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Biden está cada vez mais disposto a ultrapassar os limites anunciados por Putin

Decisão do presidente americano de enviar caças de combate F-16 à Ucrânia mostra escalada do apoio bélico na guerra contra Putin

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Por John Hudson e Dan Lamothe
Atualização:

A decisão do presidente Joe Biden, do mês passado, de ajudar a Ucrânia a obter caças de combate F-16 marcou outro episódio em que o americano desafiou um limite anunciado por Vladimir Putin que, segundo o líder russo, transformaria a guerra ocasionando um conflito direto entre Estados Unidos e Rússia.

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Apesar dos alertas apocalípticos de Putin, Washington concordou gradualmente em expandir o arsenal ucraniano com mísseis Javelin e Stinger, lançadores de foguetes Himars, sistemas avançados de defesa com mísseis, drones, helicópteros, tanques M1 Abrams e, a seguir, caças de combate de quarta geração.

Um motivo crucial para desconsiderar as ameaças de Putin, afirmam autoridades americanas, é uma dinâmica que transcorre desde os dias iniciais da guerra: o presidente russo não cumpriu suas promessas de punir o Ocidente por fornecer armas para a Ucrânia. Seu blefe deu aos líderes americanos e europeus alguma confiança de que podem continuar esse fornecimento sem enfrentar consequências graves — mas até que ponto essa ajuda será tolerada segue sendo uma das incertezas mais perigosas do conflito.

Presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski (à esq.), ao lado do presidente dos EUA, Joe Biden (dir.), em imagem de maio. Biden continua firme no apoio à Ucrânia na guerra Foto: Brendan Smialowski/AFP

“A Rússia desvalorizou seus limites declarados muitas vezes ao dizer que certas coisas seriam inaceitáveis e depois não fazendo nada quando elas ocorriam”, afirmou Maxim Samorukov, especialista em Rússia do Fundo Carnegie para a Paz Internacional. “O problema é que não sabemos qual é o limite real, que está dentro da cabeça de um indivíduo e pode mudar de um dia para o outro.”

Autoridades americanas afirmam que administrar o risco de escalada continua um dos aspectos mais difíceis da guerra para Biden e seus conselheiros de política externa. Quando decidem quais novas armas fornecer para a Ucrânia, eles colocam foco em quatro fatores críticos, disseram autoridades.

“Eles precisam disso? Eles sabem usar? Eles têm isso já? Qual será a resposta dos russos?”, disse uma graduada autoridade do Departamento de Estado. Como outras fontes entrevistadas para a elaboração desta reportagem, esse indivíduo falou sob condição de anonimato para discutir deliberações internas sensíveis.

A autoridade afirmou que a relutância da Rússia em retaliar influenciou o cálculo de risco do secretário de Estado americano, Antony Blinken, um dos principais homens de confiança de Biden, que tem sido uma voz influente em encorajar o governo e os aliados dos EUA a fazer mais para apoiar a Ucrânia.

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“Você leva isso em conta na sua tomada de decisão. Nós fizemos isso — não houve nenhuma escalada nem reação — nós podemos dar o próximo passo? Nós estamos constantemente avaliando esses fatores e isso se torna a decisão mais difícil que temos de tomar”, afirmou a autoridade.

Como Blinken, o conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, também percebeu benefícios em fornecer armamentos mais letais para a Ucrânia superando riscos de escalada e trabalhou arduamente com os aliados europeus em prol do fornecimento de caças F-16 para a Ucrânia, afirmou uma autoridade da Casa Branca.

Ações do governo americano

O governo americano lidou com essas preocupações em meio ao clamor de ucranianos e belicistas no Congresso frustrados com a abordagem gradual e ávidos para que Biden se movimentasse mais rapidamente para enviar equipamentos mais avançados para o campo de batalha em meio ao ataque brutal da Rússia.

No início da invasão russa, em fevereiro do ano passado, Putin alertou que qualquer país que tentasse “impedir” suas forças deveria “saber que a reposta russa será imediata e levará a consequências que vocês nunca viram na história”.

Conforme a guerra se arrastou, os alertas de Putin e seus subordinados ficaram mais bombásticos, com ameaças de holocausto nuclear caso a Rússia sofresse reveses no campo de batalha.

“Se a Rússia sentir que sua integridade está ameaçada, nós usaremos todos os métodos de defesa ao nosso dispor, e isso não é um blefe”, afirmou Putin em setembro do ano passado.

Imagem de 2022 mostra o tanque de guerra M1 Abrams, do Exército dos EUA, durante um exercício militar. Equipamento foi enviado pelos EUA à Ucrânia após relutância do início da guerra Foto: Sgt. Anthony Prater/EFE

Dmitri Medvedev, vice-presidente do poderoso conselho de segurança de Putin, foi mais explícito em janeiro. “A derrota de uma potência nuclear em uma guerra convencional pode ocasionar uma guerra nuclear”, afirmou ele.

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Ainda que Putin tenha desafiado os EUA — suspendendo a participação da Rússia em um tratado crucial de controle de armas, prendendo o repórter Evan Gershkovich, do Wall Street Journal, e supervisionando a decisão judicial que sentenciou a jogadora de basquete americana Brittney Griner a 9 anos de prisão antes de aceitar trocá-la por um notório traficante de armas — ele não atacou militarmente Washington nem seus aliados.

Mas as autoridades ocidentais estão cientes de que isso não quer dizer que ele não atacaria — particularmente conforme o conflito se intensificar.

Ataques em Moscou

Na terça-feira, drones atacaram bairros afluentes de Moscou, em uma ação que um político russo classificou como o pior ataque contra a capital desde a 2.ª Guerra. A Ucrânia tem negado envolvimento em ataques dentro do território russo, e o governo Biden afirmou que não possibilita nem encoraja ataques ucranianos dentro da Rússia. Mas o governo em Kiev parece satisfeito por civis russos estarem experimentando os mesmos medos que os ucranianos têm enfrentado há mais de um ano, conforme suas cidades tornaram-se alvo de ataques implacáveis com mísseis e drones dos russos.

Uma explicação possível para a relutância de Putin em atacar o Ocidente é o grau de desgaste das Forças Armadas russas, de acordo com autoridades americanas.

“Não parece do interesse deles entrar em um confronto direto com a Otan neste momento”, afirmou a graduada autoridade americana. “Eles não estão bem posicionados para isso.”

O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, estimou numa entrevista recente à revista Foreign Affairs que a Rússia pode ter sofrido até 250 mil baixas, entre mortos e feridos, desde que sua invasão em escala total começou — uma perda estarrecedora para qualquer conflito.

Imagem mostra apartamento de Moscou danificado após ataque de drone, na terça-feira, 30 Foto: KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP

Putin substituiu-os no campo de batalha, afirmou Milley, mas por reservistas “mal comandados, mal treinados, mal equipados e mantidos em más condições”.

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Conforme as baixas russas se acumularam, Putin recalibrou seus objetivos de guerra, de tomar controle de Kiev e destituir o governo do presidente Volodmir Zelenski para controlar e anexar uma faixa de território que abrange o leste e o sul da Ucrânia.

Ainda assim, autoridades americanas continuam apreensivas com a possibilidade da Rússia, lar do maior arsenal nuclear do mundo, intensificar o conflito na Ucrânia ou em outras partes. No ano passado, em meio a preocupações acentuadas de que a Rússia considerava acionar uma arma nuclear, autoridades graduadas do Departamento de Estado alertaram Moscou privadamente a respeito das consequências desse acionamento — mensagens acompanhadas posteriormente de alertas públicos.

Conforme o governo Biden avaliava esses riscos, líderes ucranianos, incluindo Zelenski, expressaram publicamente sua consternação. Hesitações e atrasos perceptíveis, afirmaram eles, prolongavam o derramamento de sangue e inibiam a capacidade da Ucrânia de sobrepujar a Rússia militarmente e forçar o fim da guerra.

Belicistas republicanos no Congresso, enquanto isso, têm afirmado que a ameaça russa de escalada não deveria ser levada em consideração. O deputado Michael McCaul, do Texas, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, chamou o governo de “covarde” por não enviar sistemas de mísseis de longo alcance conhecidos como ATACMS. Essas armas têm figurado no topo da lista de desejos da Ucrânia ao longo de quase toda a guerra.

“Toda vez que o governo atrasa o envio de algum sistema de armamentos crucial para a Ucrânia, de Stingers a Himars, a Bradleys, por medo de escalada da Rússia, provou-se que ele estava completamente e absolutamente equivocado”, afirmou McCaul anteriormente este ano.

O Reino Unido aprovou a transferência de armas similares, os mísseis de longo alcance conhecidos como Storm Shadows, no início de maio.

Divergências no governo Biden

Dentro do governo Biden, o Pentágono é considerado mais cauteloso do que a Casa Branca ou o Departamento de Estado a respeito de mandar armas mais sofisticadas para a Ucrânia, mas suas autoridades negam que o medo de uma escalada influencie de qualquer maneira seus cálculos.

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O Departamento de Defesa tem se concentrado no que a Ucrânia necessita de imediato, afirmou uma graduada autoridade do Pentágono, que defendeu seu papel e aconselhamento conforme os ambiciosos pedidos de Kiev ao longo da guerra foram recebidos com vagar ou recusados. A autoridade notou que os EUA evoluíram do fornecimento de mísseis antiblindados, como os Javelins, quando ficou claro que colunas de veículos militares invadiriam, para o envio de sistemas de artilharia, conforme a guerra se transformou em um sangrento duelo travado em trincheiras — e para os comprometimentos mais recentes de envios de tanques e caças de combate F-16.

Antes que a maioria dos armamentos e equipamentos ocidentais possa ser transferida para as unidades que vão usá-los, as forças ucranianas devem primeiro aprender a operá-los e fazer a manutenção do que recebem, afirmou essa fonte, louvando o “quão impressionantes” os ucranianos têm sido em “pôr de pé o que se tornou um sistema muito sofisticado de manutenção e apoio que não existia antes do início da guerra”.

Em um exemplo, as autoridades ucranianas pediram por meses no ano passado o bilionário sistema de defesa antiaérea com mísseis Patriot. As autoridades americanas relutaram, citando preocupações sobre treinamento, manutenção e custo, mas finalmente liberaram o envio, em dezembro, depois que repetidas barragens de mísseis russos atingiram a infraestrutura civil da Ucrânia. Um desses sistemas doados pelo Ocidente foi danificado por um ataque em meados de maio, requerendo assistência americana para o reparo.

A graduada autoridade de defesa rejeitou qualquer sugestão de que outras agências americanas busquem fazer mais para ajudar a Ucrânia do que o Pentágono. “Eu acho que o pessoal no Departamento de Defesa tem um entendimento singular a respeito do que é possível pragmaticamente e em relação a como ajudar melhor as Forças Armadas ucranianas de modo a apoiá-las em qualquer momento dado no campo de batalha”, afirmou a fonte.

Inquestionavelmente, a disposição do governo Biden de desafiar os limites declarados por Putin impulsionou a capacidade da Ucrânia de defender a si mesma e recapturar território no leste e no sul. Resta ver, contudo, se Putin continuará a permitir que o Ocidente desafie suas ameaças sem consequências. “Certos limites existem”, afirmou Alexander Gabuev, diretor do Centro Carnegie para Rússia e Eurásia, em Berlim, “(…) mas não saber com certeza quais eles são gera risco”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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