Para muitas pessoas, pode parecer mentira: a prisão de um líder político nacional sob acusação criminal de possuir walkie-talkies não registrados, simples comunicadores manuais disponíveis por menos de US$ 30 (aproximadamente R$ 160) na Amazon.
Mas foi isso que a ressurgente junta militar de Mianmar usou para justificar a tomada de poder no golpe de 1º de fevereiro e a prisão de Daw Aung San Suu Kyi, laureada com o Nobel, que agora corre o risco de cumprir três anos de prisão por não ter registrado corretamente seus walkie-talkies. Protestos em Mianmar contra as ações militares agora agitam o país.
Ativistas de direitos humanos dizem que a acusação pode sinalizar como os líderes antidemocráticos farão para esmagar qualquer ameaça percebida. Infrações que parecem fúteis em sociedades mais livres - ou evidências aparentemente fúteis usadas para fazer acusações sérias - são freqüentemente usadas por governos autoritários em todo o mundo.
Aqui estão alguns exemplos dos últimos anos:
Rússia: a recuperação de um envenenamento é igual à violação da liberdade condicional
Alexei Navalni, a figura da oposição mais proeminente da Rússia, foi condenado à prisão por mais de dois anos na semana passada depois que um tribunal decidiu que ele violou repetidamente a liberdade condicional ao não se apresentar pessoalmente às autoridades - enquanto se recuperava na Alemanha de um envenenamento.
A prisão de Navalni afastou um crítico que há muito incomoda o presidente Vladimir Putin.
Em mais um sinal da crescente intolerância do Kremlin, um tribunal russo sentenciou na quarta-feira o editor de um popular site de notícias a 25 dias de prisão por ter retuitado uma referência brincalhona a um protesto anti-Kremlin divulgado por Navalni.
Tailândia: Mais de 43 anos atrás das grades por insultar o rei
Em nenhum lugar é mais perigoso falar sobre uma monarquia do que na Tailândia, onde uma lei notória conhecida como Seção 112 do código penal tem sido cada vez mais usada para esmagar o sentimento antigovernamental.
A lei, que considera crime criticar a família real, foi usada em janeiro para punir uma ex-funcionária pública com mais de 43 anos de prisão - a mais longa sentença por violação. Na opinião do tribunal, a sentença foi misericordiosa para a ré, Anchan Preelert, que poderia ter recebido 87 anos; a punição foi cortada pela metade porque ela se declarou culpada.
Ela foi acusada em 2015 de usar a mídia social para disseminar gravações de áudio e vídeo vistas como críticas ao então rei Bhumibol Adulyadej, o pai do atual rei, que era o monarca que reinava há mais tempo no mundo quando morreu em 2016.
Irã: uma esquete do ‘Daily Show’ usada como prova de espionagem.
Em junho de 2009, Maziar Bahari, jornalista canadense-iraniano da Newsweek, estava entre centenas de pessoas presas no Irã após uma disputada eleição presidencial. Seu interrogador na prisão o acusou de espionagem para o Ocidente, citando, entre outras coisas, uma entrevista satírica que ele deu ao The Daily Show, programa da emissora americana Comedy Central.
Bahari ficou detido por 118 dias, muitas vezes com os olhos vendados. Sua história se tornou o enredo de um filme intitulado Água de Rosas, uma referência à colônia que Bahari cheirou no interrogador.
Arábia Saudita: 10 anos e mil chicotadas para um blogueiro
Na Arábia Saudita, uma interpretação severa da lei islâmica faz com que muitos defensores da liberdade de expressão e dos direitos das mulheres sejam presos. Um dos casos mais conhecidos é o do escritor Raif Badawi, cujas postagens de blog críticas ao estabelecimento religioso do reino foram consideradas um insulto.
Ele foi condenado em 2014 a uma pena de 10 anos de prisão, a pagar uma grande multa e a receber um açoite público de mil chicotadas com uma bengala, a serem administradas em 20 lotes periódicos de 50 chicotadas cada. A indignação internacional com a punição ajudou a pressionar os sauditas a interromper o açoite após o primeiro lote em janeiro de 2015.
Mas Badawi, que recebeu vários prêmios de liberdade, incluindo o Prêmio Sakharov do Parlamento Europeu em 2015, continua na prisão.
Coreia do Norte: Quinze anos de trabalho forçado por roubar um pôster de hotel
Enquanto visitava a Coreia do Norte com um grupo de turistas em janeiro de 2016, Otto F. Warmbier, um estudante da Universidade da Virgínia, foi preso sob a acusação de tentar roubar um pôster de seu hotel.
Warmbier foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados, uma punição desproporcional amplamente vista como um esforço da Coreia do Norte para enviar uma mensagem política e ganhar alguma influência com os Estados Unidos. Depois que as autoridades norte-coreanas transmitiram as desculpas chorosas de Warmbier na TV estatal, elas o mantiveram incomunicável por 17 meses.
Quando a Coreia do Norte o libertou, no que chamou de gesto humanitário, ele havia sofrido danos cerebrais e estava em um coma do qual nunca saiu. Ele foi levado de avião para os Estados Unidos e morreu pouco depois. Os pais de Warmbier disseram que seus captores norte-coreanos o torturaram.
Zimbábue: Preso por palavras que a polícia considerou ofensivas
Não houve insultos desbocados. Mas isso não impediu a polícia do Zimbábue de prender três mulheres membros da oposição política em 1º de fevereiro sob a acusação de usar linguagem considerada ilegal pelos policiais.
As mulheres, incluindo uma parlamentar, foram apreendidas depois de seguirem um veículo da polícia que prendia suspeitos de uma manifestação antigovernamental em Harare, a capital. Não ficou claro exatamente o que a polícia de Harare considerou criminalmente ofensivo nos comentários.
De acordo com um comunicado policial, as mulheres exigiram a libertação dos suspeitos para garantir que a polícia não os infectasse com covid-19 enquanto estivessem sob custódia.
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