Berlusconi elogia Putin, ataca Zelenski e joga incertezas sobre novo governo na Itália

Giorgia Meloni, que saiu vitoriosa das eleições, precisa do apoio de Berlusconi, mas ele se tornou o maior e mais errático obstáculo para formar governo

PUBLICIDADE

Por Jason Horowitz

ROMA - Silvio Berlusconi, o ex-primeiro-ministro italiano, fez campanha para ser o protetor dos valores democráticos e pró-europeus em uma nova coalizão de direita que deve assumir o poder depois de vencer as eleições no mês passado. O presidente italiano, Sergio Mattarella, iniciou nesta quinta-feira a fase de consultas formais para a formação do novo governo.

PUBLICIDADE

Mas mesmo antes de o governo poder tomar posse, o bilionário magnata da mídia de 86 anos provou ser uma força menos estável e moderadora, virando uma fonte renovada de ansiedade depois do vazamento de comentários gravados clandestinamente nos quais ele culpou o governo do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, por forçar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a invadir a Ucrânia.

As observações, complementadas com uma troca de “cartas gentis” e garrafas de vodca e vinho com Putin, levantam preocupações de que o novo governo de direita, liderado por Giorgia Meloni, uma sólida defensora da Ucrânia, seja mais instável do que o esperado. Surge também o temor de, ao ter um integrante admirador de Putin, a coalizão possa levar a Itália a minar a frente unida da Europa contra a Rússia.

Em imagem de arquivo, Silvio Berlusconi (E) e Vladimir Putin durante visita do italiano a Sevastopol Foto: Alexei Druzhinin/AFP - 11/09/2015

“Eu me reconectei um pouco com o presidente Putin”, disse Berlusconi no áudio publicado no site do La Presse na terça-feira, no qual ele fala em uma reunião de membros leais do partido Forza Italia, e alguns aparentemente não tão leais. No áudio, ele acrescentou que Putin lhe enviou 20 garrafas de vodka “e uma carta muito gentil” para seu aniversário de 86 anos no mês passado. Berlusconi disse que respondeu enviando garrafas de vinho Lambrusco e “uma carta igualmente doce”.

Berlusconi não contestou a autenticidade das observações. Na quarta-feira, uma porta-voz da Comissão Europeia disse que está investigando se o carregamento de vodka constitui uma violação das sanções europeias contra a Rússia.

Publicidade

Mas foram os comentários adicionais vazados na quarta-feira que causaram mais danos.

“‘Você sabe como surgiu o caso da Rússia? Também sobre isso, porém, peço-lhe que mantenha isso na mais estrita confidencialidade. Prometem?’”, diz Berlusconi na gravação.

Ele então culpou a Ucrânia por violar o acordo de Minsk sobre os territórios de Donbas, “matando, me disseram, 5, 6, 7 mil” pessoas nos territórios, levando a um apelo Putin por proteção. “Eles dizem: ‘Vladimir, não sabemos o que fazer. Defenda-nos’.”

Segundo o italiano, Putin era contra qualquer iniciativa, resistiu, mas estava sob forte pressão de toda a Rússia. Então, afirma, ele decide inventar uma operação especial: “as tropas deveriam entrar na Ucrânia, chegar a Kiev em uma semana, depor o governo em exercício, Zelenski e assim por diante, e instalar um governo já escolhido pela minoria ucraniana composto por líderes mais sensatos, e depois partir na semana seguinte”.

Em vez disso, no relato de Berlusconi, Putin foi pego de surpresa por uma resistência alimentada por armas “do Ocidente”. Ele acrescentou: “Zelenski, na minha opinião – não importa que eu não possa dizer nada”, momento em que foi interrompido por aplausos de seus apoiadores. “Hoje, infelizmente, no mundo ocidental não há líderes, não há líderes na Europa e nos Estados Unidos da América. Eu não conto as coisas. Eu sei que não existem líderes reais. Posso fazer você rir? O único líder real sou eu.”

Publicidade

Esses comentários ecoaram um pedido anterior de desculpas a Putin por Berlusconi no mês passado em um dos talk shows políticos mais proeminentes do país. Na época, ele disse que suas palavras foram tiradas do contexto. Mas o fato de ele ter dito a mesma coisa em particular e parecer estar virando para o lado de Putin atraiu ampla condenação de todo o espectro político.

Nesta quinta-feira, Berlusconi entrou em modo de controle de danos. No Twitter, ele chamou de “ridículo” que a oposição de centro-esquerda da Itália, que concorreu com partidos de esquerda críticos à Otan, possa “se permitir me criticar”. Em outro post, ele disse que era “simplesmente ridículo” questionar sua posição pró-Otan.

Fiel da balança

Dentro de dias, a líder de direita radical Giorgia Meloni, que saiu vitoriosa das eleições no mês passado, deve se tornar primeira-ministra. Mas ela precisa do apoio de Berlusconi, e ele agora se tornou o maior e mais errático obstáculo para formar um governo.

Na semana passada, enquanto exigia ministérios importantes para seus partidários, ele insultou o namorado de Meloni ao se referir a ele como apenas um funcionário de um canal de televisão de propriedade de Berlusconi. Os fotógrafos capturaram uma imagem das anotações de Berlusconi com uma lista real de insultos sobre a personalidade de Meloni (“Soberba, arrogante, ofensiva”).

Mas a condenação a Putin é fundamental para sua credibilidade como aliada pró-ocidente e ajuda a dissipar as preocupações resultantes de suas origens na política pós-fascista, seu passado anti-União Europeia e sua proximidade com líderes não liberais como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban. Um membro do partido de Berlusconi parecia pronto para servir como ministro de Relações Exteriores. Não está claro se isso pode acontecer agora.

Publicidade

O primeiro-ministro Mario Draghi, o líder de governo que está de saída e um arquiteto da frente única da Europa contra a Rússia, trabalhou duro para afastar a Itália de sua dependência do gás russo e visão geralmente pró-Rússia, ambas as quais Berlusconi ajudou a fomentar durante seus muitos anos no poder como quatro vezes primeiro-ministro.

A esquerda da Itália tem uma afinidade persistente com a Rússia desde seus dias como o maior Partido Comunista da Europa Ocidental. Mas Berlusconi ajudou a aproximar a direita da Rússia.

Os integrantes da coalizão para o futuro governo da Itália, Matteo Salvini (E), Silvio Berlusconi (C) e a provável primeira-ministra Giorgia Meloni; apoio à Ucrânia sob risco  Foto: Yara Nardi/Reuters - 22/09/2022

Durante o tempo de Berlusconi no poder, ele se afeiçoou a Putin. Berlusconi batizou uma cama em homenagem a Putin, deu a Putin lençóis com estampa dos dois líderes apertando as mãos e hospedou as filhas de Putin em sua vila na Sardenha.

Recentemente, ele disse estar desapontado com seu velho amigo, um distanciamento considerado necessário para se posicionar como um contrapeso centrista ao outro parceiro de coalizão de Meloni, Matteo Salvini, líder do partido Liga, na questão da Rússia. Salvini costumava usar camisetas com o rosto de Putin, fez uma carreira populista se opondo a sanções contra a Rússia e uma vez até disse que preferia Putin a seu próprio presidente.

Após os comentários de Berlusconi, Meloni, que prometeu em uma entrevista recente continuar enviando armas à Ucrânia, parece cada vez mais sozinha em seu apoio à Ucrânia. Há também cada vez mais pressão política da esquerda.

Publicidade

O ex-primeiro-ministro Giuseppe Conte condenou as declarações de Berlusconi, mas nesta semana ele anunciou que participaria de uma grande manifestação, em 5 de novembro, exigindo paz para a Ucrânia e o fim dos carregamentos de armas. Ele pediu incessantemente o fim das remessas na campanha enquanto se reformulava como um herói populista dos pobres no sul da Itália, que, segundo ele, deveriam ser os destinatários do dinheiro gasto em armas.

Críticos dizem que Conte está defendendo a rendição da Ucrânia, mas ele parece ter cada vez mais aliados. O Vaticano e a Igreja Católica Romana Italiana, que são politicamente poderosas na Itália, parecem se inclinar para o grupo da paz a todo custo.

Esta semana, o cardeal Matteo Zuppi, presidente da Igreja italiana e aliado próximo do papa Francisco, foi citado pela agência de notícias italiana Ansa dizendo que era “melhor perder um pedaço de soberania e resolver conflitos. Em vez de pegar em armas, vamos falar sobre isso”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.