Burocracia do Brexit obriga exportador a levar caranguejos ao veterinário

Saída do Reino Unido da União Europeia não interrompe exportações, mas caminho do mar ao fogão está repleto de novos obstáculos

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Por Stephen Castle

De todas as regulamentações incômodas impostas pelo Brexit ao negócio de exportação de crustáceos de Paul Knight, a que ele considera mais absurda é esta: antes que ele possa entregar seus caranguejos e lagostas na França e na Espanha, eles devem ser certificados por um veterinário.

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“Não tenho nada contra os veterinários, são pessoas adoráveis”, disse Knight, diretor-administrativo da PDK Shellfish, enquanto ele e sua equipe preparavam os volumosos formulários agora necessários para enviar um caminhão da Escócia. “Mas quando você leva sua lagosta de estimação ao veterinário?”

O Brexit deixou Knight e outros exportadores escoceses amarrados, adicionando resmas de papelada e postos de controle extras que atrasam o transporte, o que provoca a morte de crustáceos no percurso.

Um lagostim capturado por Alastair Mackie e Donald MacDonald é pesado na Ilha de Mull Foto: ndrew Testa/The New York Times - 5/3/2023

Quando entrou em vigor, em janeiro de 2021, o Brexit encerrou uma era de comércio fácil com seus mercados na Europa continental. Knight compara o impacto a uma bomba explodindo sobre sua empresa.

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Também não lhe fez muito bem pessoalmente. Ele começou a fumar, hábito que pensava ter largado. Knight tem pouco tempo para andar de bicicleta ou fazer outros exercícios e trabalha todo fim de semana. O resultado, disse, foi um ganho de mais de 40 kg.

Mas o impacto também foi sentido no comércio de pescado, desde as equipes nas ilhas escocesas que pescam lagostas, caranguejos e lagostins, até aqueles que os servem a clientes em restaurantes sofisticados na França.

Ao amanhecer sobre a costa rochosa do oeste da Escócia, um par de golfinhos corre ao lado do Dignity Jay, barco de 9 metros que se dirige para retirar armadilhas de crustáceos das profundezas.

Uma equipe de pesca traz transporta lagonstin para terra em Oban, na Escócia Foto: Andrew Testa/The New York Times - 4/3/2023

Reduzindo a velocidade até parar, o barco balança e as gaivotas circulam enquanto as armadilhas são içadas a bordo e esvaziadas, com lagostas pretas brilhantes e caranguejos marrons enlameados soltos e armazenados no convés.

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Nada dessa captura ficará no Reino Unido. Este é o início de uma jornada de 1.440 km para clientes na França, que pagarão muito por frutos do mar que a maioria dos britânicos raramente come.

Antes do Brexit, isso era relativamente simples. Mas agora, por causa de toda a papelada extra exigida, Alastair Mackie, o capitão do Dignity Jay, tem de entregar seu pescado mais cedo. Assim, ele terminará a pesca às 11h30, em vez das 17h, para embarcar o produto numa balsa da Ilha de Mull para Oban, no continente escocês.

A cada semana, a PDK Shellfish envia vários caminhões grandes do depósito no porto de Oban para a França e a Espanha, carregados com toneladas de frutos do mar mantidos vivos em tanques com água do mar através da qual o ar é bombeado. A carga desta vez incluirá caranguejo e lagosta do Dignity Jay e lagostim de outro barco, o Fern.

Cada entrega é uma corrida contra o tempo. Os crustáceos mortos não têm valor e, quanto mais tempo passarem fora do mar, maior a chance de perecerem. O Brexit piorou as chances.

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Não é a única complicação. Uma greve na França faz que os caminhões precisem sair ainda mais cedo. Mas é principalmente a papelada extra que faz empresas como a PDK reclamarem, porque afeta todas as remessas. Sob as regras do Brexit, todo veículo precisa de uma papelada exaustiva listando cada quilo de espécie transportada e os detalhes de cada barco que o forneceu.

Um caminhão Scania carregado com cerca de 40 mil quilos de lagosta, lagostim e caranguejo deixa o depósito da PDK às 20h20 de domingo e sua primeira e breve parada é num depósito em Glasgow, na Escócia, para pegar o certificado veterinário.

Lá, é recebido por Andrew Graham, que o levará para a França e voltará. Ele normalmente faz uma viagem como esta uma vez a cada duas semanas, acompanhado por outro motorista se a viagem continuar até a Espanha. Desta vez, está sozinho e dirigirá durante a noite. Ele diz que não se importa com a solidão.

Scottish langoustines on a seafood platter at La Taverne de la Marine, a restaurant that has specialized in fish and shellfish for four decades, in Rennes, France, March 7, 2023. Britain’s exit from the European Union has not halted exports, but the path from sea to stovetop is fraught with new obstacles. (Andrew Testa/The New York Times) Foto: NYT / NYT

Na madrugada de segunda-feira, Graham, de 29 anos, não está longe de Portsmouth, na costa sul da Inglaterra, de onde partirá uma balsa para a França. Com pausas obrigatórias para combater o cansaço, ele está na estrada há mais de oito horas.

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Graham votou a favor do Brexit em 2016. “Não foi como disseram que seria”, disse, dirigindo pelo trânsito matinal do sul da Inglaterra. Em vez disso, afirmou, é “uma espécie de praga”.

A espera em Portsmouth para a balsa partir é longa desta vez – cerca de quatro horas –, e Graham dorme um pouco na cabine. Do outro lado do Canal da Mancha haverá inevitavelmente um atraso num posto de inspeção veterinária, a poucos minutos de carro do porto de Caen, na França.

Os caminhões são inspecionados na ordem em que chegam. “Pode levar uma hora, duas, três ou quatro”, disse Graham, cuja espera mais longa foi de cinco horas. “Você perde muito tempo lá.”

Saindo da balsa na segunda-feira, Graham é o décimo numa fila de 12 caminhões. Isso significa quase duas horas de espera pela inspeção veterinária francesa, e é quase meia-noite quando ele pega a estrada para deixar parte de sua carga perto de St. Malo. A próxima parada é uma empresa de frutos do mar na cidade de Plouescat.

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Um prato de frutos do mar com lagostim da PDK Shellfish, empresa exportadora da Escócia, no La Taverne de la Marine, em Rennes  Foto: Andrew Testa/The New York Times

A parada final, no meio da manhã, é em Melesse, nos arredores de Rennes, onde centenas de galões de água do mar escocês são liberados dos tanques do caminhão, jorrando na grama e no asfalto e descendo por um ralo. Graham pega alguns caranguejos que escaparam e os devolve aos tanques.

Dentro do armazém da atacadista Ame Haslé, cerca de 130 quilos de lagostas, 1.100 quilos de caranguejos e 1.200 quilos de lagostins são descarregados em tanques de água do mar aerada.

Maxime Sureau, especialista em frutos do mar comerciais da Ame Haslé, disse que a interrupção do Brexit inicialmente fez com que sua empresa reduzisse os pedidos da Escócia, mas que eles voltaram aos níveis anteriores. “Nós encontramos uma maneira de organizar as coisas que simplifica muito tudo”, disse.

Mesmo assim, acrescentou, os atrasos nas inspeções tornam impossível saber quando as remessas chegarão.

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