WASHINGTON (THE NEW YORK TIMES) - Durante a campanha para presidente dos Estados Unidos em 2020, o então candidato Joe Biden prometeu tornar a Arábia Saudita um “pária” em resposta ao assassinato brutal do jornalista Jamal Khashoggi. Mas, passados dois anos, o agora presidente vai viajar para a capital do país, Riad, na tentativa de reconstruir relações.
A Arábia Saudita é um reino conhecido por ser rico em petróleo e a viagem de Biden acontece no momento em que ele tenta baixar os preços do gás e do petróleo nos EUA e isolar a Rússia no cenário internacional.
A viagem ao reino saudita faz parte do roteiro que inclui a Europa e Israel. Em Riad, o presidente americano se reunirá com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, considerado pela Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA) o responsável pelo desmembramento de Khashoggi -- um opositor do reinado de Salman e que foi colunista do The Washington Post. Também estão previstas reuniões com líderes de outras nações árabes, incluindo Egito, Jordânia, Iraque e Emirados Árabes Unidos.
A visita representa o triunfo da realpolitik sobre a indignação moral, segundo avaliaram especialistas em política externa. Com a guerra na Ucrânia, Biden achou necessário cortejar outros produtores de energia para substituir o petróleo russo e estabilizar os mercados mundiais.
A expectativa das autoridades americanas é que o grupo de nações produtoras de petróleo (OPEP+), liderado pela Arábia Saudita, aumenta a produção nos próximos meses, mas pode não ser suficiente para reduzir os preços nas bombas de combustível antes das eleições parlamentares, marcadas para novembro. Garantido, há um aumento modesto na produção da OPEP+ anunciado nesta quinta-feira, 2, para os meses de julho e agosto.
O governo Biden já vinha intensificando a cooperação com a Arábia Saudita em diversas questões antes mesmo da guerra na Ucrânia abalar os mercados mundiais de energia. A atuação se deu principalmente na busca pelo fim da guerra liderada pelos sauditas no Iêmen. O conflito já dura oito anos e vive uma trégua de dois meses, estendida nesta quinta-feira com elogios de Biden aos líderes sauditas pelo papel exercido. “A Arábia Saudita demonstrou liderança corajosa ao tomar iniciativas desde o início para endossar e implementar os termos da trégua liderada pela ONU”, disse em comunicado.
Quebra limitada de relações
Enquanto o então presidente Donald Trump permaneceu próximo dos sauditas, Biden prometeu tomar uma atitude diferente se eleito para a Casa Branca. Ele disse que faria os sauditas “pagarem o preço e os tornariam de fato os párias que são” e que havia “muito pouco valor de redenção social no atual governo da Arábia Saudita”.
Após assumir o cargo, Biden divulgou o relatório de inteligência sobre o assassinato de Khashoggi como uma prova de responsabilidade e impôs sanções a alguns dos envolvidos no crime. No entanto, o príncipe Mohammad ficou de fora das sanções, o que sinalizou os limites dos EUA em relação ao rompimento com o governo saudita.
A Casa Branca argumenta que acabou com a política de cheques em branco para Riad praticada pela equipe de Trump, mas que não está disposta a acabar com a amizade de quase oito décadas entre os dois países. A Arábia Saudita tem sido um importante aliado dos Estados Unidos em várias frentes. “A Arábia Saudita é um parceiro crítico para nós ao lidar com o extremismo da região e com os desafios colocados pelo Irã”, disse o secretário de Estado Antony J. Blinken durante um evento nesta quarta-feira, 1º.
Blinken acrescentou que espera dar continuidade à aproximação entre Israel e os vizinhos árabes através da expansão dos Acordos de Abraham e disse que os direitos humanos ainda são importantes, mas que os EUA aborda “a totalidade de interesses nesse relacionamento”.
Os Acordos de Abraham foram selados durante o governo Trump e estabeleceram relações diplomáticas normais entre Israel e vários Estados árabes, como os Emirados Árabes e o Bahrein, mas a Arábia Saudita ficou de fora inicialmente. A inclusão do país é um alvo permanente dos Estados Unidos porque os sauditas reconheceriam Israel formalmente como Estado judeu e ajudariam a validar o seu status na região.
Recentemente, o príncipe Faisal bin Farhan al-Saud, ministro das Relações Exteriores saudita, deu declarações otimistas sobre a adesão aos acordos, mas reiterou que o progresso deve ser feito primeiro na resolução do conflito entre Israel e a Palestina. “Não podemos colher os benefícios (de uma relação com Israel) a menos que abordemos a questão da Palestina”, disse na semana passada no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suiça.
Biden já estava preparado para diminuir a distância diplomática do príncipe Mohammed em outubro do ano passado, quando esperava encontrá-lo na reunião dos líderes do G-20, mas o líder saudita não compareceu.
Reaproximação é criticada por grupos de direitos humanos
A viagem planejada para Riad produziu rapidamente críticas de grupos defensores dos direitos humanos. “Neste momento, Biden é atingido por diversas crises e certas prioridades de direitos humanos pagam o preço”, afirmou Suzanne Nossel, executiva-chefe do PEN America, grupo em defesa da liberdade de expressão. “Quanto mais difícil fica colocar os direitos humanos acima da política, mais importante é para o mundo ter um líder disposto a fazê-lo”, acrescentou.
Um grupo chamado 9/11 Families United, que representa parentes de vítimas dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, enviou ao presidente uma carta nesta quinta-feira pedindo que ele pressionasse os líderes sauditas sobre os laços com os terroristas. No ano passado, Biden ordenou que os documentos da investigação sobre o 11 de setembro fossem desarquivados para revisar se havia alguma conexão entre a Al-Qaeda e os sauditas.
“Nenhum restabelecimento do relacionamento de nossa nação com a Arábia Saudita pode ou deve ser possível sem a devida reconciliação pelos ataques de 11 de setembro de 2001″, disse o grupo na carta.
O petróleo no xadrez geopolítico
Insatisfações da Arábia Saudita com Biden
Apesar dos movimentos de reaproximação serem anteriores, a guerra na Ucrânia fez com que esses esforços aumentassem consideravelmente. A Rússia e a Arábia Saudita estão praticamente empatadas como os segundos maiores produtores de petróleo do mundo, atrás somente dos Estados Unidos. Isso significa que, quando os funcionários do governo Biden tentou cortar as relações com um destes, eles concluíram que não podiam se dar ao luxo de estar em desacordo com o outro.
Em março, a Arábia Saudita aderiu a uma resolução das Organização das Nações Unidas apoiada pelos EUA que condena a Rússia pela invasão na Ucrânia; e, mais recentemente, enviou uma mensagem ao governo de Moscou em que pressiona a liberação de exportações de alimentos no porto ucraniano de Odessa. Os dois fatos deixaram o governo americano satisfeito.
Entretanto, os sauditas continuam insatisfeitos com o governo de Joe Biden. Além de divulgar o relatório sobre o assassinato de Khashoggi e desarquivar os documentos do 11 de setembro, Biden removeu a designação de terrorismo dos rebeldes houthis do Iêmen, revertendo uma política da era Trump valorizada pelos sauditas.
A Arábia Saudita também se irritou com o foco de Biden em acelerar a mudança de combustíveis fósseis para energia renovável, um processo que prejudicaria seu modelo de negócios. E em segundo plano está o esforço do governo americano para reviver o acordo nuclear com o Irã, que os sauditas temem que possa fortalecer seu inimigo regional.
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