Eufórico e cercado de militantes, com o carisma de uma estrela de rock, Javier Milei teve na última segunda-feira, 7, seu último banho de multidões antes das Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso) na Argentina. Vestido de camisa social, gravata azul e uma comprida jaqueta de couro, o líder e fundador do movimento A Liberdade Avança — um dos favoritos na disputa pela presidência do país — caminhou lentamente entre o público, exaltado, abraçando as massas até o palco do Movistar Arena, em Buenos Aires, onde lançou duras críticas contra os adversários políticos e a que diz ser sua principal inimiga: “la casta”, a elite argentina.
“Que todos vão embora, que não reste nenhum”, cantou Milei junto com as mais de 10 mil pessoas que lotaram o estádio mais moderno da capital argentina, fazendo referência a um famoso slogan que surgiu em dezembro de 2001 no país, durante protestos populares antissistemas que estouraram com a profunda recessão econômica da época. Naquele ano, a Argentina mudou cinco vezes de presidente em 12 dias. “Passaram [pelo governo] peronistas, radicais, militares e um monte de outros grupos com o único objetivo de ter poder para enriquecer às nossas custas”, exclamou o político. “Hoje temos uma nova oportunidade, e não quero ser trágico, mas pode ser a última”, afirmou depois.
Nos últimos dois anos, Javier Milei passou de economista-chefe de um grande conglomerado argentino (Corporación América) a uma figura fixa nos debates políticos mais caricatos da televisão nacional. Até eventualmente se tornar o rosto de um movimento que, nascido do inconformismo e recente apatia política dos argentinos, ganhou suficiente espaço no debate público para sacudir a campanha eleitoral e gerar preocupação tanto no oficialismo quanto na oposição tradicional.
Contudo, a poucos dias das eleições primárias e após uma série de acusações que colocaram seu partido no centro de um suposto esquema de venda de cargos, a campanha de Milei despenca nas pesquisas eleitorais, enquanto a de Patricia Bullrich — um dos nomes mais fortes da coalizão de direita Juntos por el Cambio — desponta.
A busca pela mudança
Pesquisas publicadas nas últimas semanas pela CB Consultora Opinión Pública apresentaram um cenário favorável à oposição, mas as intenções de voto deixam a coalizão de Milei isolada no terceiro lugar, enquanto a Juntos por el Cambio terá de escolher entre a centro-direita considerada mais “moderada” de Horacio Rodríguez Larreta, e a centro-direita que busca transformações mais rápidas, representada por Patricia Bullrich.
Em segundo lugar está a coalizão peronista Unión por la Pátria, ligada à atual esquerda que governa o país. Enfraquecida por causa das sucessivas crises, econômica e política, tem como grande favorito o atual ministro da Economia, Sérgio Massa.
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Nenhum dos candidatos às Paso supera 25% das intenções de voto, e estima-se que cerca do 10% das pessoas ainda não decidiram em quem votar. Nas províncias, o desencanto com a política é mais claro. De acordo com as autoridades eleitorais, quase cinco milhões e meio de pessoas optaram por não votar nas eleições provinciais realizadas até o momento.
“Na Argentina, a população está vivendo um processo estranho de apatia política, de insatisfação generalizada com a forma em que as coisas vêm ocorrendo. Nenhuma alternativa dos últimos anos deu muito certo no país e, para muitas pessoas, os políticos tradicionais apenas oferecem mais do mesmo. É essa insatisfação que gera um candidato considerado ‘outsider’, como Milei”, disse em entrevista ao Estadão Carlos De Angelis, professor de Sociologia da Opinião Pública da Universidade de Buenos Aires.
“Mas sua estética, sua personalidade, seus gritos, tudo isso preocupa uma grande parcela da população, que quer uma mudança, claro, mas sem radicalismo”, comentou De Angelis. “À medida que a oposição tradicional consolida um nome forte para a disputa [eleitoral], a plataforma de Milei perde protagonismo”.
Lourdes Puente, cientista política e Diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina (UCA), acredita que nas eleições de domingo vai prevalecer um cenário de fragmentação da opinião, que pode favorecer à renovação do poder público.
“As disputas internas nas Paso vão determinar a mudança que ocorrerá nas coalizões após o processo eleitoral, a mudança na conjuntura política da Argentina. Nestas eleições há grandes incertezas, mas a troca do controle da Casa Rosada tem se tornado um cenário cada vez mais plausível”, disse ao Estadão
“A rivalidade entre Bullrich e Larreta na coalizão Juntos por el Cambio vai ter certamente um maior peso nas primárias deste domingo. A escolha do nome da oposição que enfrentará o peronismo em outubro, entre dois políticos de base similar, mas visão diferente, pode mudar os rumos do processo eleitoral”, afirmou a cientista política.
Crise na Argentina
Crise econômica e aumento da criminalidade podem definir as Paso
Para Carlos Fara, consultor político argentino especializado em opinião pública, campanhas eleitorais e comunicação, a campanha para as Paso ficou até agora refém do único assunto que paira invariavelmente em todas as esferas públicas do país: a crise econômica. Na Argentina, quase 40% da população vive na faixa da pobreza, a inflação atingiu recentemente o recorde de 115% ao ano, o peso vale cada dia menos e as reservas soberanas estão esvaziadas — mas os políticos não têm oferecido soluções claras para saída da recessão.
“Em um contexto econômico e social tão negativo, as eleições deste ano na Argentina podem gerar uma mudança no governo. O peronismo não conseguiu solucionar os principais problemas da nação nesses últimos anos, e isso favorece muito a oposição”, afirmou Fara em entrevista ao Estadão.
Um dos problemas que têm tensionado o processo eleitoral no país é a insegurança. Apesar de a Argentina ser um dos países mais seguros da América Latina, a população do interior da nação e da área metropolitana de Buenos Aires se sente mais insegura por causa do aumento de crimes como roubos e furtos. Mas quando os crimes são cometidos por pessoas menores de 18 anos, a polêmica se intensifica.
Dados divulgados pela Procuradoria Geral da Suprema Corte da província de Buenos Aires indicam que a região registou um aumento de 9,35% na criminalidade, em relação ao ano anterior. Já os crimes em que os acusados têm menos de 18 anos de idade, o aumento foi de 19%. Esse contexto tem despertado um intenso debate sobre a redução da idade de maioridade penal; uma política apoiada abertamente por Bullrich, Larreta e Milei, mas rejeitada pelo peronismo.
Nesta quarta-feira, 9, a campanha para as Paso foi paralisada pela morte de uma criança de 11 anos, que havia sido vítima de um assalto. Morena Domínguez caminhava até a escola por volta das 7h30, quando foi agredida por dois homens em uma moto que queriam roubar sua mochila. A criança, derrubada no asfalto, foi arrastada por alguns metros, e apesar de receber atenção médica, acabou falecendo duas horas depois em um hospital na cidade de Linús, perto de Buenos Aires. O crime comoveu o país.
No oficialismo, acredita-se que o crime contra Morena pode dar um giro inesperado para as eleições de domingo, com o “voto da ira” favorecendo candidatos que são considerados “mais firmes” na luta contra a delinquência. Depois do ocorrido em Linús, Massa buscou declarar seu apoio às políticas defendidas pelos seus adversários. “Tenho uma posição pública, que é a de que, entre 14 e 18 anos, precisamos de um novo regime penal juvenil”, disse o ministro em declarações à imprensa.
No interior do país, as eleições provinciais deram um duro choque de realidade no peronismo, que perdeu bastante fôlego. A coalizão Unión por la Pátria acabou perdendo o controle de três províncias (San Juan, San Luis e Chubut), que durante décadas ficaram conhecidas pela sua forte base peronista. Políticos da coalizão temem que um resultado similar possa ocorrer a nível nacional. “Massa é um político que já tem demonstrado que pode se adaptar rapidamente a diferentes contextos políticos. Ele tem experiência. Mas a dúvida é se isso vai ser suficiente para conseguir os votos que precisa”, comentou ao Estadão o economista da UCA Camilo Tiscornia.
“Massa age com cuidado, tem evitado falar de assuntos polêmicos e inclusive tem sido visto nas últimas semanas agir mais como Ministro da Economia que como candidato. Já a oposição se apresenta de forma totalmente diferente. Bullrich e Milei, fundamentalmente, buscam passar uma imagem líderes fortes que pode solucionar os problemas econômicos e de segurança deste país”, disse De Angelis. “Esse é o ponto forte deles e utilizam a fúria a seu favor”.
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