Brasil e China lançam parceria alternativa à ‘Rota da Seda’ para evitar desgaste

Governo quer elevar a relação entre os países, busca se equilibrar para não melindrar EUA e pode até receber obras do megaprojeto de Pequim, sem aderir formalmente

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Foto do author Felipe Frazão

BRASÍLIA - Os governos do Brasil e da China lançam nesta quarta-feira, dia 20, uma parceria de investimentos elaborada sob medida para evitar desgastes geopolíticos e promover investimentos conjuntos em áreas-chave da economia brasileira. O plano comum foi elaborado como alternativa à nova Rota da Seda, como é chamada a Iniciativa Cinturão e Rota (Belt And Road Initiative), o principal mecanismo de inserção bilateral de Pequim no mundo e sua ponta de lança para a América Latina. Mais de 150 países fazem parte do acordo, que mobilizou US$ 2 trilhões em contratos para a construção de portos, rodovias e ferrovias. Da América do Sul, apenas Brasil, Colômbia e Paraguai não fazem parte do projeto.

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O anúncio dos detalhes será feito durante a visita de Estado do presidente da China, Xi Jinping, ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília, nesta quarta-feira, 20. Nos últimos meses, o governo brasileiro se viu num impasse diplomático. Aderir ou não do megaprojeto de infraestrutura chinês, lançado 11 anos atrás por Xi Jinping. A estratégia chinesa levou a US$ 1 trilhão em investimentos externos, conectando Ásia, África, Europa, Oriente Médio e América Latina. A nova Rota da Seda amplamente interpretada também como uma plataforma para ampliar influência geopolítica, sobretudo junto a países do Sul Global, embora Pequim negue esse objetivo.

Até o ano passado, 151 países haviam assinado acordos com a China para fazer parte da Belt And Road, segundo monitoramento do Green Finance & Development Center, da Universidade de Fudan, em Xangai. As obras envolvem ferrovias, portos, aeroportos, estradas - em geral intervenções de grande dimensão. Na semana passada, Xi Jinping inaugurou o megaporto de Chancay, no Peru, que poderá servir ao agro brasileiro se conectado a rotas de escoamento da produção no País.

O presidente chinês Xi Jinping desembarcou em Brasília na terça-feira, 19. Governos do Brasil e da China vão lançar uma parceria de investimentos alternativa à ‘Rota da Seda’ para evitar desgaste. Foto: Wagner Lopes

Dada a sensibilidade do tema, o governo Lula usou o termo “sinergia” com a China para não dizer que aderiu totalmente ao projeto. O Palácio do Planalto pretende estabelecer em conjunto quais projetos interessam e são prioritários ao Brasil. Embora não aceite assinar um memorando de ingresso, o governo Lula tampouco vai rechaçar por completo a Rota da Seda.

O assessor especial da Presidência da República, Celso Amorim, diz que o Brasil não vai “entrar ou sair” de um projeto pronto. “A gente quer a sinergia. Se para ter a sinergia eles têm que chamar de Cinturão e Rota não tem problema. O que interessa são os projetos que têm essa sinergia”, afirmou o ex-chanceler e principal conselheiro de Lula em questões geopolíticas. “A decisão está tomada de ter projetos estratégicos essenciais, de passar a parceria estratégia para uma nova fase, mais ampla. Se para os chineses inclui Belt and Road não temos problemas com isso. Eles dão o nome que quiserem”.

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Embora o governo não queira admitir um ingresso formal na nova Rota da Seda, hão há nenhuma restrição para Pequim dizer que o Brasil faz parte. Tampouco para os países lançarem projetos conjuntos típicos do projeto, sempre alardeados com propaganda grandiloquente pelos chineses.

Um embaixador envolvido nas negociações disse que o Brasil “vai participar da Rota da Seda com as suas condições, seus projetos e interesses, sem assinar um contrato de adesão”. Ele conversou com o Estadão na condição de não ter sua identidade revelada. Os chineses exigem a assinatura de um memorando de entendimentos de cada país ingressante na Rota da Seda.

China ou Estados Unidos, eis a questão

Uma das preocupações centrais da diplomacia brasileira é que uma adesão forma tiraria do Brasil a sua capacidade de se equilibrar entre China e EUA. O ingresso do País é um objetivo perseguido pela China desde 2013. Sempre especulou-se nos meios diplomáticos que consequências seriam a cobrança de fidelidade em pautas políticas, o que é considerado um risco.

Um embaixador ouvido sob anonimato explicou que “quanto mais você se aproxima da China, mais deixa de ter apoio em outros cantos. O Brasil precisa calibrar suas atitudes para não se desacreditar junto a países, mesmo os em desenvolvimento, como a Índia”. Trocando em miúdos, o Brasil não pode aderir a um megaprojeto que resultará em fidelidade política à China, às custas de perder independência. Evitar virar um peão manobrado pela China e perder a autonomia.

O embaixador negou, porém, que a decisão esteja influenciada pela vitória de Donald Trump nos EUA e o temor de uma linha ainda mais dura nas frentes de disputa com Pequim.

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Antes mesmo da eleição dos EUA, e de confirmar que não iria assinar o ingresso na Rota da Seda de maneira formal, a comitiva brasileira foi a Pequim e indicou parte de suas dificuldades.

Xi Jinping no Rio de Janeiro, durante o G-20. China deseja que Brasil integre a Rota da Seda. Foto: AP Photo/Eraldo Peres

Na visão da diplomacia brasileira, a adesão indicaria a submissão a critérios políticos da China e normas do acordo da Rota da Seda, que envolve até confidencialidade de contratos, o que não seria aceito legalmente no Brasil.

Além disso, o Brasil pede há anos - sem conseguir - apoio expresso de Pequim para ingressar no Conselho de Segurança das Nações Unidas com um assento permanente. Mais uma vez, embaixadores não esperam que a China ceda na visita de Xi. Na visão de um secretário do Itamaraty, “não adianta vender a alma” por uma vaga no Conselho, “virar um capacho” e abdicar de independência, seja em favor da China ou dos EUA.

Divisão no governo

Nos últimos meses, o presidente Lula encomendou estudos à sua equipe. Quatro ministros se envolveram diretamente: Rui Costa (Casa Civil), Mauro Vieira (Itamaraty), Fernando Haddad (Fazenda) e Geraldo Alckmin (Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), também vice-presidente e representante na Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN). Celso Amorim, o assessor-chefe da Assessoria Especial de Lula, foi figura central.

A situação no governo opunha alas. De um lado, Itamaraty e os ministros ligados à economia manifestavam resistências e indicavam que o País já recebia investimentos e se beneficiava da relação com a China. A ala mais política, ligada ao PT e ao Planalto, incentivava. Entre eles, a ex-presidente Dilma Rousseff, atualmente presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, sediado em Xangai. Ela se manifestou em favor da participação, dizendo que “todas as oportunidades deveriam ser aproveitadas”.

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Pessoas agitam bandeiras chinesa e brasileira enquanto esperam Xi Jinping, passar pela praia do Leblon durante a cúpula do G20. Foto: AP Photo/Bruna Prado

Já Celso Amorim “modulou” sua posição, segundo diplomatas. No ano passado, ele deu declarações que se chocavam com a posição do Itamaraty. Ele dizia não ver razão para deixar de ingressar na Rota da Seda, tampouco “dano político” na relação com os americanos.

Nos últimos meses, Lula empilhou declarações em sequência em favor do projeto chinês. “Não vamos fechar os olhos à Rota da Seda”, disse o presidente, na última delas, ponderando que deveria avaliar o que o País ganharia com isso.

A solução foi um meio termo. Antes, porém, o petista despachou duas missões ministeriais a Pequim. Alckmin foi à China em junho com uma delegação ampla, enquanto deputados como o líder do governo José Guimarães (PT-CE) já anunciavam que ele fecharia os termos da inclusão do Brasil no projeto. O vice negou na ocasião. No mês passado, Rui Costa voltou pela segunda vez neste ano à China. Ele foi designado por Lula para coordenar os projetos de interesse do Brasil e apresentá-los ao governo comunista.

Em janeiro deste ano, a visita do chanceler chinês Wang Yi a Brasília deu pistas do que viria. Ele propôs que os países buscassem unir os investimentos de projetos da nova Rota da Seda com os do novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

Segundo negociadores, o comunicado preparado para a visita de quarta-feira, em Brasília, será muito similar ao da visita de Lula a Pequim. E não deve registrar a adesão formal ao projeto. Naquele momento, os países disseram que seguiriam explorando a promoção de investimentos recíprocos e examinariam “sinergias” entre as políticas de desenvolvimento e os programas de investimento do Brasil, inclusive nos esforços da integração sul-americana, e as políticas de desenvolvimento e as iniciativas internacionais da China, entre elas a “Iniciativa do Cinturão e da Rota”.

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O Estadão apurou que também não havia uma posição comum no setor privado. O agronegócio nacional tem forte dependência das exportações à China. Outros segmentos temem uma concorrência desleal, mas há quem veja oportunidades de desenvolvimento tecnológico.

Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil. Em 2023, a corrente de comércio atingiu recorde de US$ 157,5 bilhões, com exportações totalizando US$ 104,3 bilhões e superávit brasileiro de US$ 51,1 bilhões. equivalente a cerca de 52% do superávit comercial total brasileiro. Os dados são do governo federal.

Já os investimentos chineses no Brasil atingiram US$ 73,3 bilhões, entre 2007 e 2023. O setor de eletricidade recebeu 45% do valor total, seguido por petróleo, com 30%, conforme estudo anual do Conselho Empresarial Brasil China.

Apesar disso, o Brasil busca modificar o perfil de sua relação com a China, essencialmente comercial, e voltada a commodities do agronegócio - com destaque para a soja, minério de ferro, petróleo, açúcar, carne, celulose, milho e aves. Quer colocar em pauta recursos para infraestrutura, como as rotas de interligação da América do Sul, do novo PAC e para os projetos de “reindustrialização”. Há interesse ainda nas cadeias de baterias e semicondutores.

Pressão de China e EUA

Desde a volta de Lula ao poder, cresceu a pressão dos dois lados sobre o País. Ao longo dos últimos dois anos, diplomatas, políticos, ministros e atores do setor privado debatem os os benefícios ou malefícios de uma adesão ao megaprojeto chinês, e os efeitos na relação com os Estados Unidos e Europa.

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Em janeiro, a embaixadora dos EUA no Brasil, Elizabeth Bagley, visitou o Itamaraty minutos depois que o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, concluía a recepção ao chanceler chinês Wang Yi. Ela ingressou no vão livre logo depois de Yi deixar o Palácio do Itamaraty.

Desde o ano passado, a administração Biden enviou funcionários de alto escalão com uma mensagem anti-China. Ao Estadão, o embaixador Brian A. Nichols, secretário-adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, afirmou que os investimentos chineses eram enganosos e levavam países a cair em uma “armadilha da dívida” - os projetos grandiosos dariam pouco retorno e gerariam dívidas com bancos e empresas chinesas envolvidas na obra.

Já a representante para o Comércio, Katherine Thai, difundiu semanas atrás que o governo Lula deveria “olhar para os riscos” com objetividade. Nos dois casos, a embaixada da China reagiu, por meio de nota, classificando os comentários dos americanos como “irresponsáveis”, “infundados” e “ridículos”.

Projetos discutidos

Existem ao menos 50 iniciativas bilaterais na mesa, que vão desde um novo satélite conjunto ao envio de um casal de pandas ao País, mas nem tudo ficará pronto agora. O Brasil quer investimentos de fundos chineses em infraestrutura, tecnologia e inteligência artificial.

Uma das linhas será no setor financeiro e deverá indicar abertura pra maior participação de capital chinês em apoio à estabilidade da macroeconomia brasileira, disse um diplomata familiarizado com as discussões.

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Presidente da República, Lula, durante cumprimentos aos lí­deres do G20, com Xi Jinping. Foto: Ricardo Stuckert/Ricardo Stuckert/Presidencia da Republica

O Brasil tentou amarrar a venda de 20 aviões comerciais da Embraer para companhias chinesas, mas não havia conseguido emplacar até a véspera do encontro. O acerto era esperado para a visita de Lula a Pequim, em abril de 2023, mas Xi Jinping não deu aval.

O Palácio do Planalto levou à China uma proposta para desenvolver combustível de aviação verde, o SAF. Houve indicações de interesse em rotas de transporte no País, que conectam o Brasil aos vizinhos sul-americanos, e também sugestão de alocação de recursos em um fundo brasileiro voltado à recuperação de pastagens degradadas.

Um integrante do governo envolvido na negociação disse que Lula vai realizar um “gesto inequívoco em favor da China”, mas tenta preservar o histórico não-alinhamento do País, em meio ao potencial recrudescimento da disputa econômica e geopolítica com os Estados Unidos.

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