O presidente Javier Milei aproveita o respaldo das urnas na tentativa de liberalizar a economia da Argentina, estabilizar a crise e cumprir a promessa de zerar o déficit fiscal. De cara, o governo apresentou mais de mil medidas em dois megaprojetos: o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) e a chamada “Lei Ônibus”. Mas o país ainda espera para entender quais serão os seus efeitos práticos em meio aos questionamentos na Justiça e às negociações com o Congresso.
O DNU é alvo de uma centena de ações movidas por pessoas, organizações e Estados que contestam o megadecreto com 366 artigos. A Justiça já declarou inconstitucional toda a parte da reforma trabalhista, que está, por ora, anulada. O caso deve parar na Corte Suprema de Justiça, que voltou do recesso esta semana.
O segundo teve o texto-base aprovado pela Câmara depois de uma série de concessões que custaram quase metade do projeto, incluindo todo o capítulo fiscal. O pacote de reformas ainda pode sofrer mais modificações esta semana, quando os deputados discutem individualmente cada um dos mais de 380 artigos restantes. Entre os pontos mais polêmicos estão os poderes extraordinários que a Casa Rosada busca adquirir para passar reformas futuras sem passar pelo Congresso.
Ainda que tenha passado uma versão reduzida, a “Lei Ônibus” (aprovada por 144 votos) é considerada uma vitória para o governo que tem apenas 38 dos 257 deputados na Câmara e foi celebrada pela presidência. Internamente, no entanto, a Casa Rosada faz uma espécie de autocrítica, relatou esta semana o El Cronista, especializado na cobertura econômica. Com a reforma fiscal suspensa e a trabalhista barrada, a percepção do próprio governo é que as políticas esperadas para os primeiros meses poderiam ter sido mais efetivas.
“O governo precisava que a “Lei Ônibus” fosse aprovada - pelo menos em parte - porque era central para chegar ao equilíbrio fiscal com o qual se comprometeu. Bem, isso está custando um pouco mais, ainda está em negociação mas, principalmente o capítulo das privatizações será bastante reduzido”, aponta a analista Lourdes Puente, diretora da escola de Política da Universidade Católica da Argentina.
Com o pacote desidratado, é preciso observar como se desenrola agora o debate sobre os decretos de emergência que darão poder a Javier Milei para adotar mais medidas por decreto, sem a instabilidade jurídica que enfrenta hoje o DNU. “Ele precisa que o Congresso dê esses poderes extraordinários para incidir sobre esses temas econômicos mais importantes. O mesmo acontece com as privatizações”, afirma Lourdes Puente.
Amplos poderes
A Casa Rosada queria emergência de dois anos prorrogáveis por mais dois anos em 11 áreas. O texto-base contempla um ano prorrogável por mais um ano em seis áreas e o número ainda pode ser reduzido nas discussão artigo por artigo. Isso porque, na semana passada, deputados tentaram condicionar os poderes extraordinários à fatia do imposto sobre transações em moeda estrangeira, reivindicada pelas províncias.
“O que está acontecendo e Javier Milei percebe é a dificuldade para fazer o que diz porque ele está defendendo a liberalização, mas está pedindo para concentrar mais poder, é quase contraditório. Diz que vai baixar os impostos mas em algum momento aumenta e depois tem que recuar porque é pressionado”, diz Puente.
O aumento de impostos sobre as principais exportações, como derivados de soja, grãos e milho foi justamente um dos pontos mais polêmicos do pacote fiscal, abandonado mesmo antes da maratona de debates na Câmara começar. “Governar implica começar a ver as coisas que você não via quando estava na oposição”, conclui a analista.
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A lua de mel de Javier Milei
Apesar dos reveses, o cientista político Carlos de Angelis avalia que Milei encontrou um “caminho bastante desimpedido” para avançar com um pacote tão amplo, que além das reformas econômicas prevê ainda uma reestruturação política, administrativa e de segurança.
A questão é que o apoio que Javier Milei tem conseguido até aqui, segundo analistas, tem prazo para acabar. Algumas medidas econômicas já começaram a surtir efeitos que eram antecipados - no discurso de posse, o presidente alertou que a situação deveria piorar antes de melhorar -, mas que não são desejados por nenhum governo.
“As pessoas que votaram em Milei fartas do sistema político, do peronismo, mas também de Patricia Bullrich (candidata derrotada no primeiro turno que assumiu o ministério da Segurança no governo). O eleitorado pediu uma mudança muito grande. A pergunta é se pode ser feita dessa forma e se a Argentina está disposta porque vai ser um período muito difícil, com previsão de recessão para este ano”, afirma Carlos de Angelis ao defender a necessidade de um pacto político para estabilidade econômica.
“Por que uma empresa vai escolher investir em um país onde as coisas são feitas por decreto? Se depois pode vir um outro decreto que diga o oposto. Isso não gera confiança em termos de estabilidade jurídica. É algo que tem dado voltas sem acordos políticos. E abre a discussão se o que propõe Milei se sustenta no longo prazo. Uma dúvida compartilhada, inclusive, por empresários que poderiam se beneficiar desse modelo de livre mercado, como menos regulações do Estado”, acrescenta.
O tamanho da crise
A desvalorização do peso e o corte de subsídios tem pressionado a inflação que chegou a 25,5% no mês de dezembro e, segundo as projeções, deve fechar o mês de janeiro no patamar dos 20%.
Na capital Buenos Aires, o transporte público teve o segundo reajuste em menos de um mês (dessa vez, de 250%). O bilhete de ônibus subiu para 270 pesos e o de trem passou a custar 130 pesos nesta terça-feira, 6. A conta de luz também vai ficar mais cara e terá alta de 120% para aqueles que mais gastam energia, ou seja, os comércios. Nas outras faixas de consumo, os subsídios estão mantidos pelo menos até maio.
A inflação, por sua vez, reduz o ritmo do comércio: as pequenas e médias varejistas registraram uma queda de 28% nas vendas em janeiro deste ano se comparado com o mesmo período de 2023, informou a associação do setor.
O avanço da inflação na Argentina é um reflexo do corte de subsídios. Acontece que o governo peronista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que ocupou a Casa Rosada até dezembro, adotou uma política de controle de preços, que segurava os custos para os argentinos de forma artificial apesar da inflação galopante. Sem a intervenção do Estado, o aumento era previsto e o governo espera que, depois desse pico, as coisas se acomodem.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), no entanto, revisou as previsões para inflação argentina este ano - e para pior. Agora, o esperado é que o Índice de Preços ao Consumidor termine 2024 em 250%. Em novembro, a projeção era de 157%.
“A inflação mensal disparou para 25,5% em dezembro e deve ter um nível semelhante em janeiro. Isso explica a forte revisão em alta”, explicou Jens Arnold, chefe do departamento de Economia da organização.
Essa alta dos preços deve ser combinada a uma recessão, antes da economia voltar a crescer no ano que vem. “As políticas macroeconômicas da Argentina tomaram um caminho positivo para a estabilização e redução dos desequilíbrios acumulados, mas ao longo deste caminho as coisas primeiro pioram antes de melhorarem”, observou Arnold.
A avaliação está em linha com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que elogiou as medidas do governo, mas alertou que o caminho para estabilizar a economia é difícil ao anunciar mais US$ 4,7 bilhões em socorro para Buenos Aires. A organização prevê que a economia da Argentina vai cair 2,8% este ano.
“Os eleitores do Milei dizem que estão dispostos a aguentar, mas é preciso ver até que ponto. O declínio na economia já vinha acontecendo e a culpa ainda recai sobre o governo anterior, mas é preciso ver por quanto tempo”, aponta a analista Lourdes Puente. “O governo precisa mostrar que não é só a sociedade que está sofrendo, mas também o que eles chamam de de casta. E a verdade é que isso é muito difícil, então me parece muito difícil que esse capital político dure por muito tempo”, acrescenta.
A pressão sobre o Executivo é reforçada pelos movimentos sociais, que voltaram a se opor ao governo nesta segunda-feira, 5, como haviam feita na semana passada enquanto as discussões sobre o pacote de reformas se arrastavam na Câmara. Dessa vez, o ponto de encontro dos manifestantes foi a calçada do ministério do Capital Humano, onde fizeram uma fila quilométrica em resposta a titular da pasta Sandra Pettovello.
“É assim que vou fazer. Vocês estão com fome? Venham um por um, vou anotar seu número de identificação, seu nome, de onde vocês são e vocês receberão ajuda individualmente”, disse na semana passada, quando questionada sobre a redução da ajuda aos restaurantes comunitários.
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