Baratos e experientes em guerrilha, mercenários latino-americanos se tornam atrativos em guerras

Com mudança no perfil das guerras e sem legislações apropriadas para mercenários, latinos são contratados em conflitos no Oriente Médio e África

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Foto do author Carolina Marins

Na Ucrânia, a Rússia substitui seus soldados perdidos por mercenários. Há menos de um ano, o presidente do Haiti foi assassinado supostamente por militares contratados. Nas guerras do Oriente Médio, as batalhas são feitas por combatentes de várias nacionalidades. O uso de mercenários em conflitos é um fenômeno antigo, mas que voltou a ser popular nos últimos 30 anos. Neste cenário, latino-americanos se tornam atrativos por custarem menos que europeus e americanos e possuírem experiência em guerrilha urbana e em florestas.

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Não existem dados oficiais de existência e uso de mercenários em conflitos, mas pesquisadores buscam há anos levantar informações de quantos são e de onde vêm. “Rastrear mercenários seria como rastrear cartéis do narcotráfico”, afirma Sean McFate, professor de estratégia militar na Georgetown University e National Defense University.

Segundo ele, o mercado de mercenários é uma rede fechada, onde pouca informação vaza e organizações que os vendem e contratam não fazem de forma oficial. Mas ainda é possível ter uma dimensão com base nos relatórios de conflitos dos últimos anos.

Um relatório produzido por McFate em 2019, mostra que as maiores redes são de ex-militares dos Estados Unidos e Reino Unido, muito utilizados nas guerras do Iraque e Afeganistão. Em seguida vem as ex-repúblicas soviéticas e as forças especiais da América Latina. Mas os valores dos primeiros, e principalmente, a mudança na maneira de se fazer guerra, tornou os latinos mais atrativos nos últimos anos.

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Rebeldes Houthis em uma parada militar no Iêmen. Centenas de latino-americanos foram contratados para lutarem pelos Emirados Árabes Unidos na guerra do Iêmen Foto: YAHYA ARHAB/EPA/EFE

“Os mercenários latino-americanos são muito bons no que fazem e também são mais baratos do que mercenários americanos ou europeus”, explica McFate. “Eles sabem lutar não apenas nas cidades, mas nas selvas. Sabem fazer a guerra de guerrilha e contra-guerrilha. E isso os torna muito atraentes porque a maior parte do mundo não gosta disso.”

“Não é como a Segunda Guerra Mundial, então você vê que este tipo de guerra está se tornando cada vez mais comum. Veja a Ucrânia, eles estão fazendo guerrilha contra um ataque convencional da Rússia e estão tendo sucesso. É por isso que os mercenários latino-americanos são altamente cobiçados no mercado da força hoje.”

Presentes no Oriente Médio e África

Grande parte desses mercenários estão lutando em conflitos no Oriente Médio, segundo relatórios. Uma investigação do The New York Times em 2015 revelou que os Emirados Árabes Unidos contrataram secretamente centenas de latino-americanos para lutarem na guerra do Iêmen. Entre as nacionalidades estavam panamenhos, salvadorenhos e chilenos, mas a maioria era de colombianos.

“Todos eles eram veteranos da guerra às drogas, trazendo novas táticas e dureza aos conflitos no Oriente Médio”, aponta o documento de McFate. “Eles também eram uma pechincha, custando uma fração do que um mercenário americano ou britânico cobraria, então os Emirados contrataram 1.800 deles, pagando duas a quatro vezes seus antigos salários”. O professor explica que essas forças contratadas se tornam atrativas para nações sem forças militares fortes e que são muito ricas, como as monarquias do golfo pérsico.

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A Colômbia, embora não seja o único país, é o principal exportador desses combatentes na região. Os mais de 60 anos de conflito interno criaram gerações de soldados altamente treinados, seja guerrilheiros seja soldados das forças tradicionais. Os soldados com experiência em contra-insurgência e terrorismo urbano ou que receberam treinamento em países como Estados Unidos e Israel são os mais visados, segundo contou um militar colombiano à Reuters.

“Esses latino-americanos que são contratados para conflitos no exterior são basicamente pessoas que podem ter participado de conflitos armados, parte de guerrilhas ou são ex-militares que não encontram oportunidade após deixar essas atividades”, afirma Irene Cabrera Nossa, professora na Universidad Externado de Colombia.

“Temos um grande desafio que é como fazer com que todas essas pessoas que se desmobilizam de contextos de guerra ou que até deixam grupos criminosos não terminem fazendo parte de conflitos armados em outros cenários do mundo. Vimos isso com os colombianos no Iraque, com os centro-americanos na África e em áreas como Iêmen, Somália e Síria”. Lugares como Etiópia e Eritreia também têm reportado a chegada de latino-americanos.

Mercenários russos são vistos embarcando em um helicóptero no norte do Mali. O uso de mercenários em conflitos vem se popularizando desde o fim da Guerra Fria Foto: AP

Frustrações e enganos

Na Ucrânia, os relatórios iniciais apontam a presença maior de mercenários russos, especialmente do letal Grupo Wagner. Mas latinos também buscaram se juntar às forças ucranianas contra Rússia, alguns por motivação ideológica, mas outros por questões financeiras e militares.

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Em março, vários mercenários da América Latina relataram ao jornal argentino Clarín as suas frustrações de tentarem lutar na Ucrânia, mas acabarem em um limbo. Lhes eram prometidos US$ 2.500 por mês, mais bônus por sucessos militares, além de um visto de residência, segundo o jornal. Mas quando chegam ao país, não é isso que encontram.

Segundo Irene, há o risco enorme destas pessoas serem enganadas ao aceitarem trabalhar como militares privados. Seja em um caso semelhante ao relatado pelo Clarin, quanto em casos mais graves em que os contratantes prometem atividades não ligadas ao front de batalha, mas que quando chegam lá essas pessoas são usadas como “carne de canhão”.

“Por exemplo, há relatórios de colombianos enganados por empresas privadas para trabalhar no Iraque, supostamente em vigilância, mas que terminaram participando de atividades hostis”, conta.

O caso mais emblemático ocorreu no Haiti, onde mercenários colombianos foram acusados de assassinar o presidente Jovenel Moise em julho de 2021. Mais de 20 colombianos foram considerados suspeitos e 15 foram detidos.

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As famílias, porém, alegaram que eles foram enganados. Em entrevista a uma rádio colombiana, a esposa de um dos detidos contou que ele foi militar durante 20 anos e se encontrava na República Dominicana antes do assassinato. “Não lhes foi dito exatamente para onde seriam levados. Era uma oportunidade de trabalhar com uma agência para cuidar de famílias de xeiques”, disse.

Imagem dos suspeitos de terem assassinado o presidente haitiano Jovenel Moise. Mercenários colombianos se tornaram os principais suspeitos pela morte, mas informações continuam desencontradas mesmo quase um ano após a morte Foto: STRINGER

Empresas militares privadas

Como não há dados específicos de mercenários - ou contratistas como muitos preferem ser chamados - um caminho é monitorar o surgimento de Empresas Militares e de Segurança Privadas (PMSCs, na sigla em inglês).

Segundo o relatório “Security on Sale” produzido por pesquisadores do Diálogo Interamericano em 2018, apesar de não viver situações de conflito internacional, existem mais de 16.000 PMSCs na América Latina e Caribe, que empregam mais de 2,4 milhões de pessoas. A região tem o maior número de militares privados em comparação com a de forças públicas.

“Embora as forças de segurança privada superem os números de membros da polícia em todo o mundo, na América Latina a diferença é ainda maior. No Brasil a proporção é de quatro para um, na Guatemala de cinco para um, e em Honduras há quase sete guardas particulares para cada agente de segurança pública”, afirma o relatório.

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Muitas dessas companhias fornecem serviços de segurança privada, como escoltas e proteção de edifícios, mas algumas têm o foco em combate e inteligência para conflitos internacionais, e são com frequência contratadas por governos e organizações.

A existência dessas empresas não é ilegal, pelo contrário, até mesmo agências como ONU e CICV contratam essas companhias para operarem em questões humanitárias em áreas de conflito. Porém, muitas utilizam a fachada da segurança privada para oferecer serviços que se envolvem em violações de direitos humanos e do direito internacional. O caso mais famoso é da companhia Blackwater, que mudou de nome após relatórios de violações no Iraque.

Mas mesmo ao atuarem em serviços não relacionados à guerra, a atividade dessas empresas preocupa pesquisadores, já que os Estados estão abrindo mão do chamado monopólio da força e entregando para empresas privadas trabalhos que são da segurança pública.

“É um risco, porque estamos pondo nas mãos de empresas privadas, por exemplo, informações de inteligência que são muito sensíveis”, pontua Irene. A proliferação deste tipo de serviço tende a ser maior em áreas de instabilidade política e em desenvolvimento.

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Membros das forças policias do Haiti ao lado de uma imagem do presidente assassinado, Jovenel Moise. Mercenários colombianos foram acusados de terem matado o presidente, mas suas famílias alegam que eles foram enganados Foto: RALPH TEDY EROL / REUTERS

Um limbo jurídico

O uso de mercenários cresceu após o fim da Guerra Fria, quando milhares de ex-militares se viram sem alternativa de trabalho após os conflitos. Seu uso se tornou interessante para os países, já que são mais baratos do que enviar o próprio exército, não custam vidas nacionais e, principalmente, isentam os Estados de culpa.

Esses combatentes repousam em um limbo jurídico, em que, se cometem crimes contra a humanidade, não são punidos - não há precedentes ao menos - e permitem que seus contratantes sejam indetectáveis.

“O presidente do Haiti foi assassinado por mercenários colombianos. Pegaram os mercenários, mas ainda não sabem quem os contratou”, aponta McFate. “Nós temos teorias. Mas se você pensar que alguém assassinou o presidente de um país e se livrou disso... Porque nem os mercenários sabem quem os contratou. São pessoas descartáveis”.

“Existe todo um vazio dentro do direito internacional de como as pessoas que fazem parte dessas empresas privadas e de segurança ou mesmo pessoas jurídicas podem ser responsabilizadas”, concorda Irene. Segundo ela, o caso do Haiti é só mais um exemplo de como a existência dessas companhias dilui as responsabilidades de crimes de guerra.

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