Bukele expande autoritarismo em El Salvador com enfraquecimento do legislativo e cerco à imprensa

Presidente inicia segundo mandato com controle total do Estado em nome de combate às gangues; apesar do sucesso na segurança pública, economia cambaleante é desafio

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Foto do author Luiz Henrique Gomes
Atualização:

ENVIADO ESPECIAL A SAN SALVADOR – Como está a vida em El Salvador? “Na segurança, um milagre, mas o dinheiro está pouco”, foi recorrente ouvir nos arredores da Praça Gerardo Barrios, centro histórico de San Salvador, em maio.

Um mês depois, no mesmo local, o presidente Nayib Bukele apareceu vestindo trajes napoleônicos com adornos dourados e um forte aparato de segurança para a cerimônia de seu segundo mandato. No discurso feito da sacada do Palácio Nacional, Bukele escolheu a economia como seu próximo desafio. “O mundo inteiro colocou os olhos em El Salvador, tão grande foram os resultados. Podemos fazer o mesmo, mas agora com a economia”, disse.

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A cerimônia foi a demonstração de poder absoluto que Bukele conquistou após chegar à presidência. Sua popularidade foi alçada às alturas depois da guerra contra as pandillas, as gangues que atormentavam a população salvadorenha e aterrorizavam o país. As políticas de Bukele, apesar de controvertidas por prisões em massa e às vezes sem critérios, desrespeitando direitos civis, desmontaram o controle desses grupos no país.

Bukele capitalizou na política suas vitórias no campo da segurança. Ignorou a Constituição, que proíbe a reeleição direta, e se candidatou para continuar na presidência com a permissão dada pela Corte Constitucional nomeada por ele. Nas eleições de fevereiro, foi reeleito com 82% e seu partido, o Nuevas Ideas, ganhou 54 das 60 vagas de deputados na Assembleia (se contar com aliados de outros partidos, sua base de apoio cresce para 58).

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O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, e sua esposa Gabriela de Bukele chegam para a cerimônia de posse para um segundo mandato, em El Salvador, em 1º de junho de 2024 Foto: Jose Cabezas/Reuters

Para isso, os esforços de Bukele se voltaram ao combate às maras (termo usado em El Salvador e nos países vizinhos para se referir às gangues urbanas) e na concentração de poder. O presidente aumentou o controle sobre os três poderes do Estado, militarizou as ruas, suspendeu os direitos constitucionais com o regime de exceção que dura dois anos e calou as vozes críticas e a oposição.

Com uma máquina de propaganda construída nas redes sociais e no culto à personalidade, o político, um publicitário de formação, construiu sua imagem semelhante a de um herói, alguém capaz de realizar um milagre.

Mas o discurso de Bukele em sua posse mostra que ele sabe ter o seu calcanhar de Aquiles: a economia claudicante. “Aqui não tem emprego e as coisas estão ficando mais caras”, contou a vendedora de frutas Lisseth Martínez, de 34 anos e mãe de três filhos. Lisseth hoje vende frutas nas ruas do centro histórico por causa do fechamento para reformas do mercado público em que ela trabalhava.

Ela se queixa da dificuldade para sobreviver e do ordenamento da área feito pela prefeitura de San Salvador a partir da gestão municipal de Bukele (2015-2019), que passou a proibir a presença de vendedores nas ruas. Mas só começa a contar quando descobre que está conversando com um repórter de um jornal brasileiro. “Só assim o governo não vai ver que estou falando mal e me prender”, disse, revelando um temor comum em um país onde provas não são necessárias para enviar alguém à prisão.

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A salvadorenha Lisseth Martínez, no centro histórico de San Salvador, em 10 de maio. Lisseth diz que segurança no país é um 'milagre', mas reclama de dificuldades econômicas Foto: Luiz Henrique Gomes / Estadão

Economia pode pôr em risco êxitos do primeiro mandato

O segundo desafio de Bukele, a economia, é, para muitos especialistas em segurança pública, aspecto fundamental para a redução da violência em médio e longo prazo. “Existe uma relação muito forte entre violência e desigualdade econômica. Áreas mais desiguais são mais violentas, e isso é um fenômeno que se vê em toda a América Latina e o Caribe”, disse o cientista político e co-fundador do Instituto Igarapé, Robert Muggah.

A relação é comprovada em relatórios de instituições como a ONU e pesquisas científicas e ajuda a compreender por que a América Latina e o Caribe são as regiões mais violenta do mundo. “No passado, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) diagnosticou níveis crescentes de violência e insegurança na região como produto da falta de crescimento inclusivo e estagnação da mobilidade social”, destaca um relatório da ONU em 2021 sobre o tema. “(Isso) desencadeou desigualdades persistentes e precariedade de emprego”.

El Salvador é um dos países mais pobres e desiguais da América Latina. De acordo com o Banco Mundial, o país tem o 5º pior PIB per capita da região e 1,8 milhão de cidadãos – 28,4% da população – vivem na pobreza, sem acesso adequado a comida. Nas zonas urbanas pobres, o acesso à água e a energia é precário e não há saneamento. O transporte público é formado por ônibus antigos, a maioria enviada pelos Estados Unidos após servirem de ônibus escolares, e tem uma frota pequena. Nas zonas rurais, a produção é minúscula.

Ruas de San Salvador, capital de El Salvador, em imagem do dia 8 de maio. País tem infraestrutura precária e economia é novo desafio de Bukele Foto: Luiz Henrique Gomes/Estadão

Enquanto isso, o governo tem pouca capacidade de investimento. Com os gastos durante a pandemia de covid-19 e no combate às pandillas, El Salvador chegou a um endividamento de 79% do PIB em 2022, segundo dados do Banco Central.

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Os planos econômicos do presidente nos primeiros quatro anos se resumiram à adoção do bitcoin como moeda oficial em 2021, com a ideia de que os cidadãos a usassem para pagar de imóveis à comida de rua. No entanto, três anos depois o bitcoin segue à margem da economia e causa desconfiança nas instituições financeiras pela falta de transparência, apesar de atrair investimento estrangeiro. Diversos investidores têm ido para o país por causa do ativo digital e incentivados pela segurança.

O efeito desse movimento de estrangeiros é o encarecimento de serviços, que não se reflete no crescimento da renda da maioria dos salvadorenhos. “Está caro viver, as pessoas ainda pensam em migrar para os EUA por causa disso”, disse o motorista de uber Josué Benjamin.

Historicamente, a pobreza é a maior razão para os salvadorenhos migrarem. O país tem a maior comunidade de imigrantes centro-americanos nos Estados Unidos, com cerca de 2,1 milhões de pessoas, e as remessas de dinheiro para os parentes que ficaram correspondem a 24% do PIB, de acordo com o Conselho Monetário da América Central.

Na análise de Robert Muggah, sem a resolução desses problemas estruturais, dificilmente a política de militarização e encarceramento em massa vai ser suficiente para manter a segurança do país. “Essa política não é nova na região. Em todos os lugares que foi implementada, ela falhou. A violência sempre retorna com uma reação mais forte”, declarou.

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Isso põe em xeque os êxitos de Bukele no futuro, e a dúvida é a de como ele reagiria para manter uma imagem tão popular. Das vezes em que foi contrariado nos primeiros quatro anos, a reação foi de chamar os que se opõem a ele de “inimigos da pátria” e usar o aparato estatal para intimidar as vozes críticas.

Propaganda, reformas e repressão: as estratégias de Bukele

A jornalista Carolina Amaya, de 43 anos, especializada em investigações na área ambiental e idealizadora do projeto Mala Yerba, publicou no dia 23 de abril de 2023 uma reportagem para denunciar que o Ministério do Meio Ambiente de El Salvador deixou impune uma empresa privada que descumpria licenças ambientais na construção de um empreendimento residencial em uma área protegida, conhecida como Cerro Afate. No mesmo dia, seu pai, um agricultor e veterano das Forças Armadas, de 62 anos, foi preso por militares.

Benjamin Amaya permaneceu na cadeia durante dez meses acusado de ter associação com organizações ilícitas – a mesma justificativa utilizada contra 80 mil pessoas acusadas de serem pandilleras (membros de gangues)até ser solto por falta de provas. Durante esse período, foi transferido para diferentes prisões e Carolina não conseguiu encontrá-lo. A cada tentativa, sentia-se culpada pela detenção e tinha mais certeza de que se tratava de uma intimidação contra a sua investigação. “Se não te prendem, prendem o lado mais fraco que está perto de você”, disse.

O uso do aparato estatal para silenciar vozes críticas ao governo está documentado nos relatórios da Anistia Internacional e da Humans Right Watch divulgados este ano. Além de prisões arbitrárias, os métodos incluem intimidação e difamação nas redes sociais, vigilância excessiva e espionagem.

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Estátua da Praça Gerardo Barrios, em San Salvador. Atrás, a biblioteca pública do país: ruas menos violentas, mas economia cambaleando Foto: Luiz Henrique Gomes / Estadão

Na Assembleia, os deputados têm implementado outras medidas que contribuem para o uso do aparato estatal para servir exclusivamente a Bukele. No fim de abril, por exemplo, alteraram a Constituição para facilitar futuras mudanças que o governo desejar. E no ano passado, a menos de um ano da eleição, reduziram o número de municípios do país, o que diminuiu o número de cadeiras legislativas de 85 para 60 deputados.

O efeito dessa última medida, segundo a organização Escritório de Washington para a América Latina (Wola), foi limitar o poder de locais em que o presidente não tinha uma aprovação pública tão alta. “Ao reduzir o número de deputados e municípios, Bukele limita o poder de administrações em que não tem tanta aprovação pública e funde a distritos onde o seu partido Nuevas Ideas tem mais apoio, dando a impressão que todo o país o apoia”, afirmou a organização.

A impressão de apoio total é reforçada pela propaganda estatal, notabilizada pelas frases de efeito de Bukele – em uma delas, intitulou-se “el dictador más cool del mundo” – e o uso eficaz para se comunicar dentro e fora de El Salvador. Foi, por exemplo, com as imagens do Centro de Confinamento Contra o Terrorismo (Cecot), uma cadeia com capacidade para 40 mil detentos construída durante o seu governo, que a guerra contra os pandilleros ganhou fama internacional. Elas mostram milhares de homens com tatuagens em todo o corpo, curvados e reunidos em alas da prisão enquanto são inspecionados pelos guardas.

A propaganda também está presente nas ruas do país, seja em estampas de camisas vendidas no centro histórico ou nos souvenires com o rosto de Bukele. Por detrás dela, no entanto, Bukele evita dar entrevistas e detalhar seus planos. Não se sabe, por exemplo, o que ele pretende realizar na economia nos próximos quatro anos. No discurso de posse, ele apenas citou que seriam necessários “remédios amargos”. E então, para não deixar margens sobre o que espera dos salvadorenhos ante essa medicina, pediu lealdade ao seu projeto político. “O paciente deve seguir as instruções, não deve hesitar”, declarou em seguida.

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