Ataque ao Capitólio é alerta de que as ameaças da extrema direita são reais, avalia Joe Mulhall

Em novo livro lançado esta semana no Brasil, especialista em movimentos extremistas chama atenção para as ameaças democráticas pelo mundo, com foco especial nas próximas eleições brasileiras

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Foto do author Carolina Marins
Atualização:

Quando apoiadores do então presidente Donald Trump marcharam para o Capitólio na tentativa de reverter os resultados eleitorais de 2020 nos Estados Unidos, o escritor britânico Joe Mulhall lembrou que os conhecia e os havia menosprezado no passado. Consciente do erro, o diretor da organização Hope not Hate agora alerta: “quando extremistas ameaçarem, acreditem”, pois descartá-los permitiu que ascendessem no mundo todo.

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Mulhall é autor do livro Tambores à distância: viagem ao centro da extrema direita mundial, que ganhou este fim de semana uma versão em português pela editora LeYa Brasil. Nele, o pesquisador conta das inúmeras experiências que teve ao trabalhar como infiltrado em grupos extremistas na Europa e nos Estados Unidos. Em mais de dez anos de trabalho, incluindo na organização terrorista americana Ku Klux Klan, Mulhall viu grupos de extrema direita saírem de pequenas comunidades de bairro para a ascensão de líderes nos Estados Unidos, Índia, Hungria, Polônia e Brasil.

Em entrevista exclusiva ao Estadão, Mulhall alerta que, após a queda de Trump nos Estados Unidos, Andrzej Duda na Polônia, entre outros, os olhos do mundo agora se voltam para o Brasil. Segundo ele, a derrota ou vitória de Jair Bolsonaro será o grande termômetro que dirá se a extrema direita é um movimento que veio para ficar ou se há chances de ser combatido.

Capa do livro Tambores à distância, viagem ao centro da extrema-direita mundial, com lançamento este fim de semana no Brasil Foto: Divulgação/LeYa Brasil

Estadão: Em 6 de janeiro de 2021, extremistas invadiram o Capitólio em um episódio que terminou com a morte de cinco pessoas. O que aquele momento representou para o movimento extremista mundial?

Joe Mulhall: Um dos meus primeiros trabalhos como infiltrado foi em Washington DC em um grupo autointitulado Alt-Right (Direita Alternativa) que também se tornou bastante importante anos depois [em Charlottesville]. Em 2013 eu fui à uma conferência e anos depois, para o livro, revisitei os relatórios daquela reunião. Lembro que pensei: “que delirantes, eles realmente acreditam que um deles vai chegar ao poder e derrubar a democracia liberal”. Para mim era apenas um pequeno grupo de racistas em uma sala em Washington DC. Avança para 2017 e Trump vence a eleição, e as mesmas pessoas que estavam sentadas naquela sala estavam comemorando. Avançamos mais um pouco e as mesmas pessoas daquela sala estavam marchando para o Capitólio tentando derrubar a democracia. Que errado eu estava em 2013!

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A lição mais importante disso é que devemos ouvir a extrema direita. Quando eles dizem que vão fazer algo horrível, devemos acreditar neles. O que aconteceu em 6 de Janeiro mostrou que as pessoas que por décadas disseram: “vamos tomar o poder neste país pela força se for necessário”, de fato tentaram. Precisamos levá-los a sério quando eles dizem que vão fazer todas as coisas que dizem. Se não acontecer, ótimo. Mas não deveríamos ficar surpresos mais.

O livro começa falando do Brexit e termina tratando de Jair Bolsonaro e as mudanças climáticas, por que essa escolha de linha do tempo?

O Brexit foi um ótimo ponto de partida. Não era explicitamente um movimento da extrema direita, mas havia o elemento dentro dele que era muito semelhante à fonte de poder deste grupo. Essa noção de que o país está em crise e precisamos culpar o externo, a imigração, ou seja, esse inimigo de fora que entra. E esse tipo de culpa ao outro é cada vez mais aceitável na política britânica, assim como está se tornando aceitável em outras partes do mundo.

O Brexit então é um evento gatilho, que ocorre em resposta a uma crise econômica, uma crise migratória. Um pouco parecido nos Estados Unidos foram as caravanas de centro e sul-americanos indo para o norte. Na Índia o perigo é o muçulmano. Esses são os tipos de eventos de gatilho que são utilizados pela extrema direita. E aí que surge os “homens fortes” como Bolsonaro, Trump e [Narendra] Modi que vão resolver este problema para você.

Joe Mulhall, autor do livro, especialista em extremismo e diretor da ONG britânica Hope not Hate Foto: Divulgação/LeYa Brasil

Mas porque finalizar com o Brasil? Depois da queda de Trump, Duda e outros extremistas mundiais, o que a eleição brasileira representa para o movimento da ultradireita?

O mundo está assistindo as eleições brasileiras, porque o Brasil é uma das maiores democracias do mundo. As políticas que Bolsonaro institui têm muitos efeitos globais. Claro que os efeitos domésticos são muito maiores para os brasileiros, mas o tratamento, por exemplo, dado à floresta Amazônica afeta a nós todos globalmente. Por isso que eu termino falando de mudanças climáticas e perguntando: “podemos sobreviver a outro governo Bolsonaro? O que isso significará para os pulmões do mundo?”.

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Mas também nos mostra para qual direção [o movimento da extrema-direita] está indo. Quando alguém como Bolsonaro ganha, é um grande golpe na moral dos movimentos progressistas. Quando alguém como o Trump perde, reforça a sensação de que podemos vencer e é um lembrete de que não é a perda total. Todo o mundo progressista está assistindo, toda a extrema-direita também. É uma eleição enorme. É um indicador que nos dirá se a extrema direita é um movimento inevitável ou se há chances de revidarmos.

Essa queda dos líderes representantes da extrema direita indica um declínio do próprio movimento?

De maneira alguma. Esses homens que estão no poder são os resultados dessa política não necessariamente a causa dela. Sim, Trump não é mais presidente dos Estados Unidos, mas se olhar a transformação que ele causou no Partido Republicano para uma entidade muito mais radical... Olhe as questões em torno do aborto, o Roe versus Wade, etc.

Uma vez que esses políticos ganham o poder, suas políticas vão se tornando normalizadas, então ataques a minorias, mulheres, gays, indígenas vão se tornando aceitáveis. Quando se torna aceitável isso, é muito difícil tornar inaceitável de novo. Claro que não é um caminho sem volta, mas não é porque eles perdem a eleição que o problema desaparece.

Se Bolsonaro perde no Brasil, algumas das políticas que ele desencadeou nos últimos quatro ou cinco anos simplesmente não desaparecem. Trump é o grande exemplo disso, mas também temos Marine Le Pen na França, que nunca ganhou uma eleição, mas é muito mais normal que políticos como Le Pen sejam os segundos nas eleições. Algo que há 20 anos seria inaceitável.

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Como aconteceu essa escalada de pequenos grupos para lideranças em grandes países?

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Esta é a pergunta de um milhão de dólares. Como chegamos aqui? E não há uma resposta simples que diga que alguém apertou um botão e tudo mudou. É uma construção lenta onde os pilares da democracia liberal começaram a oscilar em diferentes partes do mundo ao mesmo tempo. Há uma série de razões para isto. Parte porque temos um mundo mais globalizado. Você tem comunidades economicamente desfavorecidas que estão com raiva. Não sentem que a política está funcionando para elas, que os partidos políticos dominantes ou os partidos socialdemocratas estão ouvindo suas preocupações e lidando com elas.

Então chega essa extrema direita e promete que pode fazer melhor. Por um longo período de tempo isso soou como uma oferta vazia, mas quando você começa a ter uma pessoa ganhando em um país e depois outra pessoa em outro país, torna-se cumulativo e as pessoas acabam dizendo “na verdade isso talvez seja real”. E a tudo isso se soma a ascensão da internet e a capacidade de vozes marginais, extremas e tradicionalmente hostilizadas poderem falar para dezenas de milhares, centenas de milhares ou mesmo milhões de pessoas.

Por que fazer um trabalho infiltrado nesses grupos e como foi a experiência?

Grupos de extrema direita mentem. O que eles dizem para o mundo exterior é muito diferente do que eles dizem quando se sentam para tomar uma bebida no bar. Eles muitas vezes tentam apresentar ao mundo uma imagem muito mais moderada. Eles podem não dizer coisas extremas publicamente porque sabem que a maioria das pessoas na sociedade não vai gostar. Então, o que fazemos na Hope not Hate é nos juntar a essas organizações para que possamos ouvir a verdade sobre quais são seus sistemas de crenças, o que eles realmente acreditam quando eles acham que ninguém vê.

O livro cobre 10 anos de histórias e foi a primeira vez que eu pude realmente contar essas histórias, porque obviamente não devemos contá-las a ninguém. Passei um tempo na Ku Klux Klan e me juntei a um grupo miliciano no Alabama. Passei um tempo em suas casas, fui ao deserto com eles quando tentavam impedir imigrantes de chegar. E isso pode ser bem assustador. Nos EUA eles tinham muito mais armas entre esses grupos que no Reino Unido, então o perigo lá era físico. Eles tinham rifles semiautomáticos, e se algo desse errado... eu não gosto nem de pensar.

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