Campo de batalha da Ucrânia é assombrado pelo legado de armas químicas de Putin

Embora o risco seja desconhecido, a antiga paixão do líder russo por armas químicas aumenta as preocupações de que possam ser usadas na Ucrânia

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Por William J. Broad

THE NEW YORK TIMES - Quando o presidente russo Vladimir Putin comandou a destruição do que ele chamou de a última arma química da Rússia, em setembro de 2017, o gesto foi saudado por ele durante uma transmissão televisiva como “um grande passo para tornar o mundo moderno mais equilibrado e seguro”.

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Agora, anos depois, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e outros líderes ocidentais alertam que a Rússia pode realizar ataques químicos na Ucrânia. Não há até o momento nenhuma evidência concreta de armas químicas implantadas dentro ou perto do conflito, em contraste com os alertas nucleares mais claros de Putin, mas analistas veem a ameaça de uma guerra química como algo real.

Segundo eles, Putin há muito demonstra disposição para ignorar a proibição internacional de armas químicas. Isso cria uma atmosfera intimidadora, que pode dar à Rússia uma vantagem no campo de batalha sem a necessidade de disparar tiros.

“Ele já está assustando as pessoas”, declarou Hanna Notte, especialista em uso de armas químicas pela Rússia no James Martin Center for Nonproliferation Studies em Monterey, Califórnia. A apreensão, observaram os especialistas, leva o Ocidente a fornecer equipamentos e treinamento a Kiev destinados a impedir qualquer ataque químico.

Nikolai Sokov, ex-diplomata soviético que negociou tratados de controle de armas, afirma que tanto a Rússia quanto a Ucrânia acusam uma à outra de preparar uma guerra química. “É uma guerra de narrativas”, disse. “Eles culpam uns aos outros, então definitivamente há uma tentativa de marcar pontos em uma guerra de informações”, acrescentou.

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Presidente russo Vladimir Putin durante reunião com o Ministro do Trabalho e da Proteção Social, Anton Kotyakov, em Moscou, no dia 4 de maio Foto: Mikhail Klimentyev / AFP

As preocupações com uma guerra química foram levantadas no dia 11 de abril, quando o Regimento Azov, uma unidade militar ucraniana na cidade sitiada de Mariupol, disse que um drone russo havia lançado uma “substância venenosa” na siderúrgica Azovstal, onde os defensores se refugiaram. As vítimas teriam sofrido tonturas, dores respiratórias e inflamação nos olhos.

As alegações feitas em um vídeo divulgado pelo regimento permanecem sem verificação independente. No vídeo, um homem deitado com os olhos bem fechados afirma que viu “um nevoeiro”. “Era muito difícil respirar”, disse. As pernas também ficaram fracas. “Me senti muito mal”, conta o homem.

A Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), com sede em Haia, disse que está “monitorando de perto a situação na Ucrânia” e investiga o ataque relatado.

As armas químicas são relativamente mais baratas e fáceis de fabricar do que armas biológicas e nucleares. Mas quantidades modestas podem resultar em baixas em massa. Livros militares mostram vítimas cobertas de queimaduras e bolhas gigantes e os olhos, nariz e pulmões – órgãos facilmente em contato com o ar ou toxinas aerossolizadas – são especialmente vulneráveis.

“As armas aterrorizam as pessoas e geram pânico”, disse Leiv K. Sydnes, químico da Universidade de Bergen, na Noruega, que assessorou a OPAQ. “O objetivo militar é minar a confiança de soldados e civis em seus abrigos, fortificações e esconderijos.”

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Após a Guerra Fria, um tratado global - chamado Convenção de Armas Químicas - proibiu o desenvolvimento, a produção, o armazenamento e o uso de armas químicas. A Organização para a Proibição de Armas Químicas fiscaliza o cumprimento e conta com uma rede global de laboratórios para estudar amostras de campo em busca de sinais de uso ilegal. A organização tem 193 estados membros, todos signatários do tratado.

Quando a Rússia assinou a convenção em 1993, declarou que possuía mais de 40 mil toneladas de armas químicas – o maior arsenal desse tipo do mundo. Suas munições incluíam gás mostarda, que queima os olhos e os pulmões, e uma variedade de agentes nervosos.

Ao contrário das armas nucleares e da doutrina militar para seu uso, Moscou nunca realizou treinamentos e exercícios com armas químicas depois da Guerra Fria. Entretanto, alguns especialistas afirmam que o uso de agentes químicos em menor escala e o envolvimento da Rússia no conflito na Síria mostram que Putin tem uma clara ligação com a guerra química.

Em 2002, por exemplo, agentes de segurança russos injetaram um gás nocivo em um teatro de Moscou para encerrar uma crise de reféns, matando mais de 100 pessoas. Autoridades defenderam a ação e disseram que não representava nenhuma violação do tratado químico – uma alegação que especialistas americanos contestaram. Putin era o presidente da Rússia na época.

Especialistas dizem que o momento mais sombrio do Kremlin com armas químicas aconteceu na Síria, onde apoiou e protegeu o regime do presidente Bashar al-Assad de manifestações populares e se tornou cúmplice de anos de ataques tóxicos contra rebeldes e civis.

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Em agosto de 2013, as forças de al-Assad chocaram o mundo ao disparar produtos químicos em cidades controladas por rebeldes perto da capital, Damasco. Mais de 1,4 mil pessoas foram mortas, segundo as autoridades americanas.

Na época, o governo de Obama identificou que o veneno utilizado contra os rebeldes foi o sarin, um agente líquido que evapora e é absorvida rapidamente pela pele humana. Os sintomas relatados incluíram inconsciência, espuma no nariz e na boca, batimentos cardíacos acelerados e dificuldade para respirar. Os agentes tóxicos sobrecarregam os nervos e os músculos do corpo, produzindo espasmos, paralisia e, se suficientemente concentrados, morte.

Muitos especialistas presumiram que uma violação tão clara da lei internacional levaria à intervenção militar ocidental, especialmente porque o presidente Barack Obama havia declarado o uso de armas químicas uma “linha vermelha” - ou seja, um limite de tolerância na guerra.

Mas Putin, em um artigo de opinião publicado no New York Times, pediu moderação. “Devemos parar de usar a linguagem da força e retornar ao caminho da solução diplomática e política”, escreveu. A crise terminou quando Moscou propôs que a Síria colocasse seu arsenal químico sob supervisão internacional e eventualmente destruísse as armas letais.

Em setembro de 2015, Putin enviou o general Aleksandr V. Dvornikov e forças russas para ajudar o exército de al-Assad. Aviões russos logo estavam bombardeando cidades sírias. O general Dvornikov ajudou a criar uma estratégia de desinformação que culpou falsamente os rebeldes por ataques feitos pelo governo, incluindo ataques químicos mortais. Depois, foi revelado que o governo al-Assad havia mantido pelo menos parte do arsenal tóxico.

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General do exército russo Alexandr Dvornikov assumiu o comando das tropas na guerra da Ucrânia no dia 20 de abril. Dvornikov esteve na Síria para apoiar governo de Assad Foto: Ministério de Defesa da Rússia/EFE

Hanna Notte, do James Martin Center, especialista no conflito sírio, disse que o trabalho de identificar o tipo de veneno e quem o lançou pode levar meses, às vezes um ano. “É muito difícil responsabilizar um Estado”, disse ela. O mesmo pode eventualmente acontecer, acrescentou Notte, se a Rússia se envolver em ataques químicos na Ucrânia.

As investigações podem ser muito difíceis se o vento ou a chuva dispersarem os venenos. Alguns agentes químicos são voláteis e evaporam facilmente. Muitas vezes, também existe a dificuldade de garantir a integridade do que os especialistas chamam de ‘cadeia de custódia’ – a fiscalização cuidadosa de como uma amostra se move da coleta até a análise laboratorial como forma de impedir a adulteração. O caos da guerra dificulta ainda mais esse trabalho.

Os especialistas dizem ainda que detectar o uso de agentes químicos pelo Kremlin foi relativamente fácil fora do campo de batalha. Em março de 2018, Sergei Skripal, ex-oficial militar russo que havia trabalhado para os serviços britânicos de inteligência como agente duplo, foi encontrado caído em um banco de parque na cidade de Salisbury, uma pacata cidade inglesa, alucinando e espumando pela boca. A filha estava desabada sobre ele.

Em agosto de 2020, Alexei Navalni, crítico implacável de Putin e o seu principal adversário político, estava a caminho de Moscou quando ficou gravemente doente. Confuso e com um suor excessivo, ele vomitou, desmaiou e perdeu a consciência.

Os dois homens foram envenenados por um agente químico de nível militar da família Novichok, uma potente classe de armas químicas desenvolvidas nos tempos soviéticos.

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Os envenenamentos mostravam o que os especialistas suspeitavam há muito tempo: Putin havia retido pelo menos algumas partes de seu vasto arsenal. Além disso, o incidente de Skripal foi visto como uma evidência de que o líder russo estava pronto para usar as armas no exterior, pois os investigadores descobriram que dois agentes russos mancharam a maçaneta da porta da frente da casa de Skripal com Novichok.

Embora as autoridades russas tenham negado o envolvimento nos dois ataques, ou a posse de armas químicas, as administrações Trump e Biden impuseram sanções a vários espiões, funcionários e institutos de pesquisa russos.

No ano passado, Joseph Manso, representante dos EUA na Organização para a Proibição de Armas Químicas, chamou os envenenamentos de Novichok de “uma clara violação” da Convenção de Armas Químicas e “uma ameaça à segurança internacional”.

Na Ucrânia, alertam autoridades ocidentais, Moscou utiliza a cartilha de desinformação que aperfeiçoou na Síria para alegar que Kiev se prepara para ataques químicos. Desta maneira, os russos criam pretexto para seus próprios ataques.

No grupo do tratado das armas químicas, o representante russo afirmou no dia 10 de março que “grupos radicais ucranianos prepararam vários cenários potenciais do uso de produtos químicos tóxicos”. Semanas depois, o Regimento Azov em Mariupol acusou a Rússia do ataque.

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Também em abril, Moscou nomeou o general Dvornikov, ex-comandante sírio, como o principal líder militar da guerra na Ucrânia.

Hoje, a grande incerteza é como o Ocidente responderia se um grande ataque químico na Ucrânia estivesse comprovadamente ligado à Rússia. Ao contrário do caso das armas nucleares, onde os rivais atômicos oferecem a possibilidade de responder na mesma moeda, o Ocidente renunciou ao uso dos venenos de guerra.

Analistas sugeriram a aplicação de mais pressão diplomática, mais sanções e mais cortes nas importações russas de petróleo e gás para a Europa. Eles também argumentaram que a resposta a ataques químicos contra civis, em vez de unidades militares, deveria ser muito mais severa.

Notte, do James Martin Center, disse que as pessoas temiam armas químicas não apenas por causa de suas terríveis consequências para os seres humanos, mas também por causa da resposta. “A razão pela qual isso assusta as pessoas é que não temos boas respostas se isso acontecer”, disse ela. “A Rússia entende que estamos limitados, e isso gera temores.”

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