A Câmara da Argentina aprovou a chamada “Lei Ônibus”, o pacote de reformas políticas e econômicas de Javier Milei após uma maratona de 30 horas de debates e discussões acaloradas que se arrastava desde que a quarta-feira, 31. Os deputados ainda devem discutir cada um dos mais de 380 artigos individualmente a partir da próxima terça-feira.
Apesar de A Liberdade Avança, o partido de Milei, ter apenas 38 dos 257 deputados, o governo conseguiu ultrapassar com folga a marca dos 129 votos necessários para passar a “Lei Ônibus” com apoio da oposição dialoguista. Foram 144 votos a favor do projeto e 109 contrários. Para isso, a Casa Rosada teve que abrir mão de quase metade dos 664 artigos que eram previstos originalmente, quando o texto foi enviado ao Congresso.
“A história se lembrará com honra de todos aqueles que compreenderam o contexto histórico e decidiram acabar com os privilégios da casta e da república corporativa em favor do povo, que foi empobrecido e levado a fome durante anos pela classe política”, celebrou o gabinete de Javier Milei nas redes sociais acrescentando que espera contar com a “mesma grandeza” na votação individual dos artigos para que a redação final siga para o Senado.
O sociólogo e analista político argentino Carlos de Angelis afirma que para além da aprovação dessa versão desidratada da “Lei Ônibus”, Javier Milei conseguiu mostrar uma capacidade de governabilidade, que era dúvida desde o início do mandato. “Desde que Milei foi eleito, havia o debate se ele poderia superar os obstáculos sem um bloco (legislativo) importante e sem acordos formais porque incorporar Patrícia Bullrich no governo não é um acordo formal de governabilidade”.
De Angelis pondera, no entanto, que o capítulo fiscal, necessário para garantir a meta de déficit zero, foi sacrificado nesse processo. “O que poderia gerar receita no curto prazo foi suspenso. E havia problemas técnicos na redação”, afirma.
“A questão é se pode ser incorporado na votação artigo por artigo, se o governo terá algum novo acordo para reintroduzir alguns pontos do capítulo fiscal que é fundamental, especialmente porque o acordo está em discussões com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a grande aposta do governo é atingir o déficit zero ainda em 2024. Ninguém entende, ninguém vê com clareza como isso seria alcançado sem essas ferramentas”, acrescenta.
Depois de abandonar o capítulo fiscal, o governo chegou a dizer que não faria novas concessões, mas voltou a ceder em alguns dos pontos considerados mais sensíveis do projeto. A Casa Rosada reduziu o número de empresas estatais que serão privatizadas e os poderes extraordinários que o Executivo busca para passar reformas futuras sem o Congresso.
Ainda assim, o terceiro dia de sessão foi marcado por intensas negociações acerca do imposto Para uma Argentina Inclusiva e Solidária (PAIS), que incide sobre transações em moeda estrangeira. As províncias pressionaram por uma fatia do imposto e deputados de Córdoba ameaçaram reduzir o apoio às declarações de emergência que ampliam os poderes de Javier Milei.
O governo, por outro lado, pediu que a discussão fosse deixada para depois da “Lei Ônibus”. No fim da tarde, o ministro do Interior Guillermo Francos foi à Câmara e se reuniu com um grupo de deputados da oposição dialoguista para destravar a negociação.
“Agora vem a parte mais importante, que será a discussão ponto a ponto, porque vários dos artigos podem cair por não terem maioria”, alerta o cientista político argentino Carlos Fara entrevista ao Estadão. “Foram cometidos erros políticos e de negociação pelo caminho, mas o governo tem um incentivo para enfrentar as próximas sessões de maneira diferente”, acrescentou.
Depois da tensa maratona de votações na Câmara, o texto ainda precisará passar pelo Senado, onde o governo tem apenas sete dos 72 senadores. Mesmo sendo minoria, a Casa Rosada espera contar com as mesmas alianças que garantiram a aprovação entre os deputados.
Para Carlos Fara, o governo poderá ver a lei ser ainda mais desidratada pelos senadores. “Milei também pode encontrar uma dor de cabeça no Senado, que pode querer fazer modificações, o que significa que a lei teria que voltar para a Câmara dos Deputados, resultando em perda de tempo para o governo e, ao perder tempo, ele obviamente perde poder”, concluiu.
Pressão pela votação
Mais cedo, na reta final dos debates, Javier Milei pressionou pela votação e disse que os deputados têm a oportunidade de mostrar em que lado da história querem ficar.
“O governo escutou as posições das diferentes forças políticas e exige responsabilidade e celeridade na votação”, afirma a nota do gabinete compartilhada por Milei no X (antigo Twitter). “O tempo para o debate acabou. É hora de os representantes do povo decidirem se estão do lado da liberdade dos argentinos ou do lado dos privilégios da casta e da república corporativa”, segue.
“O governo anterior deixou um país devastado. Um em cada quatro argentinos é pobre. Seis em cada dez crianças não comem todos os dias. É evidente que o sistema anterior fracassou e o poder Executivo requisita com urgência as ferramentas para reformar a economia”, acrescenta.
Debate marcado por protestos
Os debates foram cercados por protestos de grupos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais contrários a reforma no entorno do Congresso. As forças de segurança foram acionadas para aplicar o protocolo que proíbe o bloqueio de vias e houve confronto entre os manifestantes e a polícia na quarta e na quinta-feira.
O bloco peronista fez duras críticas ao que chamou de “excessos” das tropas e tentou suspender a sessão de ontem. Com o pedido rejeitado, os deputados do União Pela Pátria e da Frente de Esquerda abandonaram o plenário para se juntar aos manifestantes reunidos em frente ao Congresso. O presidente da Câmara, Martín Menem, deu continuidade aos debates depois que eles saíram.
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A “Lei Ônibus” se soma ao Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que concentra mais 366 medidas para desregulamentar praticamente todos os aspectos da economia argentina. O chamado “megadecreto” ainda precisa passar por uma comissão do Congresso - que tem o poder de mantê-lo ou derrubá-lo - e enfrenta uma série de contestações legais.
Esta semana, a Justiça declarou nulo o capítulo de reforma trabalhista do DNU, considerado inconstitucional. No parecer, os juízes argumentaram que a questão deveria ter sido debatida pelo Congresso e enfatizaram que o instrumento do decreto está previsto para casos de urgência. A decisão acatou o pedido da maior central sindical da Argentina, a Confederação Geral do Trabalho (CGT).
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