Desde os anos 1970 a economia ajudou a pautar nosso ‘pragmatismo responsável’: são nossos interesses nacionais que devem balizar o nosso relacionamento com outras nações
O Estadão publicou recentemente na sua parte editorial um artigo que replica matéria do The Economist sobre a participação do Brasil no projeto da Belt and Road Initiative (BRI), a Nova Rota da Seda promovida pelo governo da China. Segundo a matéria, “uma eventual adesão pode até parecer bom negócio, mas é preciso ponderar se isso é realmente necessário, e se o custo geopolítico de um alinhamento desse tipo com a China não será alto demais.”
A questão é não somente oportuna, mas fundamental para balizarmos os grandes vetores da inserção do Brasil no processo de globalização que se está conformando neste século. Para tanto, é importante revisitarmos a história a fim de chegarmos a uma (qualquer) conclusão sobre qual destino a Belt and Road Initiative nos propiciaria.
Então recorramos a ela.
A este respeito, sabemos que, alimentada pelo comércio com o Ocidente através da Rota da Seda, a China imperial foi a principal economia do planeta até meados do século 19. Sôfrega por produtos – seda, especiarias, porcelanas, etc. – que de lá chegavam para referendar a opulência das suas elites, a Europa, com a Inglaterra à frente, não conseguia contrabalançar com a prata que partia das Américas a balança de comércio que lhe era profundamente deficitária. Diante disto, os ingleses decidiram promover o contrabando espúrio do ópio, tornando a China um “país de drogados”.
Confrontada com a resistência das autoridades do império chinês, a Corte de Saint James promoveu as duas chamadas Guerras do Ópio (1839-1842 e 1856-1860), que inauguraram um período extremamente conturbado, que os chineses chamam até hoje de “o século das humilhações”, uma das causas motrizes da emergência do ideário comunista e de todas as convulsões políticas que o país viveu ao longo do século passado. Até que, à morte de Mao Zedong, em 1976, Deng Xiaoping abriu o país para o exterior com a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZPE´s), rompendo o isolamento multissecular da China.
A partir de então as autoridades chinesas, com o Partido Comunista à frente, passaram a focar o desenvolvimento econômico como prioridade, sobretudo após a morte de Mao. Mantiveram, porém, os jargões comunistas – e a foto de Mao no muro da Cidade Proibida – como garantias de que o processo não descarrilaria.
Isto porque as raízes ancestrais confucionistas da sociedade chinesa condicionam o governante a observar o “Mandato do Céu”, ou seja, que atenda aos interesses da população, legitimando-o no poder.
Com a aceleração do processo de desconstrução do radicalismo maoísta (ainda que mantendo seus referenciais teóricos…), fruto da abertura e da crescente integração do país ao exterior e às cadeias mundiais de comércio, a partir do final dos anos 1970 – em 2020, a China foi o maior exportador do planeta (US $ 2,49 trilhões, ou 13,3% do total mundial) e o segundo maior importador, em 2019 ( US$ 2,06 trilhões) – ela decidiu se reinventar.
Dois vetores, principalmente, estruturaram os seus projetos de desenvolvimento e o seu espraiamento impressionante pelo mundo afora neste primeiro quartel de século, inclusive na América Latina: 1) a Nova Rota da Seda e 2) o Plano China 2025, através dos quais o Governo Central tem-se empenhado em “aggiornar” o país.
No XIV Plano Quinquenal da China, de 2015, ela estabeleceu um conjunto de metas destinadas a fortalecer a economia através do plano “Made in China 2025″, que priorizou dez setores de tecnologia de ponta que atualizarão, consolidarão e alavancarão a sua indústria, transformando a República Popular numa potência tecnológica – acreditam os chineses – capaz de influenciar padrões, cadeias de suprimento e de valor globais: a tecnologia 5G e os automóveis elétricos BYD são apenas alguns exemplos deste novo “status quo”.
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A segunda meta foi reconstruir a antiga Rota da Seda que fez a sua fortuna através dos séculos, interligando três continentes: a Ásia, a Europa e a África. Porém desta feita não mais no lombo dos camelos e nos navios que cruzavam o Oceano Índico, senão através de uma rede de sistemas tanto tecnológicos quanto empresariais e financeiros, lançando mão dos bilhões de dólares das reservas que ela acumulou nesse processo.
Aí chegamos à América Latina.
Segundo a Economist, “um dos projetos principais recentes é um grande porto em Chancay, no Peru, no qual a Cosco, maior empresa de transporte marítimo chinesa, vai investir em parceria com uma empresa peruana cerca de US$ 1,3 bilhão, para o desenvolvimento da infraestrutura portuária. Por ali devem ser escoados rumo à Ásia desde materiais para a transição energética, como o lítio, a alimentos e produtos industrializados. O objetivo é óbvio: encurtar em um terço o tempo médio que os produtos da região levam para chegar ao Oriente”.
A reportagem anota ainda que um dos objetivos paralelos é manter a região, sobretudo a América do Sul, como um dos vetores para o incremento do seu comércio mundial. Este cresceu, na região, de US$ 18 bilhões, em 2002, para US$ 450 bilhões, em 2022!
Comércio
Desta forma, a RPC já superou os EUA como o principal parceiro comercial de Brasil, Chile, Peru, entre outros países. Só no Peru os chineses investiram cerca de US$ 24 bilhões nos setores de mineração, energia e transportes. Entretanto, no caso da América Central e do México, a sua presença sofre a concorrência da política do nearshoring americano.
E chegamos ao Brasil. E à pergunta que não quer se calar: nos interessa integrar a BRI – e para tanto algumas empresas chinesas instaladas no nosso solo estão concentrando seus investimentos em portos e rodovias – e aderirmos a este processo, com seus bônus e os seus ônus? Constituiria isto, em definitivo, uma real “ameaça”, tanto política quanto territorial, como acredita parte radical da nossa população?
Um destes paradigmas estratificados são os fatores ideológicos envolvidos num processo de “aliciamento” pelos comunistas. Neste ponto, lanço mão da minha experiência de campo na China e nos vários países asiáticos nos quais servi ao longo dos meus 16 anos na Ásia: não notei neste tempo todo de convívio, nem na China e nem com os temas chineses, qualquer empenho de Pequim em “converter” outros governos ao seu credo. A ela interessam as questões econômicas e comerciais.
Vejo, na contracorrente, temor de alguns de nós, brasileiros, de sermos abduzidos pelo “comunismo chinês”. Embora seja cada vez mais difícil para mim entender o que seja “comunismo” no país que abriga o maior número de bilionários do planeta.
Distopia ideológica? Ameaça real? Quais seriam as vantagens e as desvantagens dessa ameaça de “contaminação” por valores que, no fundo, no fundo, são estranhos à nossa cultura?
Recorro sempre à nossa história recente, quando, em 1974, em pleno governo Geisel, o Brasil militar transferiu o reconhecimento do país “China”, de Taiwan para o Continente, e foi o primeiro país a reconhecer o governo marxista de Agostinho Neto em Angola. Nossos interesses, comerciais, sobretudo, nos mostraram esse caminho. O título que se deu a essa política foi “pragmatismo responsável”, cunhado pelo maior chanceler brasileiro no século passado: Antonio Azeredo da Silveira! Ou, mimetizando Deng Xiaoping – sim, ele mesmo, chinês comunista: “não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos”. Coincidíamos, então.
Corolário: São os nossos interesses nacionais que devem balizar o nosso relacionamento com outras nações, “as simple as that: It´s the economy, stupid”…
Mantemos a nossa integridade política e civilizacional e nos lançamos na aventura universal.
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