concentrações de forças inimigas, para evitar uma derrota convencional”, afirmou Vickers. Mas ele disse que, segundo sugere sua experiência, “a utilidade estratégica seria altamente questionável, dadas as consequências que Rússia quase certamente enfrentaria após usá-las”.

Publicidade

Riscos da radiação

Para a radiação mortífera há uma dramática comparação ocorrida em solo ucraniano: o que ocorreu em 1986 quando um dos quatro reatores da usina nuclear de Chernobyl sofreu um derretimento e uma explosão que destruiu o edifício que o abrigava.

Na época, os ventos que sopravam vinham do sul e do sudoeste, mandando nuvens radioativas principalmente para Belarus e Rússia, apesar de quantidades menores de radioatividade terem sido detectadas em outras partes da Europa, especialmente na Suécia e na Dinamarca.

Os perigos da radiação de armas nucleares táticas provavelmente seriam menores do que os que envolvem reatores enormes, como os de Chernobyl, cuja radiação emitida pelo acidente envenenou vários quilômetros quadrados das pradarias do entorno e causaram câncer em milhares de pessoas, apesar desse número exato ser tema de debate.

O terreno ao redor da usina desativada ainda está contaminado, o que tornou ainda mais marcante o fato de os soldados russos que passaram pela região nos primeiros dias da guerra terem recebido pouca proteção contra radiação, durante a tentativa de Putin de tomar a capital ucraniana, Kiev, em fevereiro e março.

O que ocorreu em Chernobyl, evidentemente, foi um acidente. A detonação de uma arma nuclear tática seria uma escolha — e provavelmente um ato de desespero. Ainda que as repetidas ameaças atômicas de Putin possam chocar muitos americanos que mal pensaram em armas nucleares nas décadas recentes, essa história é antiga.

Publicidade

Em alguns aspectos, Putin está seguindo a cartilha escrita pelos EUA há quase 70 anos, quando os americanos planejavam como defender a Alemanha e o restante da Europa de uma invasão soviética em grande escala.

Armas nucleares para frear o avanço inimigo

A ideia era usar as armas nucleares táticas para diminuir o avanço da força invasora. Colin Powell, ex-secretário de Estado e ex-chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, recordava o episódio em que foi enviado à Alemanha, em 1958, quando ainda era um jovem comandante de pelotão, e sua principal responsabilidade foi cuidar do que ele descreveu em suas memórias como um “canhão atômico de 280 milímetros com tratores de tração em duas lagartas parecido com uma Big Bertha da 1.ª Guerra”.

Décadas depois, disse ele a um repórter, “era loucura” pensar que a estratégia para manter a Europa Ocidental livre era os EUA e os aliados da Otan arriscarem usar dezenas ou centenas de armas nucleares em solo europeu contra forças invasoras.

O próprio nome “armas táticas” é destinado a diferenciar essas armas menores das grandes ogivas “arrasadoras de cidades” que os EUA, os soviéticos e outro Estados com armamentos nucleares instalavam em mísseis intercontinentais e apontavam um para o outro a partir de silos, submarinos e frotas de bombardeiros. Eram as armas grandes — muito mais potentes do que a bomba que destruiu Hiroshima — que geravam medo de Armageddon e desse único disparo capaz de aniquilar Nova York ou Los Angeles. As armas táticas, em contraste, podem destruir alguns quarteirões da cidade ou impedir o avanço de uma coluna de tropas. Mas não são capazes de destruir o planeta.

Em última instância, as grandes “armas estratégicas” ficaram sujeitas a tratados de controle de armas e atualmente os EUA e a Rússia são limitados a possuir 1.550 armas acionáveis cada. Mas as armas táticas, menores, jamais foram reguladas.

Publicidade

E a lógica da dissuasão que cercava os mísseis intercontinentais — de que um ataque contra Nova York resultaria em um ataque contra Moscou — nunca se aplicou plenamente às armas menores. Depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush temeu que algum grupo terrorista, como a Al Qaeda, pudesse obter uma arma nuclear e usá-la para destruir os túneis do metrô de Nova York ou contaminar o centro de Washington com radiação.

A CIA se esforçou enormemente para determinar se a Al Qaeda ou o Taleban havia obtido tecnologia de bombas atômicas pequenas, e o governo de Barack Obama organizou uma série de “cúpulas nucleares” com líderes mundiais para reduzir a quantidade disponível de material nuclear com capacidade de ser transformado em uma arma menor ou uma bomba suja — essencialmente lixo radioativo que poderia ser disperso em alguns quarteirões de uma cidade.

Quando a Guerra Fria terminou, a Otan admitiu publicamente o que pessoas cientes de informações privilegiadas tinham concluído havia muito: que a fundamentação para qualquer uso de armas nucleares era extremamente remota, ao ponto de o Ocidente poder reduzir dramaticamente suas forças nucleares. Gradualmente, o Ocidente se livrou da maioria de suas armas nucleares táticas, determinando que elas tinham pouco valor militar.

Cerca de cem ainda são mantidas na Europa, principalmente para tranquilizar nações da Otan preocupadas com o arsenal russo, de estimadas 2 mil armas, aproximadamente. Agora a questão é se Putin realmente as usaria.

A possibilidade de que ele as use levou estrategistas voltarem a examinar uma doutrina de guerra conhecida como “escalar para desescalar” — segundo a qual os militares russos disparariam uma arma nuclear para forçar um algoz à retirada ou à submissão. Esta é a parte da “escalada”; se o inimigo recuar, a Rússia poderia então “desescalar”.

Publicidade

Nos últimos tempos, a Rússia tem usado seu arsenal nuclear tático como pano de fundo de suas ameaças, intimidações e bravatas. A cientista política Nina Tannenwald, da Universidade Brown, que estuda armamento atômico, notou recentemente que Putin ameaçou pela primeira vez apelar para suas armas nucleares em 2014, durante a invasão russa à Crimeia. Ela acrescentou que, em 2015, a Rússia ameaçou navios de guerra dinamarqueses com armas atômicas caso a Dinamarca se juntasse ao sistema da Otan de repelir ataques de mísseis. No fim de fevereiro, Putin solicitou que suas forças nucleares entrassem em alerta, mas não há nenhuma prova de que isso tenha ocorrido realmente.

Na semana passada, o Instituto para Estudo da Guerra concluiu que “o uso de armas nucleares pela Rússia seria, portanto, uma aposta massiva para ganhos limitados que não alcançariam os objetivos de guerra declarados por Putin. Na melhor das hipóteses, o uso de armas nucleares pela Rússia congelaria as linhas de frente na atual posição e possibilitaria ao Kremlin preservar o território ocupado atualmente na Ucrânia”. Mesmo isso, conclui o instituto, requereria “múltiplas armas nucleares táticas”, mas não “possibilitaria ofensivas para capturar a Ucrânia inteira” — o que era, claramente, o objetivo original de Putin. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.