CHEBEKINO, RÚSSIA, THE NEW YORK TIMES - Gatos e cachorros abandonados vagam por ruas vazias ladeadas por edifícios destruídos, escombros e carros retorcidos em Chebekino, cidade fronteiriça russa atingida por bombardeios vindos da Ucrânia. Ataques em território russo nos últimos dias geraram um novo momento na guerra e o medo para moradores locais no conflito que persiste há 15 meses.
Um salão de cabeleireiro ainda soltava fumaça na semana passada. Todas as janelas da carcaça enegrecida do quartel-general da polícia foram quebradas. Quase todos os 40 mil habitantes fugiram, disseram as autoridades.
“Eu preciso de insulina! Preciso de insulina!”, gritava Liudmila Kosobuva, 56, que disse estar cuidando de uma amiga diabética acamada. Seus olhos brilhavam. Ela foi desafiadora: “Não vamos sair da nossa terra”.
Esse desespero e as cenas de devastação são familiares para milhões de ucranianos que enfrentam a invasão russa de seu país. Mas aqui não é a Ucrânia, é a Rússia –um local no oeste do vasto país onde forças apoiadas pela Ucrânia lançaram projéteis e mísseis em áreas residenciais.
Por causa da hostilidade de Moscou em relação à mídia ocidental, este é um aspecto menos difundido da guerra que Vladimir Putin começou 15 meses atrás. Ataques crescentes no lado russo da fronteira mataram mais de uma dúzia de civis e empurraram dezenas de milhares de pessoas para Belgorodo, capital de uma região cujo solo rico e ruas bem cuidadas que já lhe valeram o apelido de “pequena Suíça”.
Chebekino é uma cidade fantasma depois de dias de bombardeio. Talvez apenas mil moradores permaneceram. Na semana passada, eles incluíam um homem que, sozinho, arrastava metal retorcido para a calçada, numa tentativa desesperada de limpeza.
Se a intenção foi abalar o apoio a Putin ou a determinação russa em sua guerra ou fazer com que os russos comuns sentissem a dor do conflito pessoalmente, os ataques da Ucrânia podem ter tido algum efeito marginal, mas não mudaram nada.
Um século de desastre e opressão intermitentes induziram em muitos russos uma espécie de aceitação passiva e paciência que beneficiam Putin. Enquanto as linhas de um contra-ataque ucraniano muito apoiado começam a ser traçadas, o presidente ainda conta com a aprovação da maioria da população, intimidada por seu governo cada vez mais repressivo de 23 anos.
A determinação russa de vencer a guerra não diminuiu. Há vozes discordantes e alguns sinais de descontentamento em Belgorodo, mas cerca de 1 milhão de opositores da guerra fugiram do país.
“Não sei por que a Rússia não pode nos defender”, disse Serguei Chambarov, 58, morador de Chebekino que evitou o êxodo em massa porque tem parentes idosos. Ele passou os dedos pelos estilhaços que havia juntado. Estavam empilhados numa tigela sobre uma mesa ao lado dele em seu apartamento, que é acessado por uma escada de cimento cheia de cacos de vidro. “Centenas de projéteis por dia!”, disse.
Nenhum dos russos entrevistados fez uma conexão entre sua situação e os 8,2 milhões de refugiados ucranianos que fugiram da guerra brutal de Putin. A propaganda constante distorceu falsamente o conflito em uma guerra defensiva da Rússia contra os “nazistas” e “fascistas” apoiados pelos Estados Unidos e pela Europa, que, na narrativa russa, não deram a Moscou outra opção além da ação militar.
Nas ruas fantasmagóricas de Chebekino, Viktor Kalugin, 65, reclamou que mercenários do Grupo Wagner e combatentes tchetchenos, ambos famosos por sua crueldade, não foram autorizados a cuidar das coisas.
“Espero que nossas forças não permitam que os fascistas entrem aqui”, disse ele. “Enquanto tivermos Putin, ninguém conseguirá tomar a Rússia. Se ao menos ele pudesse lidar com os generais.”
Carregando trouxas, moradores de Chebekino formam longas filas diante das arenas esportivas e centros culturais de Belgorodo, onde se distribui comida. Uma oferta das autoridades locais de 50 mil rublos (cerca de R$ 3.100) para os deslocados pelos combates provocou indignação quando foi anunciada na quinta-feira (8).
“Eles desencadearam uma guerra e agora querem calar a boca das pessoas com centavos”, escreveu Svetlana Iliasova em um grupo de moradores de Chebekino no aplicativo de mensagens Telegram.
A Rússia ainda insiste, embora com entusiasmo cada vez menor, que uma “operação militar especial” está em andamento na Ucrânia, e não uma guerra real. Mas a palavra “guerra” agora é usada o tempo todo em Moscou, na maioria das vezes para descrever o confronto total com o Ocidente que a Rússia vê no conflito.
“Isto é a Rússia contra o Ocidente coletivo”, disse em entrevista uma autoridade graduada em Moscou, que não quis ser identificada. “A Ucrânia é apenas a terra onde a performance está acontecendo.” Questionado sobre a situação em Belgorodo, o mesmo funcionário disse: “É um desastre”.
Embora as frentes de batalha na Ucrânia estejam quase congeladas há meses, o bombardeio poderia ser interrompido, ele insistiu, se a Rússia decidisse destruir Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia. Ela está a apenas 80 quilômetros de Belgorodo e é usada como base de retaguarda das forças paramilitares.
Mesmo assim, a Rússia lançou diversas ondas de soldados, mísseis e projéteis contra o país, que Putin afirma ser um Estado fictício que deveria fazer parte da Rússia.
O governo do presidente Volodimir Zelenski, da Ucrânia, tentou se distanciar dos ataques dentro do território russo. Ele atribuiu os ataques, que aparentemente não tinham alvo militar, a russos que lutam em dois grupos paramilitares, a Legião da Rússia Livre e o Corpo de Voluntários Russos, que abraçaram a causa ucraniana como um meio de “libertar” a Rússia de Putin.
Os militantes avançaram para várias aldeias fronteiriças russas no mês passado, antes que o Ministério da Defesa russo dissesse que os repeliu.
Não está claro como essas milícias conseguem armamento sofisticado para bombardeios constantes e atuam em solo ucraniano sem orientação do governo ucraniano. Os Estados Unidos repetidamente deixaram clara sua oposição aos ataques ucranianos contra a Rússia, temendo uma escalada, embora os recentes bombardeios e incursões tenham sido recebidos quase com indiferença.
O distanciamento do governo ucraniano dos ataques das milícias e incursões nas aldeias da fronteira russa parece ter a intenção de afrontar Putin por imitação. Em 2014, ele insistiu que não sabia nada sobre as tropas russas sem insígnias que atuaram na anexação da Crimeia e na invasão da região do Donbass, no leste da Ucrânia.
A reação aleatória da Rússia aos ataques na área de fronteira de Belgorodo não ajudou a esclarecer nada. As Forças Armadas de Moscou ainda não conseguiram conter o bombardeio.
O governo dedicou pouco tempo nos principais canais de TV controlados pelo Estado ao desastre em Chebekino, numa aparente tentativa de não alarmar a população. Pouco ou nada fez sobre o bombardeio e assassinato de civis em ataques a partir de solo ucraniano, como se qualquer reação oficial fosse desestabilizadora. Isso não teve boa repercussão em Belgorodo.
A cidade também está inundada de refugiados da área de Kharkiv, simpatizantes da Rússia que fugiram de uma contraofensiva ucraniana anterior que expulsou as forças russas dos arredores da cidade, em setembro de 2022. Galina Ivanova, 75, nascida na Sibéria, mas residente na Ucrânia desde os 28, é uma das que fugiram na época. Apesar de todos esses anos na Ucrânia, ela se sente decididamente russa. Começou a chorar quando recebeu um pacote de macarrão, arroz e outros alimentos básicos. “Você acha que é bom ter que aceitar essas coisas?”, indagou.
Em uma grande arena de vôlei em Belgorodo, onde algumas das dezenas de milhares de pessoas que fugiram de Chebekino e de aldeias vizinhas foram registradas, Lidiia Rogatiia, 65, estava inconsolável. Ela continuava reclamando sobre suas galinhas abandonadas na aldeia russa de Novaia Tolovochanka, perto de Chebekino, levando outra mulher a gritar: “Você não vai ficar quieta sobre suas galinhas idiotas? Você só fala em alimentar suas galinhas!”
Mas para Rogatiia, cuja pensão é de cerca de R$ 534, elas simbolizam a casa que ela perdeu, deixando-a, segundo disse, sem nenhum motivo para viver.
Muitas pessoas são aposentadas pobres, como Rogatiia, que vivem em um mundo russo miserável a uma imensa distância do brilho do centro de Moscou.
A arena de vôlei, convertida em abrigo, cheirava a poeira, suor e cascalho. Muitas pessoas fugiram com alguns pertences enfiados às pressas em sacos de lixo, no máximo.
De volta a Chebekino, onde os bombardeios continuam, Liliana Luzeva, 60, permanecia lá. Não conseguiu deixar suas cabras, galinhas e horta. Ela cuida de alguns cachorros abandonados.
Quando o bombardeio recomeça, ela desce para seu pequeno “porão de batatas”, cheio de potes de geleia, cogumelos em conserva, molho de tomate e baldes de batatas. Um galo desfila no quintal, onde as peônias florescem desenfreadamente. “Eu rezo, rezo, rezo”, disse ela. “Vamos expulsá-los. Só não sei por que tudo tinha que acontecer desse jeito.”
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