Os protestos de domingo em várias cidades de Cuba, os maiores desde 1994, e a pressão dos cubanos exilados principalmente nos Estados Unidos representam um desafio para o governo do presidente Miguel Díaz-Canel poucos meses após Raúl Castro deixar a liderança do Partido Comunista e, pelo menos formalmente, o poder político.
O presidente americano, Joe Biden, classificou na segunda-feira, 12, os protestos em Cuba como “notáveis”, afirmando que as marchas são “um toque de clarim por liberdade”. “O povo cubano exige sua liberdade de um regime autoritário. Acho que não vemos algo assim há muito tempo, talvez nunca”, disse Biden em uma breve conversa com repórteres.
Ele também pediu na segunda-feira ao governo de Cuba que não recorra à violência contra os protestos de rua. “O povo cubano está afirmando bravamente direitos fundamentais e universais. Estes direitos, incluindo o de protesto pacífico e de determinar livremente o próprio futuro, precisam ser respeitados”, afirmou Biden.
Os comentários indicam um tom diferente do empregado por Barack Obama, que buscou aliviar décadas de tensão entre Washington e Havana enquanto afrouxava as sanções econômicas impostas pelos EUA.
Agitando bandeiras cubanas e americanas e gritando “Pátria ou Vida!”, milhares de cubanos manifestam-se na segunda-feira em Miami e Washington em apoio aos históricos protestos em Cuba, com a esperança de que eles levem a grandes mudanças.
Milhares de pessoas – cansadas da escassez de alimentos e remédios, agravada pela pandemia da covid-19 e o embargo econômico – saíram no domingo às ruas da capital, Havana, e outras cidades da ilha com gritos inéditos de “liberdade” e “abaixo a ditadura”. Em meio a denúncias de prisões e desaparecimentos de ativistas, principalmente da área artística, os cubanos tentavam na segunda-feira obter informações.
“Minha mulher faz parte do corpo docente da Escola Internacional de Cinema e está presa desde domingo. Não tenho informação dela, não tenho serviços de internet ou telefonia, não tenho mais nada o que dizer”, disse o marido de uma professora ao Estadão, sob condição de anonimato.
Os dois vivem na cidade de San Antonio de Los Baños, onde os protestos começaram pedindo por uma vacinação mais rápida contra a covid. Em poucos minutos, as imagens estavam no Facebook e novas convocações foram feitas pelos ativistas. “Havia até pouco tempo em Cuba muitas restrições sobre a liberdade de expressão e de manifestação. Com a ascensão de Díaz-Canel isso mudou. As pessoas passaram a ter mais internet, mais barata e com mais pontos de acesso. Isso permitiu a realização desses atos”, explica o cientista político da ESPM e especialista em América Latina, Pablo Ramirez.
Para ele, a demanda crescente na ilha é por consumo. “Eles (cubanos) têm o essencial e de resto falta tudo. Canais de TV são restritos, não há shopping. Esses manifestantes pedem o direito de consumir, mas esse é o próximo passo. O primeiro passo é a liberdade política e o segundo é liberdade econômica. As novas gerações não viveram a revolução, então a nostalgia daquela época, que marcou tão fortemente os últimos anos dos Castros no poder, não está mais presente. As novas gerações estão marcadas pela abertura (econômica), pelo que chega de informações de consumo. A ideologia do consumo está se expandindo”, diz Ramirez.
Fontes próximas ao governo cubano denunciam que grupos em Miami estão aproveitando a crise sanitária para “financiar movimentos contrarrevolucionários” no momento em que o governo do presidente americano, Joe Biden, poderia negociar alguma espécie de relaxamento das restrições econômicas.
Cuba tem um peso cada vez maior na política americana. A forte presença de cubanos e cubano-americanos na Flórida, um dos Estados-chave para ganhar a presidência, é bastante importante para as eleições.
Embora o presidente Díaz-Canel tenha reconhecido a insatisfação dos cubanos, lançou aos revolucionários “a ordem de combate”, para que “tomem as ruas onde quer que ocorram essas provocações”. Além disso, em rede nacional de rádio e TV, ele acusou na segunda-feira os EUA de impor “uma política de asfixia econômica para provocar revoltas sociais no país”. O líder cubano garantiu que seu governo está tentando “enfrentar e superar” as dificuldades econômicas diante das sanções reforçadas no mandato de Donald Trump.
Atualmente, por exemplo, os alimentos que são importados pela ilha, que representam 80% do total consumido, precisam ser descarregados de navios no Panamá ou na Jamaica. Se uma embarcação dessas parar em um porto cubano, é impedida de entrar em portos americanos em seguida, como afirma Frei Betto, autor de Fidel e a Religião e Paraíso Perdido – Viagens ao Mundo Socialista. Em razão disso, boa parte do orçamento cubano é destinada à operação de enviar barcos para pegar esses contêineres de alimentos e levar até a ilha.
A cubana Salomé Gasrcía Bacallao deixou Cuba há três anos e estuda em Valencia, na Espanha, onde também é editora e colunista da revista Hypermedia e também se diz prejudicada pelo embargo. “Muitas plataformas financeiras, por exemplo, ou até bancos aqui não reconhecem a documentação cubana. Mas há situações que foram impostas por Trump e poderiam ter sido contornadas pelo regime cubano. Um exemplo é o congelamento dos bancos que gerenciam as remessas de dinheiro a Cuba porque estão controlados por instituições militares cubanas. A solução para isso seria que outras instituições bancárias de Cuba que não são controladas pelo governo cubano pudessem tramitar essas remessas, mas o governo cubano se nega a isso”, diz.
Salomé tem parentes e amigos em Cuba, com os quais mantém contato quase diário. “O fato de não conseguir me comunicar com amigos dissidentes agora me preocupa muito. Estou em contato com pessoas que dizem que muitos foram presos na segunda-feira na frente do Instituto Cubano de Rádio e Televisão, por exemplo”, diz ela ao enviar vídeos de manifestações de cubanos em Valencia.
Enquanto há incertezas sobre qual será a extensão dos protestos na ilha, a população relata um clima de tensão e medo de perseguição política. “Está tudo fechado aqui. As ruas estão fechadas com patrulhas de polícia e equipes de resposta rápida. A praça aqui perto está cercada de policiais e civis postados em distâncias de 3 a 5 metros entre eles, mas pela maneira como estão parados e como são fisicamente sabemos que têm formação militar”, contou ao Estadão uma professora em Havana, que também pediu para não ser identificada com medo de ser perseguida.
Muitos cubanos conseguem acessar a internet por meio de entradas VPN, com endereços estrangeiros para furar os bloqueios. Vídeos enviados pelas redes sociais e aplicativos de conversa mostram carros militares passando pelas ruas de Havana e alguns manifestantes perguntando a soldados onde estão os parentes que foram levados de protestos.
“E por que o embargo não acaba? Justamente por causa dos descendentes exilados, que impõem dificuldades para que os EUA apoiem qualquer governo cubano. Os inimigos principais do Partido Comunista Cubano são os cubanos que vivem em Miami”, afirma o professor Ramirez./ COM AFP
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