“A política americana tem sido frequentemente uma arena para mentes furiosas”, escreveu o cientista político Richard Hofstadter há 60 anos no seu ensaio clássico, “O estilo paranóico na política americana”. No entanto, ao longo de muitas épocas, este discurso de “exagero acalorado, suspeita e fantasia conspiratória” fermentou em grande parte nos cantos mais obscuros do extremismo. Então, a internet tornou a paranoia conspiratória acessível a todos, amplificando a dissonância e a desinformação.
Nas primeiras horas após a chocante tentativa de assassinato contra Donald Trump, na noite de sábado, os criadores de memes e influenciadores da esquerda e da direita chegaram rapidamente a um acordo em relação a uma coisa: o atentado deve ter sido orquestrado. Alguns na esquerda descreveram-no como uma operação falsa encenada para fazer Trump parecer invencível e reforçar as suas perspectivas eleitorais. Eles apontaram para a forma como Trump fez uma pausa para posar para fotos com o punho no ar e o sangue escorrendo pela bochecha como prova de que o ataque deve ter sido coreografado pelos próprios marqueteiros do candidato.
Os cidadãos-especialistas da direita, e até mesmo alguns em cargos eletivos, consideraram que a tentativa de matar Trump parecia um complô interno. Poucos minutos depois do atentado, o magnata das redes sociais Elon Musk apoiou Trump e, mais tarde, sugeriu aos seus 190 milhões de seguidores que o fracasso do Serviço Secreto em deter o atirador pode ter sido “deliberado”. Mike Collins, um congressista republicano da Geórgia, afirmou que “Joe Biden deu a ordem”.
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As teorias da conspiração envolvendo um fracasso institucional chocante muitas vezes prevalecem quando uma explicação alternativa (a incompetência) é insatisfatória. O agressor de Trump, identificado pelo FBI como um homem de 20 anos da Pensilvânia chamado Thomas Matthew Crooks, aparentemente conseguiu subir em um telhado próximo empunhando um fuzil estilo AR-15, sem ser parado pela polícia.
Isto pode ser considerado um fracasso impressionante das práticas e do profissionalismo do Serviço Secreto; o presidente Joe Biden prometeu uma revisão independente do que deu errado. Na mídia de direita, porém, o fracasso em deter o atirador é apresentado como prova de uma intriga deliberada. Rumores se espalharam rapidamente no Instagram de que Alejandro Mayorkas, o secretário de segurança interna, escolhido como vilão pelos republicanos por sua forma de lidar com a fronteira ao sul, rejeitou os pedidos da campanha de Trump por melhorias na proteção.
Essas opiniões não se limitam aos obsessivos do Reddit martelando no teclado madrugada adentro: elas são comuns entre os republicanos do movimento MAGA. Sandra Chase, uma delegada republicana do Brooklyn que participa da Convenção Nacional Republicana desta semana em Milwaukee, diz acreditar que a tentativa de assassinato foi um complô do governo americano e que o FBI irá acobertar a verdade sobre o crime. Ela e outros céticos provavelmente terão muito o que conversar enquanto debatem suas teorias nos próximos dias e semanas. No domingo, o FBI informou que Crooks parece ter agido sozinho, uma conclusão que não foi acompanhada pela divulgação de provas que a sustentassem.
Sandra disse que pertence a um grupo de bate-papo que está preocupado com outro ângulo: a possibilidade de a obrigação de manter a diversidade dentro do Serviço Secreto forçou a organização a contratar muitas mulheres ineficazes, o que exacerbou o perigo enfrentado por Trump. Fotos do ataque que mostram agentes femininas menores que Trump correndo para lhe dar cobertura foram transformadas em memes misóginos nas plataformas de redes sociais.
Com base nas provas disponíveis até agora, os motivos e as opiniões políticas de Crooks são em grande parte um mistério. Os meios de comunicação informaram que ele se inscreveu como republicano, mas fez uma doação de US$ 15 a um comitê de ação política liberal, o Progressive Turnout Project, em janeiro de 2021. Ele aparentemente cresceu em um ambiente de classe média e não se destacou ao longo do Ensino Médio, nem perante os colegas de escola.
Contudo, a extrema direita online já inventou um perfil dele que se adequa à sua visão de mundo. Minutos depois que as autoridades divulgaram a identidade do atirador, uma miríade de contas falsas no Instagram apareceram sob seu nome com biografias inventadas que descrevem Crooks como transgênero, judeu e apoiador do Black Lives Matter. Estas contas e outros influenciadores citaram um comentário que Biden teria feito em uma ligação privada para doadores na semana passada: “Chega de falar do debate, é hora de colocar um alvo em Trump”.
Os especialistas em desinformação esperam que tais narrativas continuem se espalhando, mesmo que os detalhes dos motivos e antecedentes do atirador se tornem mais claros. É pouco provável que novas informações mudem a opinião daqueles que já acreditam que uma das partes planejou a tentativa de assassinato. “A característica definidora das teorias da conspiração é que elas explicam tudo e, por isso, são bastante resistentes a detalhes individuais”, diz Jonathan Stray, da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Quanto importa essa confusão generalizada? Até o momento, a democracia americana tem de alguma forma superado as suas crises, apesar da persuasão duradoura das observações de Hofstadter. Esta semana pode parecer mais preocupante do que o habitual por causa da violência infligida a Trump e da normalização do discurso a respeito desta ação radical na internet. Alguns progressistas furiosos lamentam que a bala tenha passado de raspão pela orelha de Trump, errando o seu crânio por milímetros. Destiny, um comentador esquerdista das redes sociais, disse aos seus 250 mil seguidores no X que Trump e os seus eleitores vão “colher o que plantaram, e estou aqui para assistir a colheita”. Enquanto isso, à direita, uma postagem em um canal dos Florida Proud Boys no Telegram retrata Trump com olhos vermelhos brilhantes acima de uma manchete: “AGORA É GUERRA!!!”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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