THE NEW YORK TIMES - Poucas cidades têm sido tão apanhadas entre a esperança e a história quanto Derry, local de nascimento do conflito moderno na Irlanda do Norte, mas também cenário da Derry Girls, a exuberante série da TV britânica que narra as vidas de cinco adolescentes durante o fim do sangrento período do fim dos anos 90 conhecido comumente como The Troubles.
Mas agora, após quase 25 anos de paz, os moradores de Derry se preocupam com a possibilidade de ganhos conquistados a duras penas estarem em perigo. O Brexit perturbou o frágil equilíbrio político e econômico da Irlanda do Norte, enquanto o governo britânico parece determinado em manter com firmeza os Troubles e seu legado de violência sectária no passado.
Dois sombrios rituais ocorridos na semana passada – com um dia de diferença e em lados opostos do Rio Foyle, que divide a segunda maior cidade da Irlanda do Norte – serviram para ilustrar tanto o angustiante passado de Derry quando seu conturbado futuro.
Dentro dos muros de pedra da cidade, erguidos no século 17, Amanda Fullerton juntou-se às famílias de vítimas que acusam o governo britânico de encerrar investigações sobre assassinatos ocorridos durante a guerra de guerrilha entre nacionalistas católicos e unionistas protestantes. O pai dela, Eddie Fullerton, foi morto a tiros por membros de um grupo paramilitar legalista (protestante) em 1991.
No dia seguinte, uma banda legalista de flauta e tambor marchou no bairro protestante de Waterside, para marcar os 31 anos do assassinato de Cecil McKnight, um ex-comandante paramilitar. O Exército Republicano Irlandês, ou IRA, afirmou que escolheu McKnight para vingar a morte de Fullerton.
Paixões inflamadas
O Brexit inflamou paixões em muitos desses bairros legalistas e unionistas – favoráveis à permanência no Reino Unido – porque foram necessários complexos arranjos comerciais com a União Europeia que, afirmam os unionistas, levantaram um muro entre a Irlanda do Norte e Inglaterra, Escócia e Gales.
“Homens de negócios sempre encontrarão maneiras de fazer negócios”, afirmou Jim Roddy, diretor da City Centre Initiative de Derry, cidade que também é chamada de Londonderry pelos unionistas. “Mas mexa com a identidade das pessoas e você vai ver algo incontrolável. A questão da identidade é algo muito mais arraigado.”
Ex-bombeiro e diretor do clube de futebol de Derry, Roddy, de 62 anos, negociou com grupos de ambos os lados para evitar que rituais como paradas e fogueiras acabem em violência. Ainda que o registro de reuniões públicas pacíficas em Derry seja bom, ele afirmou temer que as ações mais recentes do Reino Unido possam inflamar antigas animosidades.
As questões identitárias também estão sendo agravadas pela chamada lei do legado, proposta pelo primeiro-ministro Boris Johnson, mas de maneira diferente. Destinada a acertar as contas de milhares de assassinatos não solucionados durante as três décadas do conflito, a legislação pretende garantir imunidade a pessoas que cooperarem com investigações conduzidas por uma nova Comissão Independente para Reconciliação e Recuperação da Memória.
Mas isso não resultaria em nenhuma nova investigação criminal relacionada aos assassinatos, o que provocou forte oposição de famílias de vítimas de ambos os lados. Elas argumentam que isso as privaria de justiça, especialmente nos casos em que as forças de segurança britânicas ou a polícia agiram em conluio com organizações paramilitares.
“Somos as vozes dos nossos pais – e não seremos silenciadas”, afirmou Phyllis Kealey, cujo pai, Sean Dalton, foi morto em 1988 por uma bomba plantada pelo IRA. A família Dalton acredita há muito tempo que a polícia sabia que explosivos haviam sido instalados na casa em que seu pai foi assassinado e não fez nada para evitar sua morte.
Risco de tensões
Ainda que a lei, que o governo espera aprovar este ano, afete um grupo muito menor de pessoas do que as regras pós-Brexit, ela é mais fácil de entender e, portanto, mais capaz de desencadear tensões.
Uma pequena multidão se reuniu na semana passada perto do Guildhall de Derry para ouvir as famílias das vítimas recontarem suas histórias, ostentando um cartaz que dizia, “Não ao acobertamento do governo britânico”.
O debate a respeito dos assassinatos não desvendados assombra particularmente a polícia, que ainda é vista com profundo ressentimento em Derry por grande parte do público. Para Marty Reid, superintendente da polícia da cidade, superar as desconfianças sobre a legislação é o maior obstáculo para a recuperação da imagem do departamento.
“O tema do legado é claramente uma questão que causa muita dor para várias pessoas”, afirmou Reid. “É certamente importante, então, que nosso policiamento atue com sensibilidade, independentemente das decisões em Westminster.”
Para os ativistas na cidade, a legislação sobre o conflito e as regras comerciais, conhecidas como protocolo norte-irlandês, representam limitações a uma publicidade que enfatiza a população jovem de Derry, habitações acessíveis e a boa localização da cidade, que permite acesso irrestrito tanto ao mercado britânico quanto ao mercado europeu.
“Esta cidade poderia ser uma das joias da Europa”, afirmou John Kelpie, diretor executivo da câmara distrital de Derry e da vizinha Strabane. “Estamos diante de uma oportunidade de ouro e possivelmente a desperdiçaremos de antemão.”
Nem ele nem ninguém prevê o retorno da horripilante violência que assolou Derry em 1969, marcando o início da era moderna do conflito norte-irlandês. Em 1972, o Exército britânico matou 13 nacionalistas desarmados, em um incidente conhecido como “Domingo Sangrento”, que se tornou um dos episódios mais infames do conflito.
Mas grupos paramilitares como o Novo IRA, o Exército Republicano Irlandês, e a Associação de Defesa do Ulster ainda atuam nos bairros de Derry, principalmente no comércio de drogas, segundo Reid. A banda que tocou em memória a McKnight ostentou uma bandeira com o brasão da Associação de Defesa do Ulster.
“Com esses grupos por aí, sempre existe um risco de as coisas se complicarem”, afirmou Peter Sheridan, ex-chefe-assistente do Serviço Policial da Irlanda do Norte, anteriormente conhecido como Força Policial Real do Ulster. “O sectarismo está vivo e prospera por aqui, e isso é o que gera a violência.”
Alguns argumentam que a pandemia de coronavírus agravou as tensões, pois os meses de lockdowns na Irlanda do Norte criaram bolhas nas quais as pessoas conversaram somente com parentes e vizinhos.
E visitar os bairros de Derry revela uma estranha combinação entre lealdades a clãs e tolerância cívica. Mark Logan, de 40 anos, assistiu a parada protestante da esquina em que fica seu estúdio de tatuagem, ao lado da casa onde cresceu. McKnight, contou ele, vivia no fim da rua.
Apesar de Logan afirmar que tem uma vaga impressão de que o protocolo norte-irlandês está complicando sua capacidade de comprar tintas para suas tatuagens, ele confessou que não tem muita noção de como o mecanismo funciona. De nenhuma maneira, afirmou ele, isso deveria fazer retroceder os desdobramentos positivos que transformaram Derry desde o Acordo de Belfast, de 1998, que pôs fim ao conflito.
“Há algum foco de ressentimento e comportamento antissocial aqui ou ali”, afirmou Logan. “Mas Derry tem feito um belo trabalho em superar seu passado.”
Na mesma rua, empreendedores imobiliários estão transformando o local que abrigou uma antiga base militar britânica, no passado repleta de armas apontadas para o lado oposto do Rio Foyle, em um efervescente complexo – com cervejaria artesanal, hotel de luxo e escritórios de startups de tecnologia. Os cidadãos locais agora saboreiam suas cervejas admirando as suaves curvas da Ponte da Paz, que atravessa o rio conectando as comunidades de Derry que se antagonizavam no passado.
Damian Heron, um empreendedor imobiliário local, construiu uma reluzente torre de escritórios no complexo e planeja erguer outra bem ao lado da primeira. O baixo valor dos aluguéis em Derry, em comparação a Dublin e Londres, atraiu firmas financeiras como a Axa e gigantes da tecnologia como a Fujitsu.
Checagens nas fronteiras
Heron afirmou que menos de 5% dos negócios são prejudicados genuinamente pelo protocolo, que requer checagens de fronteira sobre mercadorias enviadas à Irlanda do Norte de outras partes do Reino Unido (isso é necessário para evitar o ressurgimento da fronteira física entre o Norte e a República da Irlanda, que é integrante da União Europeia).
“Há uma agenda política e uma agenda econômica”, afirmou Heron. “Os políticos querem colocá-las no mesmo compasso.”
Série
Nada colaborou mais para a transformação da imagem de Derry do que a série Derry Girls, uma comédia leve, e com frequência tocante que relata as vidas de cinco adolescentes – quatro garotas e um garoto – que vivem em um mundo repleto de preocupações juvenis ao mesmo tempo que seu ônibus escolar pode ser destruído por alguma bomba plantada na ponte. A criadora da série, Lisa McGee, nascida em Derry, se baseou em experiências próprias e nas vidas de seus amigos.
Aisling Gallagher, amiga próxima de McGee, afirmou que a série narra de maneira precisa como o conflito ressoava no pano de fundo mesmo enquanto os adolescentes “seguiam com seu estilo de vida”. Mas ao contrário do que poderia se esperar, afirmou ela, essa busca pela normalidade apenas se aprofundou nas décadas posteriores ao Acordo de Belfast.
“Muita gente simplesmente não aguenta mais a política”, afirmou Gallagher, de 41 anos, que é funcionária do município. “As pessoas não dão atenção, a não ser que algo vá afetá-las diretamente. Queremos apenas dar umas risadas e ficar de boa”, afirmou. TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.