A acusação formal agora revelada do caso judicial nomeado Estados Unidos vs. Donald Trump tem tudo. Todas as falhas de Trump estão condensadas em 49 páginas e 38 acusações de detalhes pavorosos. É um documento legal devastador, mas também um estudo de caráter condenatório de um homem cujas falhas são muito conhecidas, mas ainda com poder de chocar e apavorar.
Na linguagem castrada dos promotores e seus parágrafos numerados, 96 ao todo, a acusação detalha o egoísmo implacável da conduta de Trump. O ex, e talvez futuro, presidente, segundo os promotores, mentiu para seus próprios advogados, pressionou-os a esconder evidências em seu nome e depois se escondeu enquanto eles apresentavam uma declaração falsa às autoridades federais - enquanto se proclamava um “livro aberto”.
Ele armazenou os segredos mais confidenciais do governo - sobre assuntos tão delicados quanto as vulnerabilidades dos Estados Unidos e seus aliados a ataques militares - no palco de um salão de baile no seu resort em Mar-a-Lago. Ele permitiu que material de inteligência secreto se espalhasse no chão de uma sala de armazenamento facilmente acessível a partir do pátio da piscina. As pessoas responsáveis visualizam esses documentos em um SCIF, espécie de contêiner ultrasseguro onde funcionários e contratados do governo estão protegidos contra espionagem eletrônica, intrusos e roubos. Trump os manteve em um banheiro com lustre.
Hilary Clinton
Ele criticou sua oponente de 2016, Hillary Clinton, por lidar mal com informações sigilosas, e então se comportou de maneira muito mais perigosa. A acusação não menciona Hillary pelo nome, mas os promotores se esforçaram para apresentar várias declarações de campanha de Trump a criticando - e enfatizando a importância de proteger informações secretas.
“Não podemos ter alguém no Salão Oval que não entenda o significado da palavra confidencial ou secreto”, insistiu Trump quando o dia da eleição de 2016 se aproximou. “Uma das primeiras coisas que devemos fazer é aplicar todas as regras de confidencialidade e aplicar todas as leis relacionadas ao manuseio de informações secretas.”
Assim disse o homem que, de acordo com a acusação, exibiu dramaticamente documentos confidenciais para convidados em seu clube de campo em Bedminster, Nova Jersey, convidados notavelmente sem autorização de segurança. “Como presidente, eu poderia ter desclassificado estes documentos. Agora não posso, você sabe, mas isso ainda é um segredo”, disse Trump a duas pessoas que trabalhavam nas memórias de seu ex-chefe de gabinete, Mark Meadows, discutindo um memorando que delineava o “plano de ataque” dos EUA ao Irã. Está gravado. O indiciado indiciou-se a si próprio.
Os promotores descrevem no documento de acusação uma história de conduta criminosa. Esta acusação quase grita: Este homem é um perigo para o país. Ele é um mentiroso. Ele é um hipócrita. Ele é um vigarista. Não diz, mas direi: ele nunca mais deveria ser permitido em qualquer lugar perto das alavancas do poder.
Faltando na acusação - desnecessária por uma questão de lei, inevitável como um elemento da psicologia humana - está a questão do motivo: por que Trump fez isso? Por que seu zelo, sua mania, de reter esses documentos específicos quando funcionários do governo vinham procurá-los? Por que persistir - por que cavar o buraco fundo no território da obstrução - quando uma intimação sublinhou que o governo falava sério?
Documentos
Parte da explicação pode ser a de Trump como a eterna criança: ele quer o que quer. Os papéis são seus brinquedos e ele não os devolverá. “Não quero ninguém olhando”, disse Trump a seu advogado, no memorando condenatório. “Não quero ninguém mexendo nas minhas caixas, não quero mesmo.” Minhas caixas. Meu, meu, meu.
Esses brinquedos impressionam - e a necessidade patética de Trump de se gabar não pode ser subestimada. Assim, encontrando-se com um “representante” não identificado de seu PAC em Bedminster, Trump brandiu um mapa secreto de um “País X” e disse à pessoa “que ele não deveria mostrar o mapa ao representante do PAC e não chegar muito perto”. Se isso é uma evidência para os promotores de que Trump sabia que não deveria tratar o material confidencial de maneira tão arrogante, é um lembrete para o resto de nós sobre a compulsão de Trump em exibir sua importância.
Ler a acusação é se afogar novamente no narcisismo de Trump: os outros existem apenas para atender às necessidades dele e se sacrificar pelo bem maior de Trump. A acusação relata que, em maio de 2022, falando com um de seus advogados, Trump alegremente sugere que ele examine todos os documentos problemáticos. Como o advogado mais tarde lembrou: “Ele fez um movimento engraçado como se - bem, por que você não os leva com você para o seu quarto de hotel e se houver algo realmente ruim lá, tipo, você sabe, arranque-o”. Sim, por que você não comete um crime e compromete sua licença para advogar?
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E depois há os momentos de pura delícia, os vislumbres estranhos nos bastidores do Trumpworld. A acusação cita um membro da família de Trump - suponho que sua esposa, Melania - mandando mensagens de texto para um assessor pessoal do ex-presidente, pouco antes de um voo para fora da cidade. “Eu vi você colocar caixas na sala de Potus”, afirma o texto. “Apenas FYI e eu vou dizer a ele também: não tenho certeza de quantos ele quer levar na sexta-feira no avião. NÃO teremos um quarto para eles. O avião estará cheio de bagagem. Esqueça suas caixas”. Preciso desse espaço de carga para minha alta costura.
Ao anunciar a acusação na sexta-feira, o procurador especial Jack Smith disse: “Convido todos a lê-lo na íntegra para entender o escopo e a gravidade dos crimes acusados”. Por favor façam isso. É um documento que nunca deveria ter sido escrito sobre um presidente americano. A própria conduta de Trump tornou isso inevitável.
* Ruth Marcus é editora de política em Washington e colunista
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