Lia Balby Sztutman, de 21 anos, gosta de muitas coisas da Inglaterra, como por exemplo da série Downton Abbey, dos Beatles e do Queen (a banda). Já da família real ela não é muito fã. Uma coincidência, no entanto, a colocará em Londres na próxima sexta-feira, 5, véspera da coroação do Rei Charles III.
Com isso, o roteiro turístico que ela planejava curtir com a família, focado na cultura pop britânica, sofrerá um pequeno adaptação, mesmo que ninguém em sua casa morra de amores pelo novo monarca. “Seria como ir a Roma e não ver o papa”, explica.
Ela e os pais se programaram para assistir a coroação à distância, numa espécie de curiosidade pelo evento em si e pelas pessoas que se entusiasmam em participar. Mesmo que não quisessem, seria praticamente impossível fazer outra coisa no dia. Será feriado no Reino Unido, as ruas estarão fechadas para a procissão da realeza britânica e a coroação vai ser transmitida nas principais mídias, incluindo redes sociais. E, afinal de contas, trata-se de um evento realizado pela última vez sete décadas atrás.
A data foi escolhida a partir da disponibilidade da família e o motivo foi simplesmente fazerem uma viagem juntos a um lugar querido pela mãe de Lia. A primeira reação ao perceber a coincidência com a coroação, no entanto, foi de lamento. “Minha mãe disse: ‘Ah, não! A cidade vai estar cheia de gente e os hotéis estarão caros’”, contou a jovem. Mas isso logo mudou. “Daí a gente decidiu fazer festa. A gente gosta muito de enfiar nos lugares e entender os movimentos, sabe? Vamos fazer um piquenique em algum parque próximo e olhar de longe.”
Turismo monárquico
A coroação ocorre em meio a um debate sobre a relação custo-benefício do turismo monárquico no Reino Unido. “A coroação trará uma bonança turística para o Reino Unido ou afastará as pessoas?”, perguntou o jornal britânico The Guardian em reportagem publicada no dia 21 de abril. Entre muitos fatores, a reportagem centra na questão sobre os custos da monarquia e o retorno que ela traz no turismo – um argumento que costuma ser utilizado para justificar os gastos públicos com a realeza, mas difícil de se comprovar.
Ao contrário, grandes eventos reais podem afastar turistas de Londres, segundo a Visit Britain, instituição britânica que cuida do turismo. E uma das causas para isso é, como revela o lamento da mãe de Lia, o aumento dos preços de hotéis, pubs e restaurantes, agravado neste momento pelos riscos de uma recessão global e pelo aumento do custo de vida causado pela covid-19 e pela guerra na Ucrânia.
A Coroação de Charles III
Foi o que ocorreu casamento do príncipe William e Kate Middleton em 2011, quando a monarca era a popular rainha Elizabeth II. Os turistas não apareceram.
Mais de uma década depois, o novo grande evento da família real reúne uma figura com uma popularidade menor e mais distante dos britânicos que a rainha Elizabeth II ou o príncipe William. Além disso, a coroação de Charles III ocorre em um momento em que o mundo questiona mais fortemente a herança da monarquia, marcada por um passado colonial.
Lia, estudante de geografia, e seus pais, também geógrafos, sabem dessa herança. “A gente não admira a monarquia. Sabemos o que fizeram na história. Minha mãe chamou o Charles de ‘boneco real’ e disse que uma amiga inglesa se refere assim a ele. Então, nem mesmo eles têm tanta admiração assim hoje em dia”, declarou.
Apatia real
Uma pesquisa feita pela empresa YouGov identificou que a maioria dos britânicos está indiferente à coroação. A apatia é maior entre os jovens, com 75% dos jovens de 18 a 24 anos respondendo não se importam “muito” ou “nem um pouco” com o evento.
No Brasil, duas empresas de viagens, CVC e Hurb, disseram que não houve grande variação na quantidade de clientes que estarão em Londres na data da coroação quando comparado a outros eventos marcantes. No Hurb, por exemplo, o número de brasileiros que viajaram para a capital inglesa em períodos regulares (férias de início e meio de ano) é 71% maior que o número de viajantes para a data da coroação. (A empresa não divulga o número exato de viajantes.)
Apesar de não ser determinante, a monarquia permanece um atrativo turístico do Reino Unido. Uma pesquisa encomendada pela Visit Britain no ano passado estima que a história e o patrimônio são os maiores motivos alegados pelo público do Brasil para ir à Inglaterra. Em contrapartida, os brasileiros costumam escolher o país dentro de uma rota que inclui outras nações da região britânica e da Europa.
Projeção cultural
Um evento específico, como a coroação, pode não atrair de imediato uma quantidade de turistas que corresponda aos gastos feitos, mas reforça e espalha a imagem da nação pelo mundo. “É uma oportunidade fantástica de destacar nossas atrações de renome mundial, nossas culturas e heranças e as experiências únicas que existem aqui”, declarou a diretora da Visit Britain, Patricia Yates.
No último século, a imagem da rainha Elizabeth II se tornou conhecida ao redor do mundo e foi cultuada na cultura pop, preenchendo de uma forma ou de outra um largo espaço nos jornais, no cinema, na música, na televisão. A rainha se tornou símbolo até mesmo na contracultura, com uma das músicas mais conhecidas do movimento punk, God Save The Queen, do Sex Pistols, sendo uma referência direta a ela. O próprio nome da banda liderada por Freddy Mercure e Brian May não deixa de ser uma referência à rainha.
A relação de Lia com o Reino Unido se estabelece mais fortemente a partir da música. Além de estudante de geografia, Lia é produtora musical, multi-instrumentista e tem seu próprio trabalho artístico. Mas, criada em São Paulo e sem nunca ter ido ao Reino Unido até esta semana, ela conhece o rosto da rainha desde sempre. É uma imagem que remete a Inglaterra assim como os Beatles, o Freddie Mercury e as cabines telefônicas vermelhas em miniatura espalhadas pelo apartamento onde mora, souvenirs de viagens anteriores da mãe ao país. “São símbolos da Inglaterra. Eu era muito mais ligada aos Beatles, a música, do que a essa questão da realeza, mas está tudo ligado”, disse.
Dificilmente um brasileiro viaja ao Reino Unido exclusivamente por causa da monarquia, avalia a Visit Britain. Como Lia, costumam incluir no roteiro outros aspectos do país no roteiro, como os cenários de castelos e casas senhoriais; referências em torno de nomes da música já citados; antigas casas e rotas de escritores, como Shakespeare e Tolkien; e até o futebol, com o Campeonato Inglês consolidado como um dos mais populares do mundo. Os brasileiros são os maiores responsáveis pelos voos da América do Sul para a Grã-Betanha, mas por diversas razões.
Mas isso não impede que os brasileiros que estejam na capital britânica aproveitem o dia 6 como um dia único por toda simbologia que carrega no Reino Unido, sejam estes admiradores ou críticos. “É uma coincidência, mas no fim estou muito animada”, concluiu Lia.
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